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Rumo à Universalização: Uma Conversa sobre Saneamento com Karla Bertocco Trindade

O 16º Ranking do Saneamento revela uma realidade desafiadora: aproximadamente 33 milhões de brasileiros estão sem acesso à água potável

Karla Bertocco Trindade, Presidente do Conselho da SABESP (Acervo pessoal)
Karla Bertocco Trindade, Presidente do Conselho da SABESP (Acervo pessoal)

No Brasil, a questão do saneamento básico destaca-se como uma barreira significativa ao desenvolvimento sustentável e à promoção da saúde pública. Divulgado pelo Instituto Trata Brasil na semana passada, o 16º Ranking do Saneamento revela uma realidade desafiadora: aproximadamente 33 milhões de brasileiros estão sem acesso à água potável. Esse cenário exige uma resposta imediata e um compromisso contínuo para garantir a universalização deste serviço essencial, com políticas públicas eficazes, investimentos substanciais e a busca por inovações e melhorias na gestão das entidades responsáveis. 

Para falar um pouco sobre o assunto, entrevistamos a especialista Karla Bertocco Trindade, Presidente do Conselho da SABESP e sócia da Jive-Mauá Capital. No dia próximo dia 11, ela participa da 7ª  edição da Conferência Anual da Brazilian Legal Society, da New York University School of Law, que acontecerá na sede da universidade.  A conferência é um dos principais eventos do  calendário novaiorquino para advogados, empreendedores, juristas e acadêmicos  interessados nos desafios jurídicos associados à realização de negócios no Brasil. O tema  desta edição será “Moldando o Amanhã: Navegando pelos Desafios e Oportunidades do Brasil”, e  compreenderá uma série de paineis sobre temas relevantes no cenário brasileiro.   

Na entrevista abaixo, Karla discute as perspectivas e formas de enfrentar os desafios para avançar no saneamento básico no Brasil. A conversa abordou desde a capacidade do país em superar as dificuldades de infraestrutura, financeiras, técnicas e administrativas, até o impacto do Marco Legal do Saneamento e a contribuição de empresas públicas e agências reguladoras. Além disso, a entrevista explorou estratégias para acelerar a universalização do saneamento, ressaltando a importância de adotar uma abordagem integrada e eficiente. 

Instituto Millenium: No Brasil, a universalização do saneamento enfrenta não apenas desafios financeiros, mas também questões de capacidade técnica e agilidade processual. Diante de um cenário com recursos financeiros disponíveis, como avalia a capacidade do país em termos de engenharia e infraestrutura para executar as obras necessárias? Além disso, como a morosidade dos processos administrativos, especialmente na obtenção de licenças ambientais e outros alvarás, impacta o ritmo de progresso? Há estratégias que possam efetivamente acelerar esses processos, talvez por meio da abertura de mercado ao capital estrangeiro ou uma revisão nas políticas de permissão? 

Karla Bertocco Trindade: Atualmente, o Brasil não possui plena capacidade para instalar a infraestrutura necessária de saneamento dentro do prazo estipulado pelo Marco Legal, apontando para 2033. A discussão não se limita apenas aos desafios de infraestrutura, mas também ao elevado custo de capital envolvido, que exige uma gestão otimizada dos recursos. Esse cenário envolve um complexo ecossistema de investimentos em saneamento, que inclui desde a cadeia de suprimentos até a execução dos investimentos, contando com um alto grau de terceirização. A recente pressão do Marco Legal tem revelado a escassez de mão de obra qualificada e a necessidade de treinamento, inclusive com a inclusão de profissionais de outros países. 

Um estudo do BNDES sobre os primeiros leilões de saneamento destacou a existência de lacunas na cadeia de suprimentos, particularmente em materiais estratégicos, como equipamentos e produtos químicos, sugerindo uma capacidade de produção insuficiente para atender à demanda acelerada por obras de saneamento. Além disso, o setor ainda opera com tecnologias antiquadas, o que indica uma falta de inovação na abordagem dos projetos de saneamento. 

Importante mencionar que, além dos desafios financeiros e de mão de obra, a execução de obras de saneamento em grandes centros urbanos enfrenta obstáculos significativos relacionados à negociação com as autoridades municipais para o uso do subsolo e a adaptação ao tráfego e às condições locais, o que pode aumentar os custos e impactar a produtividade. Esses fatores, combinados com a complexidade dos processos administrativos e a obtenção de licenças, requerem uma abordagem integrada e eficiente para garantir o avanço necessário no setor de saneamento básico do Brasil. 

IM: Considerando o elevado custo e a complexidade logística de implementar o saneamento básico em áreas de difícil acesso e com questões de regularização fundiária, como em muitas favelas brasileiras, de que forma a inovação tecnológica pode contribuir para superar esses obstáculos? Existem soluções tecnológicas emergentes que prometem reduzir significativamente os custos, contribuindo para acelerar a universalização? 

