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Volta aos trilhos

Alta demanda e novos investimentos em curso tornam o futuro do transporte ferroviário promissor. Mas ainda é preciso mexer na regulação do setor

EXAME.com (EXAME.com)
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Da Redação

Publicado em 14 de outubro de 2010 às 13h16.

Para os maquinistas dos trens que saem dos municípios produtores de bauxita, como Poços de Caldas, Ouro Preto e Cataguases, em Minas Gerais, a visão da cidade de São Paulo serve como aviso -- o fim da viagem se aproxima. O destino é o município paulista de Alumínio, a 75 quilômetros da capital, onde o minério carregado pelas composições será processado antes de chegar ao mercado. Ao se aproximar de São Paulo, o comboio diminui a velocidade. Na entrada da cidade, pára por completo. Começa então um estranho ritual, no qual o trem é dividido em duas metades e uma locomotiva menor substitui a que veio de Minas. A nova locomotiva, mais lenta, cruzará a cidade com uma das metades do trem e depois voltará para apanhar a outra. Uma vez atravessada a metrópole, as duas metades serão reunidas novamente para seguir viagem. A operação é proibida ao longo de 4 horas no período da manhã, outras 4 horas no período da tarde e não pode atrapalhar os trens que levam passageiros dentro da cidade.

Procedimentos tão ou mais bizarros que esse, que acabam encarecendo os custos finais da operação, ocorrem diariamente nas estradas de ferro mais importantes do país. Algumas de suas causas são difíceis de resolver e exigem investimento. Ainda estão em operação, por exemplo, linhas obsoletas, construídas no século 19. Outras causas são mais simples. Para sua resolução será necessário que o governo acelere as mudanças na regulação do setor -- já aprovadas pelas empresas e contidas no Plano de Revitalização das Ferrovias, apresentado em maio passado. "O marco regulatório do setor ferroviário está sendo equacionado", disse o ministro José Dirceu, da Casa Civil.

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As novas regras não implicam uma farra com o dinheiro público nem envolvem isenção fiscal ou concessão de benefícios às operadoras ferroviárias. Visam, basicamente, à utilização, pelos trens de uma concessionária, dos trilhos de outra (o chamado direito de passagem), e a facilitar o investimento privado (hoje limitado por um teto de 20% das ações com direito a voto para cada sócio das ferrovias). Até o momento, somente a Companhia Vale do Rio Doce conseguiu autorização para ultrapassar esse limite, na Ferrovia Centro-Atlântica, em troca de um investimento de 400 milhões de reais. Se esses nós forem desatados, impulsionarão um setor que, além de ajudar na redução do custo Brasil, poderá crescer em ritmo forte quase que imediatamente. Com isso, seria revertida uma seqüência de balanços desanimadores das companhias ferroviárias, no período pós-privatização, promovida a partir de 1996. O único lucro líquido registrado pelo setor, desde então, foi o exibido pela América Latina Logística (ALL), no ano passado: 5,3 milhões de reais, valor quase simbólico diante do investimento de 462 milhões feito nos últimos seis anos pela empresa, controlada pela GP Investimentos. "Nenhuma das concessões ferroviárias vai bem", afirma Guilherme Laager, presidente da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários (ANTF) e diretor de logística da Vale.

