Mais realista que o rei: quem garante que existiremos daqui cem anos?
As ameaças do aquecimento global são sérias e não podemos desperdiçar qualquer possibilidade de combatê-lo
Especialista em parcerias público-privadas
Publicado em 10 de dezembro de 2024 às 14h25.
Última atualização em 10 de dezembro de 2024 às 14h41.
Em 1924, o presidente do Brasil era Arthur Bernardes. Mineiro de Viçosa, presenciou ao longo de seu mandato a Semana de Arte Moderna de 1922 e o episódio dos 18 do Forte de Copacabana, movimento contra a República Velha. Foi um dos últimos presidentes da Política do Café com Leite, acordo que garantiu a hegemonia das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais naquele período. Uma realidade distante que hoje povoa nossos livros de história. Será que o então presidente imaginava, há cem anos, como seria o Brasil de hoje? Qual a efetiva capacidade dos indivíduos, das empresas e do Estado em garantir compromissos que serão concretizados um século depois, por pessoas que nem sequer haviam nascido quando foram realizados?
Questões como essas, de certa forma, permeiam hoje o desenvolvimento de alguns projetos de créditos de carbono, particularmente aqueles relacionados à restauração de florestas públicas. Esses créditos são ativos passíveis de comercialização, lastreados no carbono capturado da atmosfera pelo processo natural de crescimento da vegetação durante a recuperação florestal. A questão que se coloca é que alguns compradores têm exigido de seus fornecedores uma garantia de cem anos de permanência das florestas que originaram seus créditos, prazo defendido por algumas correntes da comunidade científica.
Na mesma direção, a principal certificadora de projetos de carbono passou a exigir um século de garantia, sem a qual parte dos créditos gerados devem ser retidos e impedidos de serem comercializados como uma espécie de estoque garantidor para compensar uma eventual degradação futura das áreas florestais.
Tais exigências têm uma razão de ser. Diante das perspectivas catastróficas dos eventos climáticos, é necessário que se promovam políticas e soluções perenes e críveis, de maneira que o combate ao aquecimento global seja sério e estruturante, e não algo passageiro, um “voo de galinha”. Por outro lado, cabe questionar se esse racional é de fato compatível com a realidade dos projetos de restauro nas florestas públicas brasileiras.
Sustentabilidade é premissa
Isso porque estas áreas são unidades de conservação, sujeitas a uma rigorosa regulação - SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei 9.985, de 18 de julho de 2000). Ou seja, a criação floresta pública já é, per se, uma resposta para garantir a sua integridade diante das pressões que o homem exerce sobre o seu território. A sustentabilidade é premissa de sua razão de existir.
É diante desse quadro que cabe avaliar os custos e benefícios de se exigir créditos de carbono garantidos em um horizonte tão largo de tempo, partindo do pressuposto que o Estado não será capaz de proteger suas unidades de conservação ao término da concessão, em 40 anos. Isso porque quando parte dos créditos é retida como forma de garantia futura, retém-se também as receitas que poderiam ser obtidas com sua comercialização, o que prejudica a atratividade dos projetos de restauração, podendo, em alguns casos, inclusive, inviabilizá-los.
O fato precisa ser melhor debatido, principalmente no momento em que os governos federal e dos estados da Amazônia almejam ambiciosos programas de concessão florestal. Atualmente dois desses projetos estão em vias de serem concretizados – Floresta Nacional de Bom Futuro, em Rondônia, e Área de Proteção Ambiental Triunfo do Xingu, no Pará. Outros sete projetos já foram anunciados pelo governo federal, com a pretensão de restaurar uma área equivalente a mais de 330 mil campos de futebol.
Mercado de carbono no Brasil
Além disso, nas últimas semanas foi aprovado o projeto de lei que institui o mercado de carbono no Brasil, o que exigirá das empresas emissoras de gases de efeito estufa a compra de créditos de carbono para se adequarem aos patamares de emissão máximos permitidos, ainda por serem definidos.
Nesse sentido, além do desenho de um bom contrato de concessão e do estabelecimento de um arcabouço regulatório e governança pública para promover a conservação das áreas, o que já existe, ainda que passível de aprimoramentos, é difícil oferecer nos acordos de comercialização dos créditos de carbono mais garantias sobre as condições jurídicas, institucionais e decisões públicas a serem tomadas daqui 40 anos e ao longo dos 60 anos subsequentes.
