RIO DE JANEIRO: trabalhadores montam arquibancada de vôlei de praia, em Copacabana / Mario Tama/Getty Images
Da Redação
Publicado em 31 de março de 2017 às 20h46.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h00.
Camila Almeida
Foi sancionada na sexta-feira pelo presidente Michel Temer a lei 4.302/98, que dá às empresas o direito de terceirizar qualquer atividade – mesmo naquelas que são o coração do negócio. A proposta, com texto original de 1998, não era a única a circular no legislativo, mas foi resgatada e votada pelos deputados no dia 22 de março. A flexibilização das leis trabalhistas, segundo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), cumpre uma “agenda pró mercado, pró emprego” para ajudar a recuperar a economia. A declaração foi feita em evento da Confederação Nacional da Indústria (CNI), no da 28.
Não faltaram polêmicas em torno do projeto. Os senadores tentaram se mobilizar para votar às pressas um outro projeto mais “brando” (o PL 4.330/04) sobre o qual corriam discussões desde 2015, quando o texto chegou à Casa. Caso aprovado a tempo, Temer poderia escolher qual dos dois projetos sancionar. Porém, como o prazo entre a aprovação de um projeto e a sanção do presidente é de apenas 15 dias, o tempo para os senadores conduzirem a votação do texto foi curto – e ainda esbarrou nos interesses da bancada governista. O presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), afirmou que o projeto aprovado pelos deputados é o que deveria ser sancionado, praticamente colocando uma pá de cal sobre as alternativas.
Na sexta-feira, um ato nacional levou trabalhadores às ruas de todo o país, em protesto contra as reformas que estão sendo conduzidas pelo governo federal. As centrais sindicais entendem que o projeto oferece poucas salvaguardas aos trabalhadores. Temer poderia ter vetado alguns trechos do texto, mas o aprovou integralmente.
A lei não determina que terceirizados recebam o mesmo salário e os mesmos benefícios dos funcionários contratados, mesmo que realizem a mesma função na empresa, não autoriza que eles se filiem ao mesmo sindicato da categoria e isenta a empresa contratante de processos judiciais – que devem responsabilizar a empresa terceirizada, a não ser em caso de falência da firma ou outro tipo de ausência. O texto também não trata da “pejotização”, em que funcionários são contratados como pessoa jurídica para realizar a prestação de serviços, de modo a tentar disfarçar vínculos empregatícios.
Fica garantido apenas que: os terceirizados não podem realizar serviços diferentes dos quais foram contratados para exercer, que devem ter as mesmas condições de segurança funcionários contratados e que continuam garantidos pelas regras da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), já que a empresa terceirizada é obrigada a assinar a carteira dos funcionários, a garantir os benefícios formais exigidos por lei e a assumir todos os custos referentes à contratação e demissão. A votação que permitiu que o projeto fosse aprovado foi apertada – 231 votos a favor, 188 conta e 8 abstenções – e contou com votos contrários inclusive do PSDB e do PMDB, componentes da base aliada do governo. Uma reforma completa das leis do trabalho deve começar a ser votada a partir do dia 17 de abril. O relator do projeto, o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), afirmou que nada impede que possíveis ajustes à regulamentação da terceirização sejam incluídas no texto.
A crise no mercado de trabalho
Atualmente, cerca de 12 milhões de trabalhadores brasileiros já trabalham como terceirizados, e não contavam com qualquer regulamentação legal da atividade. Todas as regras para sua atuação era baseada em jurisprudências – calcadas em decisões sobre processos trabalhistas apresentados à Justiça. Modernizar a lei para abarcar as necessidades desses trabalhadores e para garantir segurança jurídica às empresas que contratam operadoras de prestação de serviço era uma necessidade.
O desemprego também bateu um novo recorde em fevereiro. Na sexta-feira, foi divulgado que 13,5 milhões de pessoas estão sem trabalho – um total de 13,2% da população e um aumento de mais de 3 milhões de desempregados em um único ano. Além disso, a taxa de desocupação aumentou 2%, representando um fechamento de 1,8 milhão de postos de trabalho no período. A taxa de desemprego também poderia ter sido ainda maior, mas 780.000 pessoas também migraram para a inatividade no último ano – seja por terem começado a executar algum trabalho informal ou por terem desistido de caçar alguma vaga.
