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Instituto Millenium entrevista Eduardo Dargent

"Autonomia e capacidade estatística são inseparáveis", diz Dargent

 (Eduardo Dargent/Divulgação)
(Eduardo Dargent/Divulgação)

O professor peruano Eduardo Dargent compartilhou recentemente suas ideias sobre a capacidade estatística na América Latina com o Instituto Millenium. Seus comentários surgiram no contexto da nomeação de Márcio Pochmann como presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), uma mudança que levantou questões sobre a independência da instituição. 

Dargent coescreveu o livro "A quem importa saber? A economia política da capacidade estatística na América Latina" com Gabriela Lotta, José Antonio Mejía e Gilberto Moncada. Publicado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em 2018, o livro examina as variáveis institucionais e técnicas que afetam a força e o desempenho dos Departamentos Nacionais de Estatística. 

Dargent possui um doutorado em Ciência Política pela Universidade do Texas em Austin, um mestrado em Filosofia Política pela Universidade de York e uma licenciatura em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Peru (PUCP). Ele atua como professor no Departamento de Ciências Sociais da PUCP e publicou trabalhos em várias revistas acadêmicas, incluindo Comparative Politics, Journal of Latin American Studies e Journal of Politics in Latin America. 

Instituto Millenium: No livro publicado por você e um grupo de outros autores, articulam-se três níveis de análise para explicar o que é denominado "capacidade estatística" dos países, abordando processos históricos, economia política e formação institucional. Você poderia definir o termo "capacidade estatística" e detalhar como esses três níveis de análise facilitam nosso entendimento desse conceito? 

Eduardo Dargent: Primeiramente, entendemos a capacidade estatística como uma combinação de dois fatores: a habilidade dos institutos de estatística em produzir informações técnicas apropriadas e de alto nível, que são cada vez mais complexas em termos estatísticos, e também a autonomia para fazê-lo. É uma espécie de combinação que conjuga a ideia de ser capaz de realizar tarefas e ao mesmo tempo realizá-las sem interferência externa. 

A ideia central é que, apesar de existir uma literatura extensa sobre por que os estados adquirem capacidade, não devemos simplificar a análise. Nenhum país conseguirá ter um centro de estatística de altíssimo nível se o ambiente institucional não for bom, nem se o seu desenvolvimento histórico for insatisfatório. Portanto, consideramos três níveis. 

O primeiro nível é mais macro, histórico e institucional, referindo-se à capacidade estatal que o país conseguiu alcançar dentro da América Latina, sabendo que há grande variação. Países como Chile, Uruguai e até mesmo o Brasil estão numa posição mais alta, enquanto outros, devido à sua economia, desenvolvimento histórico, conflitos e guerras perdidas, ou o tipo de economia dominante, não conseguiram um melhor desenvolvimento estatal. Este é o primeiro nível. 

O segundo nível está relacionado com questões de economia política que podem ter impactado positivamente os países. Refere-se ao tipo de reformas que foram implementadas na sua história, aos choques aos quais foram submetidos, que acabam por dar mais importância à estatística dentro de um contexto mais intermediário. O último nível tem mais a ver com a agência, com as ações que foram tomadas por atores chave para aumentar a capacidade estatística. Portanto, buscamos considerar esses três níveis para tentar explicar as diferentes trajetórias que encontramos nos estudos de caso que foram analisados e desenvolvidos por especialistas, e que nós adaptamos a essa narrativa geral. 

Instituto Millenium: No contexto da construção da capacidade estatística, você destaca a autonomia de organismos como o IBGE, enfatizando a necessidade de mecanismos de proteção formal e informal. Você poderia ilustrar com exemplos práticos como esses mecanismos operaram, tanto no Brasil como em outros países da América Latina? 