O potencial do setor ferroviário pode ser vislumbrado facilmente numa análise mais ampla, que não se limite aos balanços. A Vale do Rio Doce fatura 1,5 bilhão de reais por ano com transporte ferroviário para terceiros (o que corresponde a apenas um quinto da carga total que seus trens deslocam) e prevê que o mercado cresça 20% no próximo ano. A ALL, que opera na Região Sul, receberá, até janeiro do ano que vem, 30 novas locomotivas para dar vazão aos grãos que serão colhidos na safra agrícola de 2004. A MRS, que opera em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, espera fechar o ano transportando 85 milhões de toneladas, o dobro da carga de 1996. Já a Ferronorte, que liga Mato Grosso ao porto de Santos, deverá transportar 6 milhões de toneladas em 2003 e prevê uma demanda 59% maior para 2004. "Se aceitássemos todos os pedidos, precisaríamos de mais 1 000 vagões, além dos 2 800 que temos hoje", diz Nelson Bastos, recentemente substituído na presidência da Brasil Ferrovias, holding liderada pelos fundos de previdência Previ e Funcef, que controla a Ferronorte. Dificilmente, porém, a Brasil Ferrovias conseguiria ampliar sua frota. A capacidade da indústria ferroviária, que foi praticamente sucateada nas últimas décadas, não atende à demanda: o maior fabricante, a Iochpe-Maxion, poderá entregar apenas 2 400 vagões em 2003, menos da metade das necessidades da Vale.

Nos últimos sete anos, os investimentos em ferrovias somaram 2,8 bilhões de reais. Mais 1,2 bilhão deve ser investido até o fim de 2004. Ao contrário do que ocorreu, por exemplo, no setor de telecomunicações, não há excesso de capacidade instalada. Das nove empresas que exploram o serviço, apenas duas, Novoeste e CFN, precisarão reorientar sua estratégia. A Novoeste, que liga o Mato Grosso do Sul a São Paulo, por servir uma região com diversas alternativas de escoamento. A CFN, que interliga sete capitais nordestinas, por trafegar numa região com baixa produção de commodities.

Desde o início do programa de privatização, as companhias tiveram de se virar por conta própria, sem esperar pelas decisões de Brasília. Em teoria, o governo seria o responsável pelos ativos (trens e trilhos), e as concessionárias deveriam apenas melhorá-los e usá-los para cumprir metas de produtividade, cobradas pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Na prática, as concessionárias não só assumiram grande parte do investimento como atraíram a parceria de seus clientes. Eis alguns casos significativos:

* A Seara, do setor de carnes, a Ipiranga, distribuidora de combustíveis, e a cimenteira Votoran investiram 100 milhões de reais em 2002 e no primeiro semestre de 2003 no Paraná, em vagões e terminais operados pela ALL.

* A Votorantim Celulose e Papel aplicou 20 milhões de reais em conjunto com a MRS Logística para ampliar o ramal ferroviário que liga Mogi das Cruzes à sua nova fábrica em Jacareí, no interior de São Paulo. A obra reduzirá em 25% o custo de transporte da VCP até o porto de Santos.

* Os grupos Bunge e Maggi, dois dos maiores processadores de soja no país, investirão 60 milhões de dólares na construção do Terminal de Grãos do Guarujá (TGG), no porto de Santos, juntamente com a Ferronorte (que liga o Mato Grosso a São Paulo).

* Outra processadora de soja, a Caramuru, com base em Itumbiara, em Goiás, investiu 10 milhões de dólares na compra de dez locomotivas e 300 vagões usados. A Ferronorte os usará entre Pederneiras, no interior de São Paulo, e o porto de Santos. Assim, a Caramuru eliminará o uso de caminhões nesse trecho e economizará de 8% a 10% do custo de transporte. "Em princípio, é o tipo de investimento que não deveríamos fazer", diz César Borges, vice-presidente da Caramuru. "Só que ele traz ganho certo. Não dá para ficar esperando."

De acordo com Bernardo Figueiredo, diretor da Ferrovia Norte-Sul (em construção e ainda estatal) e um dos criadores do Plano de Revitalização, o potencial de redução de custo do transporte ferroviário em relação ao rodoviário é de cerca de 30%. As possibilidades de ganho de eficiência são enormes. Em Cubatão, São Paulo, a não-aplicação do direito de passagem faz com que os trens levem 19 horas para percorrer os últimos 19 quilômetros até o porto de Santos. Já o transporte de bauxita pela capital poderia ser nove vezes mais eficiente -- comboios três vezes mais rápidos, com o triplo de carga -- se houvesse uma linha específica para carga, cruzando ou contornando a cidade. A simples implementação das novas regras, sem investimentos em infra-estrutura, traria um ganho de 6% a 8% no volume transportado pela Ferronorte.

