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O que desastres ambientais têm a ver com leis de zoneamento urbano

Desastres — como o do Carnaval — nunca ocorrem por um único motivo, mas entre os fatores que culminaram no triste episódio, um é bem óbvio

São Sebastião: Barra do Sahy após as fortes chuvas do final de semana. (Rovena Rosa/Agência Brasil)
São Sebastião: Barra do Sahy após as fortes chuvas do final de semana. (Rovena Rosa/Agência Brasil)
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Instituto Millenium

Publicado em 23 de fevereiro de 2023 às, 19h01.

Neste carnaval, o Brasil ficou consternado com a tragédia que tirou a vida de dezenas de pessoas, e deixou outras milhares desabrigadas, no litoral norte de São Paulo.  Desastres dessa magnitude nunca ocorrem por um único motivo, mas entre os fatores que culminaram no triste episódio, um é bem óbvio: não deveria haver pessoas morando em zonas com tão elevado risco de deslizamento. Só que elas estão lá por um motivo que não é vontade de se arriscar. Essas pessoas simplesmente não conseguem pagar por uma moradia nos grandes centros urbanos, apelando para locais mais baratos, que muitas vezes são também mais perigosos.

As regulamentações de zoneamento estabelecem as regras de uso e desenvolvimento da terra em uma determinada área e podem influenciar significativamente os tipos de edifícios e infraestrutura construídos em diferentes partes da cidade. A redução das restrições de zoneamento e o incentivo ao desenvolvimento mais denso em áreas específicas pode reduzir as construções em áreas de alto risco.

Quando a quantidade de desenvolvimento permitida em uma área é limitada pelas restrições ao adensamento, pode ocorrer uma escassez de oferta de habitação e infraestrutura. Isso, por sua vez, pode levar a preços mais altos de habitação e aumentar a pressão para desenvolver novas áreas que podem não ser tão seguras ou adequadas para a construção.

Segundo o último relatório da Fundação João Pinheiro, em 2019, o Brasil tinha um déficit habitacional de cerca de 5,9 milhões de moradias. As habitações precárias representam 25,2% desse total. A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), divulgada pelo IBGE relativamente ao mesmo ano, apontou que, no estado de São Paulo as famílias com faixa de renda de até 2 salários mínimos têm 45,9% dos seus rendimentos comprometidos com habitação. Esse alto custo tem a ver com o desequilíbrio entre oferta e demanda nas áreas mais procuradas das cidades.

Conforme apontado por Berke e Campanella (2006)[i] em seu estudo sobre resiliência pós-desastres, um desenvolvimento mais adensado em áreas específicas pode proporcionar mais oportunidades para orientar o desenvolvimento em locais seguros e proteger áreas sensíveis, como encostas, pântanos, dunas de areia e planícies de inundação fluvial. De acordo com os autores, um zoneamento que restringe e diferencia os usos da terra coloca maior pressão para se construir em espaços ambientalmente sensíveis, enquanto a promoção de maior adensamento e flexibilidade no desenvolvimento pode aumentar a oferta de moradias e outras infraestruturas em áreas já estabelecidas, reduzindo assim a necessidade de se desenvolver novas áreas.

A flexibilização das restrições de zoneamento também pode permitir o desenvolvimento de áreas mais mistas, onde diferentes tipos de edifícios, como residenciais e comerciais, são construídos próximos uns dos outros. Essa mistura pode facilitar o acesso das pessoas a bens e serviços sem precisar percorrer longas distâncias, reduzindo, portanto, a demanda por novas construções em áreas remotas ou perigosas.

Pessoas, e suas construções, reagem a incentivos. O incentivo ao desenvolvimento mais adensando e a redução do excesso de restrições a novas construções podem encorajar o desenvolvimento em áreas mais seguras e desencorajar a construção em áreas propensas a desastres naturais ou outros perigos. Adensar e revitalizar nossas cidades pode salvar vidas.


[i] Berke, P. R., & Campanella, T. J. (2006). Planning for Postdisaster Resiliency. The ANNALS of the American Academy of Political and Social Science, 604(1), 192–207