Ciência

Bastidores do programa nuclear brasileiro

Em artigo, o físico José Goldemberg, presidente da FAPESP, apresenta um panorama das iniciativas internacionais voltadas para a desnuclearização

Em 1956 o Brasil recebeu dos Estados Unidos um reator de pesquisa alimentado por urânio enriquecido em 90%, instalado na Universidade de São Paulo, informa o artigo (Angra 1/Wikimedia Commons)

Em 1956 o Brasil recebeu dos Estados Unidos um reator de pesquisa alimentado por urânio enriquecido em 90%, instalado na Universidade de São Paulo, informa o artigo (Angra 1/Wikimedia Commons)

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Da Redação

Publicado em 15 de agosto de 2018 às 14h29.

Última atualização em 15 de agosto de 2018 às 14h40.

O risco de um conflito nuclear, com consequências apocalípticas, perpassou todo o período da Guerra Fria, polarizada pelos Estados Unidos e a União Soviética desde o final da Segunda Guerra Mundial até o início da década de 1990.

Cunhou-se no período a expressão “Equilíbrio do Terror”, baseada na suposição de que uma conflagração real poderia ser evitada se houvesse equivalência no poder de destruição dos arsenais das duas superpotências. O cenário tornou-se mais complexo ao longo da década de 1960 e depois, com a emergência de novos detentores de tecnologia e armamentos nucleares.

Na América do Sul, a queda dos regimes militares possibilitou que as duas nações mais desenvolvidas da região, Brasil e Argentina, abrissem mão de perspectivas de uso não pacífico da energia nuclear e criassem, em 1991, a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), que se tornou também um importante ponto de apoio para a estruturação do Mercosul.

O físico José Goldemberg, presidente da FAPESP, analisou a evolução ocorrida no desenvolvimento nuclear dos dois países. Especialista em energia, Goldemberg escreveu, junto com Carlos Feu Alvim e Olga Mafra, da Ecen Consultoria, o artigo The Denuclearization of Brazil and Argentina, publicado no Journal for Peace and Nuclear Disarmament, periódico mantido pela Universidade de Nagasaki, no Japão.

O artigo – o primeiro do número inaugural do periódico – apresenta um panorama amplo das iniciativas internacionais voltadas para a desnuclearização e se aprofunda na descrição dos esforços nucleares brasileiro e argentino e nas tratativas que resultaram na criação da ABACC e em seu posterior desenvolvimento.

Secretário da Ciência e Tecnologia do Brasil durante o biênio 1990-1991, Goldemberg participou diretamente da negociação. E revelou, em primeira mão, os detalhes desse processo à Agência FAPESP.

“Houve uma conferência entre os presidentes Collor, do Brasil, e Menem, da Argentina, em Foz do Iguaçu. Lá aconteceu uma reunião da qual participaram quatro pessoas: Collor, Menem, um assessor de Menem e eu. Nessa reunião, foi discutido o fato de que tanto o Brasil quanto a Argentina apareciam na imprensa como países que estavam competindo pela produção de armas nucleares. Isso, além de não ser verdade, poderia provocar sanções da parte dos norte-americanos e europeus. Para pôr fim aos boatos e deixar tudo transparente, foi decidida a criação de uma agência bilateral”, disse Goldemberg.

“A criação da ABACC foi uma medida efetiva, que liberou aos brasileiros o acesso à inspeção das instalações argentinas, e aos argentinos o acesso à inspeção das instalações brasileiras. Posteriormente, os dois países aderiram ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, facultando à Agência Internacional de Energia Atômica (International Atomic Energy Agency – IAEA) a participação no sistema de inspeções”, acrescentou.

Como descreve o artigo, o Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (NPT) foi firmado por 189 países em 1970. Mas Brasil, Argentina e outros países consideraram esse acordo discriminatório, por congelar uma situação assimétrica, impedindo a proliferação da tecnologia e das armas nucleares, mas preservando os arsenais existentes.

Um acordo global mais equânime, o Tratado de Proibição das Armas Nucleares, só viria à votação quase meio século depois. Aprovado por 122 países na Assembleia Geral da ONU em julho de 2017, com apenas uma abstenção e um voto contrário, esse acordo tem como perspectiva a eliminação dos artefatos bélicos nucleares, levando em tese à completa desnuclearização do planeta no que se refere ao uso militar. Porém sua efetividade encontra-se comprometida, uma vez que os Estados Unidos, o Reino Unido e a França, três potências nucleares, declararam que “não participaram da negociação do tratado, e não pretendem assinar, ratificar ou fazer parte dele”.

Diante da dificuldade de uma solução abrangente, o artigo aponta os compromissos regionais como formas mais efetivas de enfrentamento do problema, com a criação de zonas desnuclearizadas. “Notavelmente, os acordos mais bem-sucedidos sobre desarmamento foram negociados primeiro na arena bilateral”, afirma o texto. No contexto latino-americano, o acordo brasileiro-argentino desempenha papel proeminente.

“Entre as 10 maiores economias do mundo, o Brasil é a única com domínio do ciclo de combustível nuclear que não possui nem depende de armas nucleares para sua proteção (...) a Argentina, atualmente na 27ª posição no ranking das economias mundiais, não tem ambições globais que possam motivar o desenvolvimento de armas nucleares”, argumenta o artigo.

