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Os destrutivos dogmáticos da Alemanha

Talvez a maior ameaça ao futuro da Europa seja a presunção que ainda dominam o país europeu por excelência

MARIO DRAGHI, DO BANCO CENTRAL EUROPEU: qualquer que seja a causa da desaceleração, o continente precisa aumentar os gastos desesperadamente / Bloomberg / Getty Images
MARIO DRAGHI, DO BANCO CENTRAL EUROPEU: qualquer que seja a causa da desaceleração, o continente precisa aumentar os gastos desesperadamente / Bloomberg / Getty Images
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Paul Krugman

Publicado em 16 de outubro de 2019 às, 15h10.

Alguém se lembra de quando costumava se falar, sem ironia, sobre o mundo livre? Houve uma época em que as democracias desenvolvidas pareciam compartilhar tanto valores políticos quanto visões do futuro: até recentemente, coisa de uma década atrás, não parecia tolice imaginar um mundo em que os Estados Unidos e a União Europeia cooperassem para manter a estabilidade mundial e o estado de direito.

Hoje em dia, sem dúvida, isso tudo parece um delírio. E o problema não são só os Estados Unidos, por mais assustador que o presidente Trump possa ser. A Europa também está uma bagunça, e é uma confusão que vai muito além do Brexit e de todas essas coisas. De fato, talvez a maior ameaça ao futuro da Europa não sejam as insurreições britânicas, ou mesmo a ruína da democracia na Hungria e na Polônia, mas sim o dogmatismo e a presunção que ainda dominam o país europeu por excelência: a Alemanha.

Para quem não tem acompanhado, há sete anos uma crise financeira e econômica – vinda logo após a crise mundial que teve início em 2008 – quase arrebentou a UE. Os países do Sul da Europa foram pegos em uma “espiral de ruína” de taxas de juros em disparada, bancos quebrando e levantes políticos.

O problema foi agravado pela insistência de algumas lideranças europeias, especialmente na Alemanha, de que a crise foi causada pela extravagância dos governos, o que era verdade somente no caso da Grécia e de nenhum outro país. Esses líderes exigiram que os países encrencados impusessem uma severa austeridade fiscal em suas economias, cortando gastos diante de um cenário de desemprego em massa, o que fez a crise se aprofundar ainda mais.

Ainda assim a Europa conseguiu sair do abismo, em grande parte graças a um homem: Mario Draghi, o presidente demissionário do Banco Central Europeu. Draghi disse quatro palavras – “custe o que custar”-, e depois sustentou essas palavras com uma promessa de comprar títulos públicos se necessário. Esta promessa, combinada com a disposição do banco de imprimir um grande volume de dinheiro, foi o suficiente para botar em curto-circuito a espiral de ruína, preparando o cenário para uma recuperação europeia.

Agora, porém, o crescimento europeu voltou a ser interrompido. O melhor palpite sobre o porquê é que a Europa sofre de uma demanda persistentemente fraca por causa de seu crescimento populacional pequeno. Esta fraqueza foi mascarada durante um tempo tanto pela recuperação da crise da dívida quanto pelas exportações em uma alta cada vez maior para a China, mas agora isso reapareceu. E qualquer que seja a causa da desaceleração, o continente precisa aumentar os gastos desesperadamente.

Porém, dar o tipo de apoio de que a Europa precisa exigiria duas coisas. Primeiro, a Alemanha teria de abandonar a obsessão dela com os males do déficit público – afinal, as taxas de juro da dívida alemã são negativas, ou seja, os investidores estão literalmente dispostos a pagar à Alemanha para pegar o dinheiro do país e gastá-lo. Segundo, o banco central precisa continuar a imprimir dinheiro.

Porém, embora o argumento a favor do incentivo fiscal seja irrefutável – fora que não conceder tal estímulo neste momento é absolutamente perigoso -, a Alemanha exibe poucos sinais de que esteja disposta a abandonar sua obsessão com o equilíbrio das contas, pelo menos a um nível que seja suficiente para fazer diferença de fato. Ao mesmo tempo, várias personalidades alemãs de destaque, inclusive ex-diretores de bancos centrais, se juntaram para expor os esforços dos bancos centrais para manter a economia em movimento. O Financial Times, em um editorial pungente, chamou essa atitude de “o rugido dos dinossauros”. Infelizmente, ela pode colocar pressão na nova presidente do banco, Christine Lagarde.

A boa notícia é que os europeus não estão destruindo a credibilidade deles do mesmo modo que nós, com a “sabedoria imensa e sem igual” (o termo é dele, não meu) de Trump. A má notícia é que eles estão destruindo a credibilidade deles de um jeito totalmente diferente, por meio do dogmatismo das autoridades, principalmente da Alemanha, que não parecem ter aprendido qualquer coisa com a última década.

Ah, mundo livre. Nós esperávamos tanta coisa de você.