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Thiago Dias: Flexibilização da posse de armas está de acordo com as urnas

Para especialista em Segurança Pública, "agir contrariamente a esse direcionamento é arriscar colocar em jogo a soberania popular"

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Instituto Millenium

Publicado em 29 de janeiro de 2019 às, 13h05.

Última atualização em 29 de janeiro de 2019 às, 13h11.

* Por Thiago Ramos Dias

A eleição do novo governo e subsequente edição do Decreto nº 9.685/2019, reacendeu o debate sobre a posse de armas de fogo por população legalmente habilitada. O tema, longe de ser pacífico, posiciona grupos de interesse em lados opostos da arena política, os quais se digladiam lançando mão de argumentos, não raro, de ordem puramente consequencialista. Se de um lado, setores da sociedade civil organizada afirmam que a medida aumentaria os índices de criminalidade violenta; do outro, grupos pró-armamento insistem que a posse de armas impactaria positivamente o estado atual da Segurança Pública. Em que pesem os esforços argumentativos de ambos os lobbies, situo-me no campo daqueles que pensam que o assunto é, na verdade, uma questão afeta às liberdades.

A primeira razão para isso pode ser facilmente encontrada na própria produção acadêmica sobre o assunto, a qual oferece evidências para qualquer corrente que se pretenda defender. Desde a publicação do famoso estudo More Guns, Less Crime¹, francamente favorável ao lobby armamentista, dezenas de outros foram produzidos apresentando conclusões das mais variadas. O cardápio mostra-se de tal maneira vasto que a metanálise dedicada aos estudos sobre as leis que autorizam o porte velado – assunto por certo mais delicado do que a mera posse – Firearms and Violence: a Critical Review² conclui, taxativamente, em livre tradução, que: “não há evidência crível que as leis de direito ao porte, as quais permitem que adultos qualificados portem armas de mão, aumentam ou diminuam a criminalidade violenta³”.

Diferentemente do que alguns querem fazer crer, mesmo as análises cujas conclusões são mais pessimistas não se prestam a relacionar de maneira direta as variáveis: número de armas de fogo em poder da população civil legalmente habilitada com o aumento da criminalidade. De maneira muito mais refinada, tais análise acabam por examinar o impacto de outras medidas regulatórias, as quais não se confunde com a simples proibição ou mesmo redução do número de armas, como, por exemplo, a checagem de antecedentes e as exigências de guarda segura. Nesse sentido, é o novíssimo What Do We Know About the Association Between Firearm Legislation and Firearm-Related Injuries?⁴

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É importante observar que, seja qual for a conclusão dos estudos existentes, grande parte deles assume que há obstáculos metodológicos imensos na tarefa de estabelecer relações de causalidade entre armas e violência. Seja em função da dificuldade de construção de um cenário contrafactual, seja pela qualidade dos dados que acabam por fragilizar os modelos estatísticos aplicados à questão, seja ainda pela dificuldade de validar conclusões únicas em ambientes sócio-culturais absolutamente distintos; a verdade é que estamos longe de produzir um corpo de evidências definitivo sobre o assunto. Feitas essas considerações, parece, no mínimo, temerário conduzir os debates acerca da matéria no terreno das consequências. Quando não se sabe exatamente os benefícios de uma determinada intervenção estatal no terreno das liberdades, é lícito fazê-la? E mesmo se soubéssemos, seria a dimensão tecnocrática a mais adequada para resolver o impasse? Nas democracias de inspiração liberal, como é a nossa, a resposta será evidentemente negativa, para ambas as indagações.

Há, pelo menos desde o século XVII, clareza de que liberdade e segurança apresentam-se, como categorias eminentemente dicotômicas. Do pensamento contratualista do século XVII ao contemporâneo Bauman, é sabido que ambas guardam entre si relação inversamente proporcional. Lidar com esse dilema nunca foi ou será uma tarefa que se submeta exclusivamente às evidências científicas, sendo essas apenas um dos elementos de convencimento do complexo processo político que se desenvolve em torno do tema das liberdades. Em assim sendo, ainda que se admita que as conclusões acadêmicas existentes sejam suficientes para justificar as atuais restrições à posse de armas, ou mesmo para endurecê-las, cabe à sociedade, árbitro último de suas próprias garantias, decidir se quer ou não abrir mão de alguma liberdade, mesmo que sua conservação importe em eventuais consequências. A nenhum outro ator político é lícito fazê-lo, sem revestir-se fatalmente de caráter odiosamente autoritário. Nesse sentido, a história do mundo é rica em exemplos, sendo sobretudo testemunha da prática das maiores violências sobre a justificativa de manter a paz social.

Concluindo, portanto, que a problemática da posse de armas de fogo situa-se mormente na seara principiológica, e que cabe ao povo, mediante o processo democrático decidir o quanto de liberdade deseja ceder ao império do Estado; parece-nos que as medidas flexibilizantes estejam de acordo com a decisão expressada nas urnas no pleito geral de 2018. Agir contrariamente a esse direcionamento é arriscar colocar em jogo a soberania popular, ainda que sob a bandeira do “bem maior”.

¹ LOTT, John R. More guns, less crime. The New England Journal of Medicine, v. 340, n. 20, p. 1599-1600, 1999.
² NATIONAL RESEARCH COUNCIL et al. Firearms and violence: A critical review. National Academies Press, 2005.
³ No original: “there is no credible evidence that ‘right-to-carry’ laws, which allow qualified adults to carry concealed handguns, either decrease or increase violent crime”. Ibid., p.2.
⁴ SANTAELLA-TENORIO, Julian et al. What do we know about the association between firearm legislation and firearm-related injuries?. Epidemiologic reviews, v. 38, n. 1, p. 140-157, 2016.

Thiago Ramos Dias é advogado, Master of Laws pela ​Columbia University​, e portador do ​Parker School Certificate in International and Comparative Law​. Na academia, dedicou seus estudos a temas ligados à defesa, segurança pública e direitos humanos. Possui experiência nos três níveis da administração pública e no terceiro setor, tendo trabalhado para a organização Human Rights Watch, no Rio de Janeiro e em Nova Iorque.

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