Importante pontuar também que, independentemente dessa garantia de século, se a lei não for capaz de assegurar que essas áreas continuarão íntegras, há ainda um natural incentivo para que o Estado mantenha essas florestas. O Brasil precisa cumprir com a sua meta perante a comunidade internacional, conhecida como “Contribuição Nacional Designada”. A meta brasileira só é atingível com redução significativa do desmatamento ilegal. Se afrouxar, terá de prestar contas.
Diante disso, embora seja legítimo o esforço de se buscar compromissos firmes de longo prazo, se feito em excesso, eles podem inviabilizar iniciativas com resultados imediatos. As soluções baseadas na natureza são a mais eficiente forma de capturar gases de efeito estufa da atmosfera e cumprir a meta dos acordos internacionais de limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C, enquanto novas tecnologias são desenvolvidas. De quebra, propiciam enormes ganhos ambientais locais e regionais com impactos positivos na biodiversidade, segurança hídrica e tantos outros.
Não se trata de incentivar o afrouxamento das regras ambientais ou o desenvolvimento de projetos de baixa qualidade. Mas reconhecer que, assim como Arthur Bernardes não podia prever o Brasil de hoje, também temos pouquíssima clareza de como serão as condições públicas e privadas para gerir as unidades de conservação em 2124, além do que vislumbramos na concessão e marco regulatório. Talvez a tentativa mais estruturante no momento seja alterar a lei para compatibilizar o prazo máximo das concessões e, portanto, da responsabilidade privada pela preservação das florestas, com o das garantias requeridas. Qualquer coisa além disso é especulação, principalmente se considerarmos a velocidade exponencial dos avanços tecnológicos e das mudanças na sociedade.
As ameaças do aquecimento global são sérias e não podemos desperdiçar qualquer possibilidade de combatê-lo. Mesmo diante da necessidade de emitir sinais inequívocos de responsabilidade ambiental pelas empresas que buscam zerar suas pegadas de carbono ou se adequar às novas regulações, é necessário sopesar se não estamos tentando ser mais realistas que o rei, eventualmente comprometendo iniciativas que podem gerar resultados imediatos e concretos, sob o risco de daqui cem anos não restar ninguém para averiguar se de fato as florestas foram mantidas ou não.*
*Em coautoria com Rômulo Sampaio, Professor de Direito Ambiental e Climático da FGV
Em 1924, o presidente do Brasil era Arthur Bernardes. Mineiro de Viçosa, presenciou ao longo de seu mandato a Semana de Arte Moderna de 1922 e o episódio dos 18 do Forte de Copacabana, movimento contra a República Velha. Foi um dos últimos presidentes da Política do Café com Leite, acordo que garantiu a hegemonia das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais naquele período. Uma realidade distante que hoje povoa nossos livros de história. Será que o então presidente imaginava, há cem anos, como seria o Brasil de hoje? Qual a efetiva capacidade dos indivíduos, das empresas e do Estado em garantir compromissos que serão concretizados um século depois, por pessoas que nem sequer haviam nascido quando foram realizados?
Questões como essas, de certa forma, permeiam hoje o desenvolvimento de alguns projetos de créditos de carbono, particularmente aqueles relacionados à restauração de florestas públicas. Esses créditos são ativos passíveis de comercialização, lastreados no carbono capturado da atmosfera pelo processo natural de crescimento da vegetação durante a recuperação florestal. A questão que se coloca é que alguns compradores têm exigido de seus fornecedores uma garantia de cem anos de permanência das florestas que originaram seus créditos, prazo defendido por algumas correntes da comunidade científica.
Na mesma direção, a principal certificadora de projetos de carbono passou a exigir um século de garantia, sem a qual parte dos créditos gerados devem ser retidos e impedidos de serem comercializados como uma espécie de estoque garantidor para compensar uma eventual degradação futura das áreas florestais.
Tais exigências têm uma razão de ser. Diante das perspectivas catastróficas dos eventos climáticos, é necessário que se promovam políticas e soluções perenes e críveis, de maneira que o combate ao aquecimento global seja sério e estruturante, e não algo passageiro, um “voo de galinha”. Por outro lado, cabe questionar se esse racional é de fato compatível com a realidade dos projetos de restauro nas florestas públicas brasileiras.
