Ciência

O mundo pós-coronavírus

Neurocientista Stevens Rehen aborda mudanças em diversas áreas da sociedade após a pandemia

O neurocientista Stevens Rehen (Cristina Índio do Brasil/Agência Brasil)

O neurocientista Stevens Rehen (Cristina Índio do Brasil/Agência Brasil)

Stevens Rehen

O neurocientista Stevens Rehen (Cristina Índio do Brasil/Agência Brasil)

Para a o neurocientista Stevens Rehen, professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador no Instituto D'Or, a pandemia da covid-19 terá impactos amplos na sociedade, nas mais diversas áreas.

Que mundo encontraremos após a pandemia do coronavírus? Que lições teremos aprendido? Como passaremos a lidar com a saúde? Como ficarão aspectos do cotidiano, como as relações de afeto, o mercado de consumo, a espiritualidade? E a economia? Ninguém tem ainda essas respostas. O resultado vai depender de nossa com­preensão dos acontecimentos, dos posicionamentos da sociedade civil, das atitudes socialmente responsáveis das empresas, dos caminhos adotados pelos governantes. Em resumo: vai depender de nós. Para tentar antecipar esses cenários, falamos com especialistas em diversas áreas. O resultado você confere nesta reportagem da edição 1207. Nos próximos dias, continuaremos o debate com outros especialistas aqui no site.

A seguir, o depoimento de Stevens Rehen:

Responsabilidade sanitária

Vamos ter uma preocupação muito maior com a higiene. Todos devem ter esse cuidado, mas a crise vai triplicar a nossa atenção, o que pode ser útil. Imagino como serão nossas reuniões, repensando até mesmo aquele amendoinzinho na mesa, que compartilhamos. A máscara vai se tornar item na bolsa e mochila de todo mundo, principalmente para quem viaja. Talvez incorporemos a máscara no transporte público no Brasil, o que já é uma realidade na Ásia. Isso provocaria até mesmo uma mudança estética.

Atenção à ciência e ao ensino à distância

Vamos ter de olhar com muito mais carinho e atenção para a ciência. O investimento na área vai ser um objeto de discussão política. Há pouco tempo falávamos sobre a hipótese do ensino em casa, muita gente sugerindo que isso tomasse uma dimensão mais ampla. Quem tem vivenciado isso na quarentena, com o chamado homeschooling, percebe que não é algo trivial. Isso deve mexer com a valorização do professor, além de influenciar nas ferramentas e na forma de ensinar à distância.

A percepção da importância da ciência não deve ocorrer nesse governo, que é muito particular. É algo a ser pensado mais nas novas eleições. A importância da ciência, da educação, do sistema público, são temas que vão entrar no próximo debate. A situação que estamos vivendo é muito aguda, quem votar vai estar com isso nas costas, as perdas, o fato de ter ficado doente. Para este governo, não há grande movimento do MCTIC — e vemos o movimento contrário do presidente em relação ao Ministério da Saúde. Não tenho esperanças neste governo, com vários cortes de bolsas e discussões sobre a retirada de gratificações em universidades.

Vida digital

Tenho feito diversas reuniões online. Na vida real, temos o tempo do deslocamento físico para ir a outros lugares. Isso nos reseta. No teletrabalho, apenas trocamos de sala no Zoom. É muito mais viva a sensação de ficar assoberbado. Vamos ter de aprender, no choque, a usar o melhor que as ferramentas oferecem.

O comércio online deve aumentar, a questão das entregas, do serviço de aplicativos como Rappi e iFood. Sempre achei uma frescura ter aquele relógio para fazer pagamentos sem precisar encostar em nada. Hoje, eu acho isso essencial. Estas questões devem ganhar intensidade após a crise.

Papéis sociais

Acredito que vamos rever e valorizar o papel do estado em questões cruciais como saúde e renda mínima universal — ideia esta discutida de Eduardo Suplicy a Yuval Harari, com perspectivas diferentes. Ficou óbvio que é preciso dar renda mínima àqueles que não vão conseguir performar dentro da nova realidade. 

A valorização da imprensa é essencial. Todos os cidadãos têm buscado por notícias, e isso também deve ser impactado pela pandemia.

Sociedade solidária

Vemos ações interessantes de solidariedade, não só do ponto de vista de uma pessoa de fato estar ajudando, agindo para tentar viabilizar álcool em gel, máscaras de proteção. No meu pequeno universo, pessoas estão mantendo trabalhadores domésticos que não vão trabalhar. É claro, no entanto, que a solidariedade maior deve ser a do governo abrindo cofres.

Religiosidade honesta

A questão da religião pode ser interessante para as pentecostais, baseadas na presença e na questão do dízimo. Acompanhei posts no Twitter sobre como as igrejas ficaram perdidas com a situação. Talvez tenhamos pensamentos sobre a importância da religiosidade e a diferença entre isso e um papel mais de negócios da "empresa religião". 

Entre pastores e líderes religiosos, havia, em um primeiro momento, uma negação do problema. A motivação, no entanto, era muito mais de manter a rotina que tinha o componente do dízimo, do dinheiro a ser recolhido.

Em um segundo momento, vi uma mudança de como aquilo era comunicado, com a divulgação de contas para depósito. Certamente, a maioria das pessoas deve estar em situação de trabalho informal, sem carteira assinada — e, mesmo assim, pastores pedindo o dízimo.

Momentos de crise, com a vida no limite, levam a reflexões mais profundas. Talvez a população mais vulnerável perceba a diferença entre o acolhimento, o cuidado e o simples receber. É um impacto que não chamo de benéfico, mas um choque de realidade e amadurecimento em relação ao que traz felicidade do ponto de vista da religião, que é importante para muitas pessoas.

Valorização da história

Em meio à crise, temos recuperado temas como a gripe espanhola, a peste negra. Isso é muito interessante. Resgata momentos em que as pessoas nem conseguiam perceber o impacto daquilo no mundo e, agora, todos vivemos isso.

Menos valor ao dinheiro

O que vale o dinheiro diante de uma pandemia? O mundo parou e pode continuar assim por meses. Isso nos leva a redimensionar o valor do dinheiro e do crescimento absurdo. Vamos nos preocupar muito com saúde mental, com os impactos no desenvolvimento infantil e infantojuvenil.

Há uma falta de interação física, sendo que existe o papel do abraço, da reunião — propriedades que surgem da relação social. Eu não vejo meus pais, que são idosos, mas dá uma saudade de encontrá-los! Meus filhos também sentem. Acredito que vamos valorizar mais o afeto e o carinho.

Saúde mental

A saúde mental está no centro de uma discussão mais ampla. Pode, inclusive, ter uma relação com a valorização do meio ambiente, das florestas. Há trabalhos que mostram o impacto de reservas florestais na saúde mental da população. Os parques têm importância crucial nisso. A questão deve ganhar mais força nesse momento.

Teremos uma redução óbvia da poluição, e isso pode disparar gatilhos sobre como é possível reduzir, modificar rapidamente um ambiente, otimizar processos, impactar a emissão de CO2, entre outras coisas.

Acompanhe tudo sobre:CoronavírusNeurociência

Mais de Ciência

'Saquinho' de nicotina ganha adeptos para perda de peso

Usuários do Wegovy mantêm perda de peso por quatro anos, diz Novo Nordisk

Meteoros de rastros do Halley podem ser vistos na madrugada de domingo

AstraZeneca admite efeito colateral raro da vacina contra covid-19

Mais na Exame