Nesse cenário, a transição para um cenário com maior prestação de serviços já é realidade. O trabalho formal, com carteira assinada, também tem sido estrangulado com a crise: 1,1 milhão de vagas foram cortadas no último ano. Enquanto isso, no setor privado, a contratação de funcionários sem carteira aumentou 5,5% – uma alta de 531.000 pessoas trabalhando de forma temporária, e sem direito a benefícios.
A experiência brasileira prévia mostra que a terceirização tem gerado precarização do trabalho, porque o foco das propostas tem sido equivocado. De acordo com o economista Márcio Pochmann, especialista em emprego da Unicamp e ex-diretor do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Brasil viveu um momento de estímulo a terceirização na década de 1990, quando o país também estava em crise. “A terceirização é um fato, e pode ser usada com objetivo de elevar a produtividade, permitindo que a empresa se concentre em sua atividade finalística. No Brasil, o foco é o corte de custos”, afirma.
“Naquela época, já notamos que a terceirização trouxe anomalias para o mercado de trabalho, como aumento da rotatividade, rebaixamento de salários e mais acidentes de trabalho”. Um estudo da Central Única dos Trabalhadores, realizado em 2015 em parceria com o Dieese, mostra que terceirizados recebem 25% menos, sofrem 80% dos acidentes de trabalho e trabalham 7,5% mais horas. O especialista entende ainda que, em vez de o texto regularizar a atividade para garantir mais salvaguardas aos trabalhadores e às empresas, ele a generaliza.
A experiência no mundo
A flexibilização das leis trabalhistas na Espanha também se deu num cenário crítico de crise, em 2012, revelando algumas das consequências que o Brasil pode passar a enfrentar. O objetivo da reforma, como a brasileira, era reduzir a destruição de empregos facilitando as condições de contratação (e demissão) nas empresas. O desemprego de fato caiu: passou de 25% em 2012 para 17% em 2017. A mudança garantiu que vagas de trabalho fossem salvas. No final de 2016, a Espanha somava 18,5 milhões de pessoas trabalhando, 350.000 a mais do que no final de 2011, antes da reforma.
Porém, os especialistas não se sentem confortáveis em associar a queda no desemprego com reformas trabalhistas, porque o crescimento da economia envolve uma série de fatores. Mas uma associação mais direta é possível fazer: por lá, a qualidade dos empregos ofertados piorou. De acordo com o pesquisador Jesus Villalón, especialista em direito do trabalho e seguridade social da Universidade de Sevilha, estima-se que a média de salários tenha caído 10% desde a reforma (hoje, os espanhóis ganham cerca de 16 mil euros por ano), com maior dano nos pagamentos para os trabalhadores de classes mais baixas e menos especializados.
Nos países europeus (e especialmente nos Estados Unidos), a terceirização tem caráter diferente do que se vê no Brasil, no restante da América Latina ou na Ásia. O alto custo da mão-de-obra e o câmbio incentivam que os terceirizados sejam contratados em outros países, garantindo mais competitividade no contexto global. “É comum que as fábricas espanholas contratem serviços no Marrocos ou no Extremo Oriente, em países como Paquistão ou Bangladesh”, diz o professor Villalón, de Sevilha, citando o exemplo da gigante têxtil Inditex, que praticamente não tem confecções em solo espanhol – e se envolveu em diversos escândalos relacionados a profissionais trabalhando em condições de escravidão, especialmente para a marca de roupas Zara.
Em análise para a rede de notícias BBC Brasil, O chefe da divisão de Globalização e Estratégias de Desenvolvimento da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad), Richard Kozul-Wright, afirmou que, se o objetivo da lei brasileira era baixar os custos para atrair mais investimento estrangeiro e poder receber algumas dessas plantas, a estratégia é furada. O exemplo de outros países mostra que a mão-de-obra barata não é o único fator que atrai essas empresas, e que não seria o caso para o Brasil competir nesse quesito com a China e outros asiáticos.