KBT: Sim, existem inovações tecnológicas que podem ajudar a superar os obstáculos do saneamento em áreas de difícil acesso, como favelas, mas ainda são pouco utilizadas no Brasil. Nos grandes municípios, onde há áreas de maior densidade, a obra convencional de instalação de redes de água e esgoto prevalece. A inovação, nesse contexto, vem na forma de medição do consumo via Internet das Coisas e na busca por métodos de tratamento mais eficientes para otimizar o uso do espaço físico nas estações existentes, evitando novas desapropriações. 

Para áreas informais e comunidades, onde o acesso é complicado e as condições desfavoráveis, como casas abaixo do nível da rua ou construídas sobre córregos, requerem soluções adaptadas. Aqui, a inovação não precisa ser de ponta, mas sim aplicar conhecimentos locais e técnicas simples que já são conhecidas e funcionam, como sistemas alternativos de tratamento que evitam a contaminação da água. Estas soluções, por vezes, são baseadas na criatividade e na adaptação à realidade local, não necessariamente em alta tecnologia. 

No entanto, um desafio significativo é a aceitação regulatória dessas soluções inovadoras. Há uma incerteza se essas adaptações serão reconhecidas pelos reguladores como contribuições válidas para a universalização do saneamento. Essa incerteza cria um risco para os investidores, que podem hesitar em aplicar recursos em soluções que talvez não sejam reconhecidas posteriormente para cumprir as metas de universalização. 

Portanto, ao mesmo tempo em que contamos com tecnologias emergentes e soluções adaptativas que podem oferecer respostas eficazes aos desafios do saneamento em áreas complexas, é crucial que haja uma clareza e aceitação regulatória para que tais inovações sejam amplamente adotadas e integradas nas estratégias de saneamento básico. 

IM: A capacidade de responder e evitar crises hídricas severas, como a que acometeu a grande São Paulo entre 2015 e 2016, se torna ainda mais crítica diante dos desafios impostos pela crise climática. Que lições foram aprendidas com crises anteriores e como podemos aprimorar nossos esforços para lidar com o estresse hídrico futuro? De que forma o marco regulatório do saneamento básico pode contribuir para essa gestão? 

KBT: A crise hídrica que São Paulo enfrentou entre 2014 e 2015 foi um divisor de águas no que diz respeito à gestão de recursos hídricos, especialmente sob a ótica dos desafios impostos pela crise climática. Aprendemos que não podemos mais confiar cegamente nos padrões históricos de chuva para planejar nossas necessidades hídricas futuras. Essa crise destacou a urgência de repensarmos nossas estratégias, adaptando-nos a um novo normal climático onde os extremos se tornam cada vez mais comuns. 

Um dos grandes avanços foi a interligação dos sistemas de reservatórios em São Paulo, permitindo uma gestão mais flexível e resiliente da água disponível. Esse movimento, embora técnico, reflete uma mudança significativa na forma como pensamos a segurança hídrica: não apenas aumentando a quantidade de água produzida, mas garantindo que ela possa ser compartilhada e distribuída de forma eficiente entre as diversas regiões, conforme a necessidade. 

Crucialmente, a crise também desencadeou uma transformação no comportamento das pessoas. As campanhas de conscientização e os incentivos financeiros tiveram um impacto profundo, levando a uma redução permanente no consumo de água. Esse fenômeno demonstra o poder da educação e do engajamento público em questões de sustentabilidade e gestão de recursos. Aprendemos que mudanças de hábitos são possíveis e duradouras e que quando o cidadão aprende a fechar a torneira ao escovar os dentes, é muito provável que esse se torne um comportamento consistente no longo prazo.  

A adoção de tecnologias avançadas tem potencial para revolucionar nossa abordagem na identificação e redução das perdas de água, um desafio crítico onde o Brasil ainda registra índices preocupantes, com cerca de 40% da água produzida sendo perdida através de vazamentos e fraudes. A inteligência artificial e sensores especializados para detecção de vazamentos subterrâneos, embora não amplamente implementados no Brasil, representam um avanço promissor que poderia significativamente mitigar essas perdas. Mais especificamente, o conceito de utilizar imagens de satélite para identificar vazamentos, ainda que em estágios iniciais de aplicação no país, promete ser uma ferramenta valiosa. Este método, ao permitir uma localização precisa e rápida de vazamentos, tem o potencial de transformar a gestão de recursos hídricos, tornando as intervenções mais eficientes e reduzindo os custos operacionais associados à manutenção da rede de abastecimento.  

Finalmente, é importante destacar que o Marco Legal também introduziu a possibilidade de incluir nos contratos de gestão metas específicas para a redução de perdas, a eficiência energética, e a eficiência hídrica. Isso marcou uma evolução com relação à tradicional ênfase na expansão da cobertura de saneamento, sinalizando um avanço na direção de contarmos com uma gestão mais integrada dos recursos hídricos.  

