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Romano, da Unicamp: Presidentes são frágeis

“Chegamos a esse ponto porque os mecanismos normais do funcionamento do Estado não serviram, não deram certo”, diz o filósofo

ROBERTO ROMANO: a lei do impeachment é antiga, e não corresponde às necessidades do Brasil de hoje / Alexandre Schneider

Raphael Martins

Publicado em 2 de setembro de 2016 às 16h12.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h58.

O processo de impeachment de Dilma Rousseff, que definiu sua cassação na última quarta-feira, entra para a história como um dos momentos mais traumáticos da história recente do país. Mas representa risco às instituições democráticas?Para o filósofo e professor de ética da Unicamp, Roberto Romano, uma ruptura democrática não seria definida pelo processo em si, mas pela forma como o país se sairá daqui em diante. Se asseguradas a liberdade de expressão e a alternância de poder, para ele, não há motivo para alarde.“Chegamos a esse ponto porque os mecanismos normais do funcionamento do Estado não serviram, não deram certo”, diz Romano.O acadêmico acredita ainda que o processo de impeachment é legítimo, mas a lei que o rege não atende aos tempos atuais. Romano concedeu a seguinte entrevista EXAME Hoje.

O que implica o fato de discutirmos até agora se houve ou não crime de responsabilidade no processo de impeachment?
O impeachment sempre é um procedimento traumático. É traumático porque sai do estritamente legal, do que é definido pela Constituição, pela norma jurídica. Ele acolhe a possibilidade de um juízo estritamente político pelo Senado Federal. O juízo político passa por vários interesses ideológicos, sociais e econômicos que norteiam a ação dos julgadores. Então não pode esperar um juízo de tribunal. Isso que causa esse desconforto. Há uma espécie de impossibilidade de apelar para a lei na sua essência e essa comoção não é sanável. Tudo isso faz parte desse “remédio” com suas contraindicações. Vejamos se o remédio não mata o doente.

Essa indecisão macula a imagem das nossas instituições?
O problema não está nelas. O problema é o fato de precisarmos usar um “remédio heroico” que mostra o quanto as instituições estão alheias à legitimidade da população. Chegamos a esse ponto porque os mecanismos normais do funcionamento do Estado não serviram, não deram certo. Não é que o impeachment pode macular a imagem do Legislativo, mas é um sintoma, um resultado dessa falha estrutural do relacionamento entre os representantes com o representado. Há uma desconfiança enorme do povo em relação ao Executivo, ao Legislativo e até ao Judiciário.

Senadores da base de Dilma reclamaram de cartas marcadas durante o julgamento. Isso é um problema real?
O julgamento é essencialmente político. A questão simbólica pouco discutida é que o Senado é a representação dos estados junto ao poder central. Não se trata de uma decisão estritamente jurídica, mas de uma decisão institucional, federativa, que leva em conta autonomia dos estados. Assim, os representantes têm direito de expressar opinião antes do julgamento, como prestação de contas. Não é como um julgamento normal, em que o juiz está impedido de se manifestar fora dos autos. O PT pediu o impeachment de FHC lá atrás e tenho certeza que a mesma situação aconteceria. É mais um argumento retórico do que de peso político ou jurídico.

Três senadores declararam na quarta-feira que tinham convicção que a presidente não cometeu crime, mas era a alternativa para retomar a governabilidade. Esse discurso não compromete a legitimidade do processo?
O juízo desses senadores é muito próximo à técnica para garantir a governabilidade comum a todos os políticos. Assim, passam por cima da rigorosidade da lei, num sistema ‘dando que se recebe’. E foi algo muito usado por Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro governo. Veja, o PT abandonou todo o seu programa quando assinou a Carta aos Brasileiros e contrariou o programa de moralização da coisa pública quando se uniu a José Sarney, Paulo Maluf, Jader Barbalho, etc. Houve uma espécie de abuso, de passar por cima das próprias ideias tendo em vista a governabilidade. A governabilidade é um mantra que atravessa todo o relacionamento do presidente com o Congresso porque a presidência tem poderes enormes, mas tem um ponto frágil que é a quase impossibilidade de ter uma base aliada constante e fiel. Porque lhe faltaram isso, Jânio Quadros, João Goulart e Fernando Collor caíram. Agora Dilma.

Por possibilitar que um presidente seja derrubado por argumento jurídico ainda confuso, podemos concluir que a lei do impeachment é frágil?
A lei do impeachment é de 1950. Desde então, fizemos uma modificação enorme da sociedade e economia brasileira. Essa lei é antiga, não corresponde à realidade complexa do Estado e sociedade de hoje e colide de certo modo com a Constituição. A discussão de ontem foi isso. A Constituição rege que o cassado deve ficar oito anos sem cargo público, sem separação da perda de direitos. Mas a lei antiga retomada criou uma confusão que precisa acabar. É necessária uma regra constitucional especifica que corresponda a complexidade da vida política e social de hoje.

