Ciência

Cientistas brasileiros desenvolvem "acelerômetro" da covid-19

Ferramenta carrega os dados de casos com atualizações diárias, e aplica técnicas de modelagem matemática para diagnosticar o estágio atual da epidemia

Pessoas de máscaras: velocidade de crescimento é chamada de incidência e é medida de acordo com o número de novos casos por dia (Bloomberg / Colaborador/Getty Images)

Pessoas de máscaras: velocidade de crescimento é chamada de incidência e é medida de acordo com o número de novos casos por dia (Bloomberg / Colaborador/Getty Images)

Victor Sena

Victor Sena

Publicado em 1 de junho de 2020 às 11h30.

Última atualização em 1 de junho de 2020 às 11h31.

Pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araçatuba desenvolveram um aplicativo que funciona como um “acelerômetro da COVID-19”, ou seja, monitora em tempo real a tendência de aceleração ou desaceleração do crescimento da doença em mais de 200 países e territórios.

Disponível gratuitamente on-line, a ferramenta carrega os dados de casos notificados disponíveis na base do Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC), com atualizações diárias, e aplica técnicas de modelagem matemática para diagnosticar o estágio atual da epidemia em um determinado local.

“Além de democratizar o acesso à informação, para que todos possam entender o que exatamente está acontecendo em sua cidade, estado ou país, o aplicativo possibilita aos gestores públicos avaliar se uma determinada medida adotada para conter o contágio do novo coronavírus está ou não surtindo efeito”, afirma à Agência FAPESP Yuri Tani Utsunomiya, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Animal da Faculdade de Medicina Veterinária de Araçatuba (FMVA-Unesp) e primeiro autor do artigo que descreve o desenvolvimento do modelo matemático, publicado na revista Frontiers in Medicine.

Para explicar como evolui uma epidemia, Utsunomiya faz uma analogia com um automóvel. Na fase inicial, a doença avança de forma lenta e o número de casos diários aumenta pouco, assim como um carro andando sob o efeito da embreagem.

A velocidade de crescimento é chamada de incidência e é medida de acordo com o número de novos casos por dia. Já a prevalência corresponde ao número de casos acumulados ao longo do tempo, que seria o equivalente à distância percorrida pelo automóvel imaginário.

“Quando o pedal de aceleração é pressionado, o número de casos começa a crescer rapidamente, assim como um carro acelerado adquirindo velocidade. Nesta segunda fase da epidemia ocorre o crescimento exponencial do número de casos. O que todos os países buscam é cessar essa aceleração e iniciar a frenagem da doença e, vale dizer, são duas operações distintas. A primeira consiste em tirar o pé do pedal de aceleração, para que esta caia a zero. Quando isso ocorre, o pico de incidência é atingido. A segunda operação envolve exercer uma aceleração negativa sobre a doença [pisar no freio] para que sua velocidade de crescimento diminua até zero. Sem velocidade, o automóvel para. E é isso que queremos, que a COVID-19 pare de ser disseminada”, explica.

O acelerômetro da COVID-19 permite ver, em tempo real, se um determinado país está com o pé no acelerador ou no freio – com algum grau de imprecisão nos locais em que há muita subnotificação de casos.

Porém, ressalta o pesquisador, a transição entre os quatro estágios de crescimento da epidemia – lento (verde), exponencial (rosa), desaceleração (amarelo) e estacionário (azul) – pode ocorrer de forma alternada.

Ou seja, mesmo após entrar em desaceleração ou até em crescimento estacionário, a doença pode voltar para a fase exponencial caso medidas de controle sejam abandonadas. Daí a importância de ferramentas que ajudam no monitoramento constante.

“O que notamos com a análise de mais de 200 países e territórios é que medidas de controle eficazes produzem um efeito rápido na curva de aceleração, muito antes da queda efetiva no número de casos diários. Esse comportamento da curva possui alta relevância para a avaliação das políticas públicas de controle”, diz.

Curvas sinuosas

Tendo como referências os casos notificados pelos órgãos oficiais de saúde, o aplicativo monta as curvas de incidência – aquela que se deseja achatar para evitar o colapso do sistema de saúde – e de aceleração do crescimento em tempo real, além de detectar as transições entre os quatro estágios de crescimento da epidemia. Para tornar isso possível, os pesquisadores usaram técnicas matemáticas como a regressão móvel e o modelo oculto de Markov.

“Desenvolvemos um método simples, mas bastante robusto, que consegue a partir de dados disponíveis em bancos nacionais e internacionais gerar informação precisa sobre o avanço e o movimento da epidemia. Mas esses cálculos são feitos a partir de dados que dependem essencialmente de diagnóstico [testagem]”, pondera José Fernando Garcia, professor da Unesp em Jaboticabal e coautor do artigo.

Embora a subnotificação dos casos seja um fator limitante do modelo, podendo gerar alguma distorção de escala, as curvas epidemiológicas geradas tendem a manter contornos muito próximos do real, de acordo com os pesquisadores.

A má notícia é que, ao analisar a curvas brasileiras atuais, observa-se que nenhum estado conseguiu sair da fase de crescimento exponencial, mesmo com a quarentena.

A China, a título de comparação, alcançou a fase de crescimento estacionário com apenas seis semanas de isolamento social bem-feito. Também já conseguiram atingir a etapa de crescimento estacionário Austrália, Nova Zelândia, Áustria e Coreia do Sul.

Já Itália, Espanha e Alemanha encontram-se atualmente na fase de desaceleração do crescimento, graças às medidas de confinamento adotadas.

Utsunomiya divide as políticas públicas que visam conter a disseminação do coronavírus em duas categorias: medidas de supressão (mais intensas e severas, desenhadas para causar rápida reversão do crescimento epidêmico, como lockdown) ou de mitigação (voltadas à redução do contágio, para que o crescimento ocorra de forma controlada, como uso de máscaras e controle de aglomerações).

“No nosso estudo ficou muito claro que medidas de supressão são extremamente efetivas no combate à COVID-19. No entanto, têm sido criticadas por gerarem problemas de ordem social e profundo efeito negativo na economia. Já medidas de mitigação causam menos impacto socioeconômico, porém, são muito menos eficientes. É bastante difícil apontar uma solução universal”, diz Utsunomiya, que foi bolsista de doutorado e de mestrado da FAPESP.

Segundo o pesquisador, o Japão foi um dos únicos países que conseguiram desacelerar o crescimento dos casos novos apenas com medidas de mitigação. “É necessária muita cautela na comparação de estratégias adotadas por diferentes países, pois fatores como infraestrutura de saúde, quantidade e frequência de testes, densidade populacional e aderência da população às recomendações dos órgãos de saúde podem ser determinantes para a viabilidade de medidas de mitigação”, afirma.

O artigo Growth Rate and Acceleration Analysis of the COVID-19 Pandemic Reveals the Effect of Public Health Measures in Real Time pode ser lido em http://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fmed.2020.00247/full.

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