Apesar de na Espanha a terceirização ter esse caráter offshore, o modo como as empresas podem contratar no país é semelhante ao aprovado na lei brasileira. Lá, não há restrições para o tipo de serviço a ser contratado, e as empresas podem subcontratar os serviços que julgarem necessários. Mas há pouco controle da atividade, e não há nem dados oficiais publicados no país. “Sabemos que, desde a reforma, tem aumentado esse tipo de serviço, porque tem sido uma queixa cada vez mais frequente dos sindicatos”, diz o especialista.
Neste momento, o partido socialista (PSOE) está conduzindo no Congresso um projeto de lei que obrigue equidade no salário de funcionários e subcontratados – ponto que a lei brasileira não cobre. O projeto cita que a terceirização é benéfica e desejável quando favorece a especialização e a incorporação de novas tecnologias ao negócio, mas ressalta que, em alguns casos, os trabalhadores terceirizados recebem até 50% menos. O texto dá o exemplo de uma camareiras que, quando contratada pela rede de hotel, recebe 1.200 euros pelo serviço, mas, quando contratada pela terceirizada, recebe apenas um salário mínimo – que na Espanha é de 700 euros.
A situação do trabalho temporário, que é incentivado pela lei brasileira, também é grave. A falta de estímulo à contratação formal fez com que um problema que vem se arrastando continuasse sem solução. A taxa não diminuiu com a reforma (passou de 25% para 26,5% – a segunda maior taxa da Europa, segundo o Eurostat), agravando a rotatividade nas empresas e dificuldade do profissional de estruturar uma carreira. De acordo com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o cenário é mais grave ainda entre os jovens: 70% dos trabalhadores com menos de 25 anos estão empregados de forma temporária. A média da OCDE é de 25%.
A perda de inteligência
O país que mais pratica a terceirização são os Estados Unidos. Foi lá que o termo nasceu, em 1937, pelo economista Ronald Coase, que publicou pela primeira vez um artigo sobre esse tipo de estrutura empresarial. A difusão do conceito veio na década de 1960, quando várias empresas americanas começaram a terceirizar a produção para fábricas no México. Atualmente, cerca de 3,3 milhões de pessoas estão trabalhando para empresas americanas em outro país – e a experiência americana com a externalização da força de trabalho pode ensinar muito às empresas brasileiras.
Um estudo realizado em 2014 pelo Instituto de Política Econômica analisou os impactos da terceirização dos trabalhos para a China, desde que o país entrou na Organização Mundial do Comércio, em 2001. De lá até 2013, o comércio com a China rendeu um déficit à balança comercial americana de 240 bilhões de dólares – muito em parte pela importação de eletrônicos. Só a indústria da computação transferiu 1,2 milhão de vagas para a economia chinesa no período. As transferências fizeram com que os trabalhadores diretamente afetados perdessem 37 bilhões de dólares em renda em uma década. Mas o estudo também olhou para os 100 milhões de trabalhadores que não têm ensino superior: eles tiveram que passar a aceitar salários mais baixos para competir com os preços chineses e, ao todo, deixaram de ganhar 180 bilhões de dólares.
Isso mostra que, externalizar as funções têm impactos para o próprio negócio americano – assim como a terceirização traz impactos para as empresas que decidem externalizar parte das suas atividades e para o Brasil. Além da deterioração das condições para os trabalhadores, que têm visto seu custo como muito elevado pelas empresas, os Estados Unidos têm tido dificuldade de criar novas vagas internamente. E outros problemas também surgiram: a perda de conhecimento interno, já que os países emergentes têm investido muito em qualificação e tem abocanhado parte desse trabalho de alto nível; a perda de capacidade industrial, com menos investimentos na indústria local; e instabilidade para as empresas, que dependem da manutenção de boas relações diplomáticas com os países onde terceirizam mão-de-obra.
Resumindo: a terceirização pode trazer ganhos de produtividade, custos menores e foco na especialização. Porém, há impactos para todos os envolvidos: funcionários, empresas e economia. A classe trabalhadora provavelmente terá mais chances de conseguir um trabalho, mas menos chances de crescimento profissional, menor proteção jurídica e rendimentos um tanto menores. As empresas vão acumular menos inteligência, menos porte e menos controle. Antes de terceirizar, é fundamental avaliar os prós e contras, e perceber quando o barato pode sair caro.