Eduardo Dargent: Sim, essa ideia de formal e informal se refere ao fato de que, quando observamos as regras formais que as agências estatais possuem, muitas vezes nos concentramos demais na crença de que ao criar boas regras que concedem autonomia, isso irá acontecer automaticamente. No entanto, frequentemente, os contextos de cada país fazem com que essas regras nunca sejam aplicadas. 

Há casos em que a adoção de regras foi resultado do ganho de poder, autonomia e influência dessas instituições estatais. Assim, a regra não é tanto uma causa desse crescimento em importância, mas sim um bloqueio final. É como dizer: "Agora que temos essa capacidade, vamos defendê-la impondo certos limites". Então, a ideia de mecanismos formais e informais visa a abordar essas dimensões. 

Por vezes, as proteções podem ser constitucionais ou incluir certas garantias para a nomeação de seus membros. Em outros casos, podem ser regras que se repetem ao longo do tempo por costume e pela importância que uma instituição adquire. 

O ideal seria que uma instituição em desenvolvimento adquirisse capacidade e apoio para garantir algumas dessas coisas, para que pudesse se manter. No caso do Brasil, temos um exemplo muito interessante, pois é uma instituição que conquistou muito prestígio com uma cultura própria, informal, mesmo quando as regras formais nem sempre são totalmente favoráveis. Há a possibilidade de nomear pessoas que não necessariamente sigam a linha de desenvolvimento e capacidade da instituição. 

Não posso opinar muito, pois não sou especialista no caso brasileiro, mas lembro que quando fizemos os estudos, esse era um ponto a considerar. O líder da instituição pode ser nomeado pelo poder executivo, mas há elementos internos que, devido à sua trajetória, estabilidade, proteção de suas áreas e à qualidade do trabalho realizado, permitem resistir e manter o nível. 

Instituto Millenium: Em seu livro, você explora a ideia de que os vínculos com atores estatais, organizações da sociedade civil (OSCs), agentes econômicos e a imprensa podem constituir uma barreira informal para preservar a capacidade estatística. Você poderia aprofundar esse conceito? A que tipos de vínculos você se refere? Como eles podem ser fortalecidos? 

Eduardo Dargent: Parte da ideia que exploramos, e que também aparece na literatura sobre desenvolvimento institucional, é que muitas vezes os melhores aliados de instituições eficientes são aqueles organismos, associações ou grupos que eles regulam na sociedade, ou aos quais fornecem informações. Está no interesse desses atores manter um alto nível de eficiência, e quando há tentativas de politização ou uso inadequado da instituição, esses atores podem reagir e ajudar a defendê-la. 

Vamos esquecer por um momento os grupos de estatística. Pense em uma organização que fornece informações essenciais para o setor exportador, uma entidade estatal que precisa constantemente certificar e fornecer informações. Qualquer interferência política ou queda na qualidade vai afetar os exportadores, que agirão para garantir a manutenção desse nível técnico. 

No caso da estatística, o que encontramos é que em vários países, as agências de estatística fornecem informações chave e regularmente, e em diálogo com agentes econômicos, mas também com a imprensa, atores da sociedade civil ou até mesmo centros acadêmicos. Portanto, a nomeação de funcionários ineficientes prejudica esses outros atores, que se mobilizarão para exigir a manutenção do nível. 

Isso não significa que eles sempre terão sucesso. Há momentos em que a politização vence e há um alto custo. De fato, nos casos que analisamos, me lembro do caso argentino, que mostrou dinâmicas desse tipo. A confiança no Indec (Instituto Nacional de Estatística e Censos) foi perdida há vários anos na Argentina e teve um grande custo para uma série de atores econômicos e acadêmicos, que resistiram, mas não conseguiram impedir essa degradação na época. 

Instituto Millenium: Como a habilidade de construir a capacidade estatística está relacionada com a qualidade dos líderes responsáveis pela gestão das autoridades estatísticas? Você poderia expor suas ideias sobre o papel que os líderes públicos desempenham na construção da capacidade institucional nessas entidades? Quais países da América Latina se destacaram no fortalecimento dessa dimensão da capacidade estatística? 

