Revista Exame

O escândalo além do escândalo

Um esquema de compra de vagas em universidades nos Estados Unidos põe em evidência uma meritocracia falha, que favorece as classes mais ricas

Universidade do Sul da Califórnia: fraudes garantiram vagas para filhos de ricos | Allen J. Schaben/Los Angeles Times/Getty Images /

Universidade do Sul da Califórnia: fraudes garantiram vagas para filhos de ricos | Allen J. Schaben/Los Angeles Times/Getty Images /

DC

David Cohen

Publicado em 28 de março de 2019 às 05h28.

Última atualização em 25 de julho de 2019 às 15h57.

Se existe matéria na qual o Brasil se tornou autossuficiente é a produção de escândalos. Neste quesito, não houve nos últimos anos nem mesmo uma leve estiagem no país. Por que deveríamos, então, nós, que somos tão pródigos em surrupios e conchavos, prestar atenção no escândalo que eclodiu no dia 11 de março nos Estados Unidos, da compra de vagas em universidades de elite? O número de envolvidos — cerca de 50, até agora — é baixo, embora haja entre eles duas atrizes razoavelmente célebres e um punhado de respeitados empresários do ramo dos investimentos e do direito. O montante embolsado, cerca de 25 milhões de dólares entre 2011 e o início deste ano, também não faz frente às falcatruas nacionais.

Mesmo assim, é um caso que não se pode subestimar. O que define um escândalo é o desvio de conduta em relação às convenções sociais; a indignação é o mecanismo pelo qual as convenções são reafirmadas. Algumas vezes, porém, a má conduta coloca a própria norma na berlinda. Isso é mais comum na área dos costumes — o biquíni, escandaloso nos anos 50, virou trivial, por vezes quase invisível; o divórcio, um pecado, tornou-se uma probabilidade. Em casos de roubo, o fenômeno é mais raro. Mas acontece. E este é um desses casos: a fraude chamou a atenção para os vícios do próprio sistema de admissão às universidades e para as falhas de um dos valores mais caros à sociedade ocidental: a meritocracia.

Em linhas gerais, o esquema funcionava assim: William Singer, dono de um colégio especializado em preparar alunos para ser admitidos em universidades de ponta, descobriu um método, digamos, mais eficiente de garantir o sucesso de seus clientes. Ou melhor, dois métodos. O primeiro consistia em burlar as provas de SAT e ACT, testes padronizados que as universidades usam como elemento de avaliação; um especialista fazia a prova pelo aluno ou alterava suas respostas depois que ele a entregava (para isso, alegava-se que o aluno estava impossibilitado de comparecer ao local da prova e tinha de fazê-la em um centro separado, onde Singer subornava os bedéis).

O segundo método era inventar um talento esportivo para que o jovem fosse admitido pela via olímpica, um dos atalhos para as melhores universidades. Nesse caso, era preciso subornar os técnicos responsáveis pelas seleções. Nas documentações, recorria-se à manipulação de imagens para submeter aos comitês de avaliação fotos dos candidatos em ação. Assim uma adolescente sem nenhuma intimidade com a bola foi recrutada por Yale como uma estrela do futebol e uma jovem que não remava entrou para a Universidade do Sul da Califórnia (USC) graças a suas fictícias habilidades no barco.

Para apimentar o escândalo, algumas ironias: Singer recebia o dinheiro através de sua fundação de caridade, a Key Worldwide Foundation, cuja meta declarada era ajudar estudantes pobres. Ele confessou a culpa e, após o pagamento da fiança, vai esperar o julgamento em liberdade. Não foi o único envolvido que pregava a filantropia em público, a trapaça em conversas privadas. O executivo financeiro William McGlashan, um dos clientes da fraude, foi o criador de um fundo de investimento focado em empresas e causas éticas. Perdeu o cargo na firma de private equity TPG.

A youtuber Olivia Jade: ela nem dava muita importância à admissão na faculdade | Presley Ann/Getty Images

A atriz Lori Loughlin, famosa por ter participado da série Três É Demais (Full House, no original), também perdeu dois trabalhos por seu envolvimento no escândalo: foi tirada da continuação da série Full House, pela Netflix, e o canal Hallmark cortou-a de sua programação de shows e filmes. Sua filha, Olivia Jade, uma celebridade com seu canal do YouTube, chegou a dizer que não dava muita importância à faculdade, mas lucrou com a admissão na USC: recebeu dinheiro de empresas de decoração para dar dicas de como enfeitar um dormitório de universidade em seu videoblog. Com o escândalo, ela perdeu contratos de patrocínio com três companhias de beleza.

Segundo a acusação, os jovens eram inocentes. A maioria deles acreditava ter feito as provas normalmente. Mesmo assim, correm o risco de perder a vagas na universidade. Para os pais, há ameaça de prisão. Lori foi solta sob uma fiança de 1 milhão de dólares; McGlashan pagou 500 000 dólares. Outra atriz, Felicity Huffman, da série Desperate Housewives, pagou 250 000 dólares de fiança. Nove técnicos esportivos de universidades envolvidos foram demitidos.

Por mais chamativo que tenha sido o caso, porém, a reação mais notável entre especialistas e analistas é de crítica ao próprio sistema que foi burlado. O grande argumento dessas críticas foi amplamente explicitado por um ato falho do promotor Andrew Lelling ao anunciar as acusações, como notou Matt Levine, articulista financeiro da Bloomberg. Primeiro, Lelling disse: “Não pode haver um sistema de admissão em faculdades diferente para os ricos, e eu acrescento que também não haverá um sistema judicial diferente para eles”. Menos de um minuto depois, porém, ele afirmou: “Não estamos falando de doar um prédio à universidade de forma que ela fique mais propensa a aceitar seu filho ou filha. Estamos falando de trapaça e fraude”.