IM: Com a aprovação do novo marco do saneamento, muito tem se falado sobre as oportunidades que as concessões e parcerias público-privadas representam para a universalização do saneamento. Quais outras inovações em modelos de financiamento poderiam ser aplicadas para superar os desafios de captação de recursos? 

KBT: A implementação do Marco Legal do Saneamento foi uma jogada estratégica para abrir o mercado e desfazer a monopolização do setor pelas administrações públicas, introduzindo licitações que forçam uma renovação do sistema. Essa mudança era necessária; ela rompe com o antigo modelo de contratos de programas entre entes públicos, que mais serviam para manter as coisas como estavam do que para realmente promover melhorias no saneamento. Agora, com o Marco Legal exigindo licitações, mesmo os entes públicos são desafiados a se adaptar e competir, apesar das dificuldades inerentes a essa transição. 

Este cenário abre portas para uma discussão mais profunda sobre nossas metas de saneamento e como planejar para alcançá-las, introduzindo contratos mais robustos, com cláusulas claras e objetivas. O fato é que, sem a contribuição significativa do setor privado, a universalização do saneamento seria uma meta inalcançável. O Marco Legal reconhece isso e pavimenta o caminho para que o capital privado entre com força no setor. 

Entrando na questão do financiamento, os novos instrumentos, como as debêntures incentivadas, estão se mostrando fundamentais para atrair investimentos. Essas ferramentas, adaptadas às necessidades do setor, não apenas diversificam as fontes de financiamento mas também oferecem soluções para antigos problemas, como o risco cambial. Estamos vendo uma verdadeira evolução na forma como o saneamento pode ser financiado, movendo-se de dependências de financiamentos públicos e multilaterais para um cenário onde o mercado de capitais desempenha um papel mais proeminente. 

Contudo, é essencial manter uma vigilância constante sobre os efeitos colaterais e desafios não antecipados que possam surgir, como o impacto da reforma tributária no custo operacional do saneamento (que é desconhecido devido ao fato da reforma ainda não ter sido regulamentada). Tais mudanças exigem uma adaptação contínua das estratégias de financiamento e gestão, assegurando que a capacidade de investimento não seja comprometida por ônus tributários não previstos, garantindo, assim, o avanço sustentável em direção à universalização do saneamento no Brasil. 

IM: Considerando o relevante papel das empresas públicas de saneamento e das agências regulatórias na universalização do acesso a serviços de qualidade, e o recente desmantelamento da lei das estatais, quais melhorias na gestão e mudanças legislativas seriam necessárias para aperfeiçoar o desempenho e a eficiência dessas instituições? 

KBT: A suspensão de alguns aspectos da Lei das Estatais, que impedia nomeações políticas em empresas públicas, trouxe à tona a necessidade urgente de incorporar dispositivos semelhantes diretamente nos estatutos dessas empresas para garantir a gestão baseada em mérito e independência da influência política direta. Observamos que, na prática, empresas que se privatizam ou aquelas com o capital disperso no mercado, tendem a adotar medidas de proteção em seus estatutos para preservar a governança corporativa e a eficiência operacional, mesmo após mudanças legislativas que possam enfraquecer essas proteções. 

Para as agências reguladoras, que não se enquadram exatamente na categoria das estatais mas são cruciais para a universalização do saneamento, seria prudente incorporar esses princípios de governança, independência decisória, e autonomia administrativa, financeira e orçamentária diretamente nas leis que regem a criação e funcionamento de cada uma. Isso criaria um marco robusto que assegura a continuidade da eficiência e independência dessas agências, mesmo diante de potenciais pressões políticas. 

Exemplos positivos, como a Eletrobras, que conseguiu manter certa estabilidade e governança corporativa apesar das mudanças, ilustram como a proteção através dos estatutos pode ser efetiva. Por outro lado, o recente caso da retenção dos dividendos da Petrobras pelo governo ilustra os desafios e a necessidade de salvaguardas robustas para evitar influências indesejadas que possam comprometer o desempenho e a eficiência. 

Essa estratégia de incorporar salvaguardas diretamente nos documentos que regem as estatais e agências reguladoras pode ser um caminho viável para manter a integridade e eficiência dessas entidades no longo prazo. Contudo, isso também introduz uma camada adicional de complexidade no investimento e na gestão dessas entidades no Brasil, podendo desencorajar investidores pela necessidade de navegar por uma "teia" cada vez mais sofisticada de regulamentações e proteções. Esta situação sublinha a importância de um equilíbrio cuidadoso entre proteger a governança e a eficiência das estatais e agências reguladoras e manter um ambiente atrativo e acessível para investidores.