Dylan: muito maior que a música
Jardel Sebba “Na minha última entrevista, o cara queria saber de tudo, menos de música. As pessoas fazem isso comigo desde os anos 60, eles me fazem as perguntas que fariam a seus médicos, psiquiatras, professores ou políticos. Por quê? Por que vocês me fazem essas perguntas?” O desabafo é do atual Prêmio Nobel de […]
Publicado em 15 de outubro de 2016 às, 09h03.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h09.
Jardel Sebba
“Na minha última entrevista, o cara queria saber de tudo, menos de música. As pessoas fazem isso comigo desde os anos 60, eles me fazem as perguntas que fariam a seus médicos, psiquiatras, professores ou políticos. Por quê? Por que vocês me fazem essas perguntas?” O desabafo é do atual Prêmio Nobel de Literatura, Bob Dylan, em uma entrevista distribuída para a imprensa em 2015. E a resposta é simples: Dylan sempre foi muito maior que a música, o que seus fãs e estudiosos já sabiam e o Nobel veio referendar. Entre os 113 laureados com o prêmio até hoje, Dylan foi o primeiro músico, o que, inacreditavelmente em 2016, rendeu polêmicas. O Prêmio Nobel de Literatura conquistado por Bob Dylan não é apenas merecido. Mas também revela visão abrangente da literatura pela Academia Sueca ao premiar um homem que tratou a palavra (escrita, falada, cantada) com raro esmero nos últimos cinquenta anos.
Dylan são vários
Nascido em Duluth e criado em Hibbing, no estado norte-americano de Minnesota, neto de imigrantes judeus russos, Robert Allen Zimmerman chegou a Nova York no inverno de 1961, aos 19 anos. Não conhecia ninguém na cidade, mas rapidamente adotou o nome de um de seus poetas preferidos, o galês Dylan Thomas, e passou a integrar a cena folk de Greenwich Village. O Dylan acústico e político, que para muitos ainda é sua melhor imagem, durou a primeira metade dos anos 1960. Quando assumiu a guitarra elétrica, foi chamado de Judas e fez seus três álbuns mais aclamados, entre 1965 e 1966. Depois de um acidente de moto, de reclusão familiar e de alguma autossabotagem, Dylan ficou marcado nos anos 1970 com o cultuado álbum Blood on the Tracks (1975), inteiramente dedicado ao (primeiro) fim do casamento com Sara Lownds, com quem teve quatro filhos e de quem assumiu a filha do casamento anterior. A união só terminaria em definitivo em 1977, e o disco é considerado por muitos como a obra maior de Dylan. No fim da década, ele se converteu ao cristianismo e fez discos, digamos, polêmicos. Entre suas qualidades permanentes sempre esteve a ausência do medo de errar, e em alguns momentos ele o fez com gosto. Nos anos 80 e 90, Dylan alternou discos mais ou menos interessantes até o excelente Time Out of Mind (1997). Nunca parou de gravar – em maio lançou Fallen Angels, seu trigésimo-sétimo álbum de estúdio.
Dylan é um homem de negócios
Bob Dylan tem entre as suas principais personas a de operário padrão de sua indústria, mesmo diante da vertiginosa decadência vivida por ela nos últimos anos. Seu show custa estimados 250 mil dólares (um oitavo do que Prince cobrava, por exemplo), e sua turnê chama-se The Never Ending Tour, não à toa. Ela vem contabilizando cerca de cem shows por ano desde a década de 1990, o que a fará atingir em breve, segundo as contas dos fãs, o recorde de 3 mil apresentações. Dylan foi, no fim de semana passado, um dos protagonistas do festival Desert Trip, na Califórnia, que reuniu os seis maiores artistas em atividade do mundo do rock.
Ou seja, ele é um carregador de pedras do showbusiness. Vendeu cerca de quarenta milhões de discos desde sua estreia em 1962. Emplacou duas canções no número dois da parada americana, e só viu uma de suas músicas chegar ao topo, Mr. Tambourine Man, em 1965, curiosamente na gravação do The Byrds. Assim como, apesar das boas vendas e da incalculável influência de seus discos dos anos 1960, seu primeiro álbum a liderar a parada americana foi Planet Waves, de 1974.
Influência e dinheiro nem sempre andam juntos, mas Dylan, celebrado pela primeira, nunca desprezou a importância do segundo. Há anos ele e suas canções vendem produtos na TV americana, de Pepsis e Cadillacs a computadores IBM e lingeries Victoria’s Secret. Mais do que trabalhar duro, Dylan entendeu rápido como a dinâmica de sua indústria mudou, e tratou de buscar novas oportunidades de negócio. Em 2005, assinou acordo com a multinacional rede de cafeterias Starbucks para lançar um cd exclusivo. Em 2014, brilhou duas vezes durante o intervalo do Superbowl, a final do futebol americano, que representa o espaço mais caro de publicidade televisiva do país. Ao lado do anúncio do iogurte Chobani embalado pela canção I Want You, o próprio Dylan apareceu vendendo carros Chrysler como um dos grandes ícones americanos (assim como ele, claro). Em abril deste ano, a Amazon anunciou a compra dos direitos de cerca de 600 canções de Dylan para usar em um futuro seriado televisivo, que deve se chamar Time Out of Mind. Dylan são vários, e nenhum deles despreza a importância do capitalismo.