Quer dizer: não está certo uma pessoa rica comprar a entrada de seus filhos na universidade… A não ser que ela seja muuuito rica. Algo assim como Jared Kushner, genro e conselheiro do presidente americano, Donald Trump. Em 1998, seu pai, o empresário do ramo imobiliário Charles Kushner, prometeu doar 2,5 milhões de dólares à Universidade Harvard (a qual ele não havia cursado). Um ano depois, Jared foi admitido. Segundo Daniel Golden, que escreveu um livro sobre os mecanismos de admissão nas escolas de elite americanas, os professores de Jared ficaram surpresos, uma vez que suas notas e seu histórico acadêmico não pareciam indicar essa possibilidade.

Pode haver aí uma prática condenável, especialmente por aqueles que não gostam do governo Trump nem dos conselhos que Kushner fornece ao sogro. Mas nova ela não é. As universidades de elite dos Estados Unidos gostam de ser conhecidas como formadoras da elite intelectual, mas na realidade estão mais para agregadoras da elite econômica. Mais do que a educação, são as ligações sociais que elas fornecem, o networking, a base mais sólida para a futura criação de riqueza.

William Singer, o fraudador: fundação tinha a meta de “ajudar estudantes pobres” | Brian Snyder/Reuters

Essa mentalidade de clube dos privilegiados já foi bem mais explícita. Até algumas décadas atrás, as faculdades de elite recrutavam seus alunos pelo puro critério da riqueza e do “berço”. Com o tempo, porém, a sociedade mudou, e o mérito começou a contar. Vem daí a criação dos testes padronizados, com especial foco no raciocínio lógico.

A evolução seguinte foi a ênfase na diversidade e no empreendedorismo, com a percepção de que notas altas em testes padronizados não garantem o sucesso nos caminhos não padronizados da vida. O sistema de admissão atual mistura um tanto de ação afirmativa (o relativo favorecimento de representantes das minorias), um bocado de resultados acadêmicos, capacidade lógica (medidos pelo currículo escolar e pelas notas nos testes padronizados) mais uma série de variantes que compõem uma avaliação “holística” dos candidatos.

Em tese, isso levaria a uma distribuição mais justa das vagas. Na prática, não é bem assim. Ao longo do tempo, formou-se um mercado de escolas que preparam os filhos de famílias mais afluentes para os testes. Um bom tutor em Nova York cobra algo de 300 a 450 dólares por hora, o que pode atingir dezenas de milhares de dólares. A preparação, segundo algumas escolas, resulta em uma nota média 11% mais elevada no SAT ou no ACT. Isso não é tudo. A avaliação “holística” também incentiva um mercado de preparadores de currículos, gente que ensina o que escrever na carta de apresentação, como se mostrar uma pessoa automotivada e empreendedora, socialmente responsável, culturalmente aberta, naturalmente líder, espiritualmente rica e intensamente curiosa. Esse serviço pode sair até mais caro do que o dos tutores.

Para completar o quadro, as escolas de elite mantêm uma lista secreta de candidatos que são parentes de grandes doadores, conforme revelou um processo contra Harvard movido no ano passado por uma associação de alunos de origem asiática que se sentem prejudicados pelos critérios subjetivos de admissão. Não é que as doações vultosas garantam as admissões, mas quem está na lista tem uma taxa de aceitação de 42%, quase dez vezes mais alta do que a chance geral. Não à toa. As universidades de elite têm custos altíssimos e suas fontes de renda (pequenas doações de ex-alunos e grandes verbas federais para pesquisa, por exemplo) declinaram ao longo dos anos. Para funcionar, dependem cada vez mais das grandes doações.

Isso explica por que em 38 universidades de ponta dos Estados Unidos há mais alunos provenientes das famílias do 1% mais rico do que dos 60% mais pobres, de acordo com uma análise feita pelo jornal The New York Times em 2017. Mesmo após décadas de políticas de ação afirmativa, há proporcionalmente menos alunos negros e hispânicos nas faculdades de elite do que 35 anos atrás.

Para ter condições de competir com as famílias mais abastadas, pais de classe média, sem condições de pagar tutores e escolas privadas, investem suas economias na compra de casas na vizinhança certa, onde seus filhos possam cursar escolas públicas mais gabaritadas e ter mais chance de ser admitidos em uma universidade de ponta.

A situação não é muito diferente no Brasil. Embora aqui não tenhamos a avaliação “holística”, uma porta para a subjetividade, a diferença de oportunidades durante todos os anos pré-universidade (boas escolas, contatos com gente bem-sucedida, professores particulares de atividades extracurriculares, além da ausência do estresse proveniente de situações de pobreza, da carência emocional à necessidade de trabalhar) faz com que 18% dos alunos da USP, universidade brasileira mais bem cotada em rankings internacionais, venham do 1% de famílias mais ricas, que ganham acima de 15 salários mínimos, de acordo com um estudo realizado em 2015. Nas carreiras de maior procura, o índice sobe bastante: 42% dos calouros de medicina, 37% dos de engenharia, 39% dos de direito pertencem à camada da população que ganha acima de 15 salários mínimos.

O problema da meritocracia é saber como defini-la de forma que não se preste a justificar (e reforçar) privilégios. Não é que os processos de admissão não tenham avançado — a própria necessidade de criar um sistema de avaliações é sinal de como o mundo mudou, e ter uma pequena chance de ingressar nos clubes de elite é infinitamente melhor do que não ter chance nenhuma. Mas há um longo caminho a percorrer, e aqui talvez mais do que nos Estados Unidos. Essa fraude é um grito de alerta.

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