Eduardo Dargent: Nesta lógica de uma cascata que envolve macrofatores, economia política e, depois, agência, este terceiro nível foca nos atores institucionais que podem aproveitar espaços, como os do instituto de estatística, para promover seus interesses. Portanto, não é apenas que esses atores econômicos ou outros vão aguardar boas estatísticas, mas que os atores burocráticos, conscientes dessa necessidade, podem explorar essas alianças, tornar mais visível a difusão de suas informações e mostrar o que pode ser feito com boa estatística. 

Diria que há também um jogo político a ser jogado, mostrando à oposição que uma estatística autônoma e de qualidade é fundamental para fiscalizar o governo. Portanto, ser apolítico pode ser uma forma de ser muito político também. Demonstrar que a informação de qualidade é crucial para o funcionamento de uma democracia e para uma série de atores que se beneficiam com estatísticas de qualidade. 

Em nosso estudo, encontramos que, embora México e Brasil sejam dois países onde os serviços estatísticos têm tido muito boa qualidade, existem uma série de atores institucionais por trás disso. Dito de outra forma, se você olhar para o México e o Brasil, talvez eles não estejam no mesmo nível de outras burocracias do continente, como a chilena, por exemplo, mas seus institutos de estatística estão, em parte graças à ação inteligente de alguns de seus formuladores de políticas públicas e empreendedores políticos. 

Portanto, acredito que isso é algo a valorizar e aprender, que dentro das margens deixadas pelas capacidades de cada país, isso é importante. Outros países com menor capacidade também aproveitaram o espaço que a estatística fornece para que seus institutos estejam um pouco acima do que é o ambiente institucional. Neste sentido, mencionamos alguns exemplos do Peru que fizeram algumas mudanças interessantes em temas de avaliação de pobreza e outras coisas que lhes deram certa relevância dentro do contexto institucional e político. 

Instituto Millenium: Em sua análise, você provavelmente observou casos de intervenção política nas estatísticas oficiais. Poderia nos falar sobre as implicações que tal interferência pode ter para a precisão e confiabilidade dos dados estatísticos? Além disso, quão frequente diria que ocorre essa interferência na América Latina, e quais seriam as consequências para a capacidade estatística da região? 

Eduardo Dargent: Sim, o caso argentino que mencionei é um exemplo complicado, no qual ocorreu durante o primeiro governo de Néstor Kirchner. Houve uma luta contra o Indec, e foi interessante ver as acusações de que ele estava muito vinculado a outras reformas neoliberais feitas na Argentina nos anos anteriores, quando na verdade grande parte do que faziam era fornecer informações confiáveis sobre a inflação e outros temas que geravam críticas e problemas para o governo. Tudo isso é narrado na degradação do instituto precisamente porque as cifras que eram apresentadas não coincidiam com o que o governo buscava, e isso pode ser muito custoso. 

Também há casos na América Central onde se vê o custo de não ter institutos autônomos, mas que fazem um trabalho muito básico, muito simples, e que não fornecem informações precisas, mas assumem certas médias ou certos fatores que não permitem tomar boas decisões. A estatística é uma garantia, também uma garantia democrática, de que todos temos a mesma informação e que seja informação confiável, verificável, replicável e, ao mesmo tempo, como mencionei, também é uma ferramenta para os tomadores de decisões de política e os atores privados poderem confiar que estão tomando as melhores decisões com as informações que existem. 

E isso é apenas o começo, quanto mais e melhor informação um instituto de estatística puder produzir quando desenvolve maior capacidade, melhores serão as decisões de política pública. Hoje em dia, o uso do Big Data e outras fontes de informação pode levar esses institutos a outros níveis, se eles quiserem aproveitar e se confiarem que o melhor que podem fazer é contar com informações, mesmo que muitas vezes essas informações tragam más notícias, que é o que às vezes incomoda os políticos.