Sustentabilidade é premissa
Isso porque estas áreas são unidades de conservação, sujeitas a uma rigorosa regulação - SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei 9.985, de 18 de julho de 2000). Ou seja, a criação floresta pública já é, per se, uma resposta para garantir a sua integridade diante das pressões que o homem exerce sobre o seu território. A sustentabilidade é premissa de sua razão de existir.
É diante desse quadro que cabe avaliar os custos e benefícios de se exigir créditos de carbono garantidos em um horizonte tão largo de tempo, partindo do pressuposto que o Estado não será capaz de proteger suas unidades de conservação ao término da concessão, em 40 anos. Isso porque quando parte dos créditos é retida como forma de garantia futura, retém-se também as receitas que poderiam ser obtidas com sua comercialização, o que prejudica a atratividade dos projetos de restauração, podendo, em alguns casos, inclusive, inviabilizá-los.
O fato precisa ser melhor debatido, principalmente no momento em que os governos federal e dos estados da Amazônia almejam ambiciosos programas de concessão florestal. Atualmente dois desses projetos estão em vias de serem concretizados – Floresta Nacional de Bom Futuro, em Rondônia, e Área de Proteção Ambiental Triunfo do Xingu, no Pará. Outros sete projetos já foram anunciados pelo governo federal, com a pretensão de restaurar uma área equivalente a mais de 330 mil campos de futebol.
Mercado de carbono no Brasil
Além disso, nas últimas semanas foi aprovado o projeto de lei que institui o mercado de carbono no Brasil, o que exigirá das empresas emissoras de gases de efeito estufa a compra de créditos de carbono para se adequarem aos patamares de emissão máximos permitidos, ainda por serem definidos.
Nesse sentido, além do desenho de um bom contrato de concessão e do estabelecimento de um arcabouço regulatório e governança pública para promover a conservação das áreas, o que já existe, ainda que passível de aprimoramentos, é difícil oferecer nos acordos de comercialização dos créditos de carbono mais garantias sobre as condições jurídicas, institucionais e decisões públicas a serem tomadas daqui 40 anos e ao longo dos 60 anos subsequentes.
Importante pontuar também que, independentemente dessa garantia de século, se a lei não for capaz de assegurar que essas áreas continuarão íntegras, há ainda um natural incentivo para que o Estado mantenha essas florestas. O Brasil precisa cumprir com a sua meta perante a comunidade internacional, conhecida como “Contribuição Nacional Designada”. A meta brasileira só é atingível com redução significativa do desmatamento ilegal. Se afrouxar, terá de prestar contas.
Diante disso, embora seja legítimo o esforço de se buscar compromissos firmes de longo prazo, se feito em excesso, eles podem inviabilizar iniciativas com resultados imediatos. As soluções baseadas na natureza são a mais eficiente forma de capturar gases de efeito estufa da atmosfera e cumprir a meta dos acordos internacionais de limitar o aumento da temperatura global a 1,5°C, enquanto novas tecnologias são desenvolvidas. De quebra, propiciam enormes ganhos ambientais locais e regionais com impactos positivos na biodiversidade, segurança hídrica e tantos outros.
Não se trata de incentivar o afrouxamento das regras ambientais ou o desenvolvimento de projetos de baixa qualidade. Mas reconhecer que, assim como Arthur Bernardes não podia prever o Brasil de hoje, também temos pouquíssima clareza de como serão as condições públicas e privadas para gerir as unidades de conservação em 2124, além do que vislumbramos na concessão e marco regulatório. Talvez a tentativa mais estruturante no momento seja alterar a lei para compatibilizar o prazo máximo das concessões e, portanto, da responsabilidade privada pela preservação das florestas, com o das garantias requeridas. Qualquer coisa além disso é especulação, principalmente se considerarmos a velocidade exponencial dos avanços tecnológicos e das mudanças na sociedade.
As ameaças do aquecimento global são sérias e não podemos desperdiçar qualquer possibilidade de combatê-lo. Mesmo diante da necessidade de emitir sinais inequívocos de responsabilidade ambiental pelas empresas que buscam zerar suas pegadas de carbono ou se adequar às novas regulações, é necessário sopesar se não estamos tentando ser mais realistas que o rei, eventualmente comprometendo iniciativas que podem gerar resultados imediatos e concretos, sob o risco de daqui cem anos não restar ninguém para averiguar se de fato as florestas foram mantidas ou não.*
*Em coautoria com Rômulo Sampaio, Professor de Direito Ambiental e Climático da FGV