Evidentemente, pela lógica impiedosa da geopolítica, se um dos dois países se engajasse em uma corrida nuclear, o outro se sentiria compelido a fazer o mesmo. Mas a criação da ABACC afastou essa ameaça do horizonte.

“A ABACC não apenas cria barreiras à proliferação por meio de salvaguardas como também reduz drasticamente a motivação para ter armas, construindo confiança entre os países da região”, enfatizou Goldemberg.

Corrida regional

A expectativa de um desenvolvimento nuclear independente foi uma ideia que prosperou bem cedo no Brasil e na Argentina, tanto no meio científico quanto no meio militar. No Brasil, começou a ganhar corpo desde o início dos anos 1950, quando foi criado o CNPq (inicialmente Conselho Nacional de Pesquisas, e, depois de 1974, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).

“Em 1956, sob o programa ‘Atoms for Peace’, o Brasil recebeu dos Estados Unidos um reator de pesquisa alimentado por urânio enriquecido em 90%. O reator foi instalado na Universidade de São Paulo, sob a jurisdição do governo federal”, informa o artigo. Mas o programa ‘Atoms for Peace’ foi criticado por importantes cientistas e militares pelo fato de tornar o país dependente do fornecimento de urânio enriquecido pelos Estados Unidos.

Como o enriquecimento do urânio parecia, na época, um objetivo muito distante para o Brasil, desenhou-se um projeto alternativo de reator alimentado por urânio natural. “O chamado Grupo do Tório propôs o uso de um reator de urânio natural, moderado por água pesada, com uma camada de tório 232 que se transformaria em urânio 233 e poderia ser utilizada posteriormente em substituição ao urânio 235. Desta forma, o Brasil poderia substituir o uso de urânio enriquecido por tório, que é abundante no país”, descreve o artigo.

No entanto, este projeto não ganhou apoio governamental e foi abandonado quando o governo decidiu, por razões políticas, adotar a tecnologia de reatores de água pressurizada (PWR). No final dos anos 1960, um reator de água pressurizada de 624 megawatts foi adquirido pelo governo federal da empresa norte-americana Westinghouse e instalado em Angra dos Reis, sob fortes críticas de cientistas e militares.

Enquanto isso, a Argentina adotava um programa mais independente, baseado em reatores canadenses abastecidos por urânio natural e moderados por água pesada, e no Atucha I, construído em cooperação com a Alemanha. Inicialmente baseado em urânio natural e depois modificado para utilizar urânio fracamente enriquecido, o Atucha I serviu de modelo para o Atucha II, vários anos mais tarde.

“A perspectiva de que a Argentina poderia, com o tempo, tornar-se autossuficiente para construir reatores próprios e desenvolver o reprocessamento nuclear tornou-se um assunto espinhoso entre o Brasil e a Argentina, alimentado pelo fato de ambos os países, assim como a Índia, não haverem aderido ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (NPT)”, prossegue o artigo.

Em reação, o governo militar brasileiro, na época comandado pelo general Ernesto Geisel, anunciou, em 1975, um ambicioso acordo de cooperação nuclear com a Alemanha Ocidental, com vistas a assegurar ao país o completo domínio do ciclo de combustível. Esse acordo, firmado sem consulta à comunidade científica, foi fortemente criticado como opção econômica e tecnológica.

“A justificativa oferecida pelo governo para o acordo era que o programa nuclear constituía uma resposta à crise do petróleo de 1973, que na época representava uma grave ameaça à balança comercial do país. Na verdade, esta foi a resposta errada porque a eletricidade no Brasil era produzida principalmente por usinas hidrelétricas e não por petróleo, de modo que construir reatores nucleares não reduziria a importação de petróleo, que era usado no transporte e na indústria. Houve também fortes reclamações de que o chamado acordo nuclear com a Alemanha não contemplava uma contribuição justa de insumos da indústria e das instituições tecnológicas locais”, afirma o artigo.

Além disso, o acordo foi visto pelo governo norte-americano, sob a administração Carter, como um possível caminho para o desenvolvimento de armas nucleares pelo regime militar brasileiro.

Em resposta, os Estados Unidos cancelaram as garantias de fornecimento de urânio enriquecido, necessário para reabastecer o reator de Angra I. E, como sintetizou o artigo, “o acordo Brasil-Alemanha desmoronou sob pressão dos EUA devido às suas próprias fraquezas”.

Mas a ambição nuclear continuou na pauta do regime militar. E adquiriu formas concretas sob o governo do general João Batista de Oliveira Figueiredo, quando três programas paralelos, tocados respectivamente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, foram iniciados.

Deles, o da Marinha, instalado no Centro Experimental de Aramar, em Iperó-SP, conduzido por pesquisadores treinados no Massachusetts Institute of Technology (MIT), e nominalmente destinado à construção de um submarino nuclear brasileiro, foi o que mais prosperou, obtendo urânio enriquecido em 20% por ultracentrifugação.