Dylan é uma esfinge
Dylan é um mistério, o que contribui para o encantamento em torno de sua lenda. Ele raramente dá entrevistas, e quando faz, raramente diz o que as pessoas esperam ouvir dele. É clássica a entrevista ao amigo e fundador da revista Rolling Stone, Jann S. Wenner, na qual relativiza os males dos governos de George W. Bush, mesmo diante da insistência do entrevistador em provar o contrário. Em 2012, na última das cinco vezes que esteve no Brasil, foi encontrado pelo jornalista Jotabê Medeiros passeando sem rumo por Copacabana, de casaco, capuz e óculos escuros sob um sol de 34 graus. Ele pode lançar qualquer coisa, até um disco reinterpretando canções que fizeram sucesso na voz de Frank Sinatra (Shadows in the Night, de 2015). Há anos, faz questão de tornar irreconhecíveis suas canções ao vivo, mexendo no andamento e nos arranjos. É comum mesmo os fãs mais devotos só perceberem o que ele está cantando depois de alguns minutos. Nunca explicou o motivo. E nunca deixou de ter público. É impossível saber o que se passa naquela cabeça, o que só o torna mais fascinante.
Em 2008, em sua quarta vinda ao Brasil, Dylan trouxe a estatueta do Oscar de melhor canção original que ganhou em 2001 por Things Have Changed, do filme Garotos Incríveis, e a deixava na frente da bateria durante as apresentações. Parecia transmitir um certo desprezo, e não deixava de ser. No dia da premiação do Oscar, Dylan interpretou a canção para uma das maiores audiências da TV americana com todos os versos cantados fora da melodia, como é hábito dele, e ensaiou uma falsa alegria com a vitória. Detalhe: isso tudo ao vivo via satélite, da Austrália. Em resumo, no dia que ganhou um Oscar, Bob Dylan estava na Austrália. Oscar, Nobel, Grammy, Pulitzer, ele parece simplesmente não se importar.
Things Have Changed é um bom exemplo do quão avassaladora pode ser a pena de Dylan mesmo em suas canções menos conhecidas. Seu interlocutor parece saído de um texto do franco-argelino Albert Camus, que olha o mundo entre a indiferença e o niilismo. Um homem de alma atormentada, que pede que os outros não se levantem para ele, que está apenas de passagem. Planeja apaixonar-se pela primeira mulher que encontrar, e descer com ela rodando dentro de um barril rua abaixo. Bem vestido, esperando pelo último trem e por tudo ir pelos ares a qualquer momento. Tudo isso sob a premissa de que as pessoas estão loucas, os tempos, estranhos, e que ele costumava se importar, mas as coisas mudaram. Eis a única imprecisão da letra: Dylan nunca se importou.
Finalmente, Dylan é um poeta
Os tempos estão mudando, escreveu o poeta em 1963, porém mais lentos do poderíamos imaginar. Em dezembro de 1965, Thomas Meehan escreveu na revista do The New York Times que Bob Dylan apresentava-se naquele momento como o principal escritor dos Estados Unidos, em uma linhagem que vinha de Ernest Hemingway e William Faulkner. Quarenta e um anos mais tarde, parte da opinião pública reclamou porque o Prêmio Nobel de Literatura foi entregue a um “músico pop”. Colocar Dylan como parte de uma música descartável é tão esperto quanto concluir que James Joyce e Adelaide Carraro foram colegas de profissão. Não é só desonesto, mas impreciso. Ao lado de Leonard Cohen (poeta de ofício antes de tornar-se músico) e Lou Reed, Dylan elevou a palavra na canção popular a um nível nunca antes imaginado. Para além das canções de protesto e dos versos políticos, Dylan escreveu belíssimas canções de amor. Foi ele que escreveu que “ela deve pensar que já a esqueci, não diga a ela que não é verdade” (If You See Her, Say Hello), ou “eu amo você mais do que nunca agora que o passado se foi” (The Wedding Song) ou “ela nasceu na primavera, mas eu nasci tarde demais” (A Simple Twist of Fate), para citar alguns. Dylan só é simples para quem prefere trocar o desafio de entendê-lo pelo clichê da depreciação da música pop como gênero menor.
É estranho que, às portas de 2017, diante de mash-ups, Creative Commons, arte interativa, internet e tecnologia, estejamos discutindo se letra de música é poesia. Antes do Nobel, outros prêmios prestigiosos e tradicionais, como o Pulitzer e o espanhol Príncipe de Astúrias, já haviam reconhecido a influência de Dylan, se isso fosse necessário. Influência certamente maior que a de respeitáveis colegas como Alice Munro, Mo Yan, Gao Xingjian, Halldór Kiljan Laxness e Czeslaw Milosz, para ficar em alguns dos vencedores do mesmo Nobel. Ou mesmo de orgulhos do nosso continente, como Gabriela Mistral, poeta chilena vencedora do Nobel de Literatura de 1945, uma providencial mulher católica, sul-americana e lésbica no ano que terminava uma guerra que matou cerca de sessenta milhões de pessoas e diante da qual a Suécia, sede do prêmio, ficou neutra. A poesia de Gabriela, pouco conhecida no Brasil, tem momentos sublimes, mas o Prêmio Nobel de Literatura que ela recebeu pouco teve a ver com isso. Já a poesia de Bob Dylan tem muito mais momentos sublimes, e o Nobel dele é integralmente em função deles.