Fala-se em risco à democracia. Até que ponto isso é verdade?
Todo ato político, sobretudo nas altas esferas de um Estado, é arriscado. Desde uma lei da ordem econômica, um aumento de juro, o preço da gasolina, tudo isso traz risco. Segundo ponto, a democracia é sempre um regime mais arriscado de sofrer dominação pela força do que os outros regimes. Um regime ditatorial tem exército ao seu dispor e mesmo assim teve problemas. Na ditadura, não se podia governar sem representação política e apoio da sociedade. A democracia é muito mais frágil. Desde a Grécia, ela sofre perigos internos, externos, de rebeliões, golpes, etc. Isso é agenda da democracia. O mais importante é como ela supera esses períodos e como garante liberdade de oposição, alternância de poder, liberdade de imprensa, etc. Se não garantir esses pontos, não é mais democracia.

A falta de continuidade de presidentes brasileiros eleitos representa falha no sistema político? É hora de discutir a transição para um parlamentarismo, por exemplo?
O sistema político é um Frankenstein. Atribui demasiado poder ao presidente da República, mas exige essa adesão forte e majoritária do Congresso Nacional. A Presidência é um gigante de pés de barro. Isso faz com que qualquer presidente que não tem condições de maioria caia. Isso poderia se resolver com o parlamentarismo, em que o chefe de Estado garante a estabilidade, enquanto o primeiro ministro responde diante do Congresso. Essa é uma maneira de fazer o Congresso se responsabilizar. Durante todo esse processo de Dilma, uma pergunta que não se fez é: onde estava o Congresso quando os atos de responsabilidade fiscal foram cometidos? O que foi feito? Qual a atuação do Congresso para barrar esses atos? Como o Legislativo fiscalizou o Executivo? Como que o TCU que é composto por ex-políticos deixou tanto tempo para assumir posição tão drástica como 2014 e 2015? Isso é uma prática que vem de longa data. Esse modo de prover cargos e divisão dos poderes é extremamente falha e atabalhoada no Brasil. O parlamentarismo pode ser uma solução desde que assegure que parlamentares sejam responsabilizados pelas ações do governo que eles aprovam ou fazem cair.

Algum outro sistema seria adequado?
Não sei se uma mudança de sistema. Essa distorção de poderes é algo que vem desde Platão. Podemos olhar por esse lado: Benjamin Constant tentou aplicar o poder moderador, algo que foi usado aqui. Ele queria evitar a ditadura do executivo e a ditadura dos parlamentares. Ele propunha um chefe de estado como poder neutro que poderia coordenar os dois. Na Constituição de 1824, o conceito deu errado porque virou um poder superior a todos. Essa tese continuou na República, com um poder superior para o presidente da República, que se soma a um elemento da democracia que é prestação de contas e fiscalização do Congresso. É nesse núcleo de coordenação do chefe de Estado que deveria se voltar a atenção de juristas e sociólogos para redefinir esse imenso poder que é dependente do Legislativo.

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O processo de impeachment de Dilma Rousseff, que definiu sua cassação na última quarta-feira, entra para a história como um dos momentos mais traumáticos da história recente do país. Mas representa risco às instituições democráticas?Para o filósofo e professor de ética da Unicamp, Roberto Romano, uma ruptura democrática não seria definida pelo processo em si, mas pela forma como o país se sairá daqui em diante. Se asseguradas a liberdade de expressão e a alternância de poder, para ele, não há motivo para alarde.“Chegamos a esse ponto porque os mecanismos normais do funcionamento do Estado não serviram, não deram certo”, diz Romano.O acadêmico acredita ainda que o processo de impeachment é legítimo, mas a lei que o rege não atende aos tempos atuais. Romano concedeu a seguinte entrevista EXAME Hoje.

O que implica o fato de discutirmos até agora se houve ou não crime de responsabilidade no processo de impeachment?
O impeachment sempre é um procedimento traumático. É traumático porque sai do estritamente legal, do que é definido pela Constituição, pela norma jurídica. Ele acolhe a possibilidade de um juízo estritamente político pelo Senado Federal. O juízo político passa por vários interesses ideológicos, sociais e econômicos que norteiam a ação dos julgadores. Então não pode esperar um juízo de tribunal. Isso que causa esse desconforto. Há uma espécie de impossibilidade de apelar para a lei na sua essência e essa comoção não é sanável. Tudo isso faz parte desse “remédio” com suas contraindicações. Vejamos se o remédio não mata o doente.

Essa indecisão macula a imagem das nossas instituições?
O problema não está nelas. O problema é o fato de precisarmos usar um “remédio heroico” que mostra o quanto as instituições estão alheias à legitimidade da população. Chegamos a esse ponto porque os mecanismos normais do funcionamento do Estado não serviram, não deram certo. Não é que o impeachment pode macular a imagem do Legislativo, mas é um sintoma, um resultado dessa falha estrutural do relacionamento entre os representantes com o representado. Há uma desconfiança enorme do povo em relação ao Executivo, ao Legislativo e até ao Judiciário.