Documento secreto do Conselho de Segurança Nacional, divulgado pela imprensa após a redemocratização do país, justificava o programa nuclear paralelo e definia, como um dos objetivos, a fabricação de explosivos nucleares, “com finalidades pacíficas”.

Mas, como demonstra o artigo, a falta de coordenação entre as várias iniciativas e o enorme empate de dinheiro no acordo com a Alemanha tornaram esse esforço pouco efetivo. Enquanto isso, agentes do Serviço Nacional de Informação, SNI, lotados na embaixada do Brasil em Buenos Aires, transmitiam informes ultrassecretos ao governo e à cúpula militar sobre o desenvolvimento acelerado da Argentina no setor.

“Não há evidência de que, durante os respectivos períodos militares, Brasil e Argentina tenham efetivamente se engajado na produção da bomba. Empenharam-se, sim, no desenvolvimento de tecnologias que poderiam preparar os países para a subsequente fabricação de armas nucleares”, disse Goldemberg.

Mesmo assim, os Estados Unidos viram esses esforços com grande suspeita e bloquearam a transferência ao país de equipamentos que poderiam facilitá-los. Instituições que nada tinham a ver com o programa nuclear, como a Petrobras, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e as universidades, foram prejudicadas, impedidas de receber computadores de alta velocidade comprados de companhias norte-americanas.

Fins pacíficos

Após a redemocratização do Brasil, a Constituição de 1988 estabeleceu claramente que “toda atividade nuclear em território nacional deve ser admitida apenas para fins pacíficos e sob aprovação do Congresso Nacional”. A construção de confiança entre Brasil e Argentina e o acordo efetivo entre os dois países foi decorrência da redemocratização. Goldemberg contou como participou do processo.

Encerrado seu mandato como reitor da Universidade de São Paulo, e exercendo há apenas dois meses e meio o cargo de secretário da Educação do Estado de São Paulo, ele foi convidado, um dia antes da posse de Fernando Collor de Mello, a assumir a Secretaria de Ciência e Tecnologia da Presidência da República.

Com a extinção do Ministério de Ciência e Tecnologia, a Secretaria passava a coordenar órgãos como o CNPq, a Finep e outros, mas, estando lotada diretamente na Presidência, ficava também em sintonia com os problemas políticos.

“E havia, na época, um problema político sério que eram as frequentes matérias da imprensa sobre o suposto programa secreto das Forças Armadas voltado para a produção de armas nucleares. O presidente me interrogou sobre isso. E eu lhe respondi que as atividades nucleares do Ipen [Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares] eu conhecia bem, por ter sido reitor da Universidade de São Paulo. Lá era feito enriquecimento do urânio, mas nada que pudesse ser voltado para a produção bélica. Porém os jornais diziam que havia atividades no Exército, na Marinha e na Aeronáutica. E isso eu não sabia se era verdade”, disse.

Collor pediu-lhe então que visitasse essas instalações e chamou um general para acompanhá-lo. O físico foi e constatou que não havia, na realidade, preparativos avançados para a produção de armas nucleares. Mas existiam grupos dentro dessas estruturas que procuravam transmitir tal imagem, com o objetivo de realçar sua própria importância.

Nesse contexto, surgiu a notícia da descoberta, em Cachimbo, no Pará, de poços muito profundos, que a imprensa alegava terem sido construídos para testes nucleares subterrâneos. “Collor foi a Cachimbo e, em um gesto simbólico, atirou uma pá de cal em um dos poços, sinalizando assim o não engajamento do Brasil na produção de armas nucleares”, relatou Goldemberg.

A reunião dos presidentes Collor e Menem em Foz do Iguaçu, que resultou na criação da ABACC, ocorreu pouco depois. Segundo Goldemberg, antes disso, o Itamaraty havia participado de entendimentos, mas sem resultados concretos. Foi a ABACC que pôs um ponto final na desconfiança mútua. “Durante as tratativas, houve o questionamento de por que não apelar diretamente para a mediação da Agência Internacional de Energia Atômica. Mas o argumento de que a IAEA era dominada pelas grandes potências prevaleceu”, detalhou o físico.

“Mais tarde, no governo Fernando Henrique Cardoso, foi firmado o acordo com a IAEA. Eu já não estava mais no governo, mas o presidente Fernando Henrique me perguntou se não seria o caso de extinguir a ABACC, uma vez que a IAEA poderia fazer a mediação e se encarregar das inspeções. Eu lhe disse que achava melhor preservar a ABACC, porque há sempre suspeitas de que as agências internacionais possam ser manipuladas pelas grandes potências. A ABACC foi mantida e está funcionando muito bem até agora. Graças a ela, o Cone Sul da América Latina ficou desnuclearizado”, disse Goldemberg.

O resultado foi tão positivo que inspirou o governo da Índia a tentar uma solução semelhante. Mas as tratativas com o Paquistão não prosperaram. Estima-se que a Índia possua 135 artefatos nucleares, e o Paquistão, 145, segundo a Arms Control Association.

O artigo The Denuclearization of Brazil and Argentina, de José Goldemberg, Carlos Feu Alvim e Olga Y. Mafra, pode ser lido em www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/25751654.2018.1479129.

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