Outros serviços privatizados no governo passado, como o de energia elétrica, também têm pendências regulatórias e vão mal. A diferença é que, no setor de transporte ferroviário, colocar ordem na casa parece ser uma tarefa menos complicada. Não estão em jogo questões delicadas como tarifas ao consumidor final, com suas conseqüências políticas e inflacionárias. Ao contrário do que acontece com as concessionárias de energia na fase pós-apagão, o transporte ferroviário tem mais demanda do que consegue atender: por uma feliz coincidência, seus clientes atuam nas poucas atividades da economia aquecidas atualmente, como o agronegócio, a mineração, a siderurgia e outros exportadores. Atualmente, as ferrovias transportam 7% das cargas no Brasil e 23% das mercadorias básicas, como grãos, minério e cimento, num total de 309 milhões de toneladas. O governo espera elevar essa participação a 30% em quatro anos. Mais do que espera, precisa que isso aconteça, pois, caso o país volte a crescer sem que a capacidade das ferrovias aumente, haverá gargalos no escoamento da produção, congestionando ainda mais as rodovias. "Um paradão, com explosão no custo do frete rodoviário, poderia atrapalhar o crescimento", diz um técnico do governo federal.

Os entraves que o Plano de Revitalização tentará eliminar surgiram por causa do modelo adotado na privatização. Na época, o governo tentou evitar que grandes grupos, como a Vale e a CSN, dominassem o setor. A solução foi criar um teto de 20% das ações com direito a voto para cada sócio. Não funcionou. A forte influência dessas empresas sobre as ferrovias nas quais têm participação não foi evitada. Ao contrário. "As concessionárias acabam fazendo uso estratégico do preço, procurando maximizar a carga própria ou o interesse de seus acionistas", afirmou recentemente José Alexandre Resende, diretor-geral da ANTT. Nas ferrovias da Vale, por exemplo, 78% da carga transportada é da própria empresa.

A divisão das ferrovias selecionadas para a privatização foi também um complicador. "A separação obedeceu a critérios administrativos, e não de mercado", afirma Paulo Fleury, especialista em logística do Coppe, o curso de pós-graduação em engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A idéia, agora, é reorganizar as linhas de trem. As empresas vão ceder alguns trechos e receber outros, para criar oito grandes corredores de exportação. Se isso acontecer, deverá prevalecer a lógica do fluxo das mercadorias, e não a das antigas divisões administrativas do setor público, criticada por Fleury.

Mas a questão mais delicada é o direito de passagem. Atualmente, vigora o chamado "tráfego mútuo", pelo qual cada concessionária, em vez de ceder seus trilhos ao tráfego dos trens da concorrente, pode assumir a carga e cobrar mais por isso. A transferência de carga é mais lenta e quatro vezes mais cara. O principal gargalo é o porto de Santos, onde todas as ferrovias têm de negociar com a MRS, dona do pedaço. "O relacionamento entre estatais era muito fácil", diz Anália Martins, diretora da ANTT. "Entre companhias privadas, o jogo é mais duro. Com o rearranjo das linhas e a instituição do direito de passagem, quatro ferrovias terão acesso ao porto de Santos -- MRS, ALL, Ferroban e Ferronorte.

O setor também deverá brigar por um bom tempo em torno de dois problemas de resolução mais difícil: taxas de juro e infra-estrutura. A alternativa para as operadoras é melhorar seu desempenho, enquanto esperam que a taxa básica de juro prossiga em queda ou que o BNDES crie linhas específicas para o setor -- medida que está em avaliação. Quanto à infra-estrutura, o setor privado espera que a União invista 1,5 bilhão de reais até 2007. O ministro dos Transportes, Anderson Adauto, já trabalha com uma meta mais modesta e tentará conseguir pelo menos 600 milhões no Plano Plurianual de Investimentos (PPA), que está em fase de definição.

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