Senadores da base de Dilma reclamaram de cartas marcadas durante o julgamento. Isso é um problema real?
O julgamento é essencialmente político. A questão simbólica pouco discutida é que o Senado é a representação dos estados junto ao poder central. Não se trata de uma decisão estritamente jurídica, mas de uma decisão institucional, federativa, que leva em conta autonomia dos estados. Assim, os representantes têm direito de expressar opinião antes do julgamento, como prestação de contas. Não é como um julgamento normal, em que o juiz está impedido de se manifestar fora dos autos. O PT pediu o impeachment de FHC lá atrás e tenho certeza que a mesma situação aconteceria. É mais um argumento retórico do que de peso político ou jurídico.

Três senadores declararam na quarta-feira que tinham convicção que a presidente não cometeu crime, mas era a alternativa para retomar a governabilidade. Esse discurso não compromete a legitimidade do processo?
O juízo desses senadores é muito próximo à técnica para garantir a governabilidade comum a todos os políticos. Assim, passam por cima da rigorosidade da lei, num sistema ‘dando que se recebe’. E foi algo muito usado por Luiz Inácio Lula da Silva em seu primeiro governo. Veja, o PT abandonou todo o seu programa quando assinou a Carta aos Brasileiros e contrariou o programa de moralização da coisa pública quando se uniu a José Sarney, Paulo Maluf, Jader Barbalho, etc. Houve uma espécie de abuso, de passar por cima das próprias ideias tendo em vista a governabilidade. A governabilidade é um mantra que atravessa todo o relacionamento do presidente com o Congresso porque a presidência tem poderes enormes, mas tem um ponto frágil que é a quase impossibilidade de ter uma base aliada constante e fiel. Porque lhe faltaram isso, Jânio Quadros, João Goulart e Fernando Collor caíram. Agora Dilma.

Por possibilitar que um presidente seja derrubado por argumento jurídico ainda confuso, podemos concluir que a lei do impeachment é frágil?
A lei do impeachment é de 1950. Desde então, fizemos uma modificação enorme da sociedade e economia brasileira. Essa lei é antiga, não corresponde à realidade complexa do Estado e sociedade de hoje e colide de certo modo com a Constituição. A discussão de ontem foi isso. A Constituição rege que o cassado deve ficar oito anos sem cargo público, sem separação da perda de direitos. Mas a lei antiga retomada criou uma confusão que precisa acabar. É necessária uma regra constitucional especifica que corresponda a complexidade da vida política e social de hoje.

Fala-se em risco à democracia. Até que ponto isso é verdade?
Todo ato político, sobretudo nas altas esferas de um Estado, é arriscado. Desde uma lei da ordem econômica, um aumento de juro, o preço da gasolina, tudo isso traz risco. Segundo ponto, a democracia é sempre um regime mais arriscado de sofrer dominação pela força do que os outros regimes. Um regime ditatorial tem exército ao seu dispor e mesmo assim teve problemas. Na ditadura, não se podia governar sem representação política e apoio da sociedade. A democracia é muito mais frágil. Desde a Grécia, ela sofre perigos internos, externos, de rebeliões, golpes, etc. Isso é agenda da democracia. O mais importante é como ela supera esses períodos e como garante liberdade de oposição, alternância de poder, liberdade de imprensa, etc. Se não garantir esses pontos, não é mais democracia.

A falta de continuidade de presidentes brasileiros eleitos representa falha no sistema político? É hora de discutir a transição para um parlamentarismo, por exemplo?
O sistema político é um Frankenstein. Atribui demasiado poder ao presidente da República, mas exige essa adesão forte e majoritária do Congresso Nacional. A Presidência é um gigante de pés de barro. Isso faz com que qualquer presidente que não tem condições de maioria caia. Isso poderia se resolver com o parlamentarismo, em que o chefe de Estado garante a estabilidade, enquanto o primeiro ministro responde diante do Congresso. Essa é uma maneira de fazer o Congresso se responsabilizar. Durante todo esse processo de Dilma, uma pergunta que não se fez é: onde estava o Congresso quando os atos de responsabilidade fiscal foram cometidos? O que foi feito? Qual a atuação do Congresso para barrar esses atos? Como o Legislativo fiscalizou o Executivo? Como que o TCU que é composto por ex-políticos deixou tanto tempo para assumir posição tão drástica como 2014 e 2015? Isso é uma prática que vem de longa data. Esse modo de prover cargos e divisão dos poderes é extremamente falha e atabalhoada no Brasil. O parlamentarismo pode ser uma solução desde que assegure que parlamentares sejam responsabilizados pelas ações do governo que eles aprovam ou fazem cair.

Algum outro sistema seria adequado?
Não sei se uma mudança de sistema. Essa distorção de poderes é algo que vem desde Platão. Podemos olhar por esse lado: Benjamin Constant tentou aplicar o poder moderador, algo que foi usado aqui. Ele queria evitar a ditadura do executivo e a ditadura dos parlamentares. Ele propunha um chefe de estado como poder neutro que poderia coordenar os dois. Na Constituição de 1824, o conceito deu errado porque virou um poder superior a todos. Essa tese continuou na República, com um poder superior para o presidente da República, que se soma a um elemento da democracia que é prestação de contas e fiscalização do Congresso. É nesse núcleo de coordenação do chefe de Estado que deveria se voltar a atenção de juristas e sociólogos para redefinir esse imenso poder que é dependente do Legislativo.

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