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Ideologia ou investimento? Tribunal de Contas da União poderá rever a "Bolsa Ditadura"

Editorial do “O Estado de S. Paulo” de 29 de junho comenta a possibilidade de revisão das indenizações milionárias pagas aos que se qualificam como “vítimas da ditadura” no Brasil: uma conta que chega a R$ 4 bilhões a 9.300 beneficiários. Você acha que tais indenizações são justas e proporcionais? E os que foram vítimas do terrorismo de esquerda, por acaso obtiveram reparações semelhantes na justiça? Confira o texto na […] Leia mais

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Instituto Millenium

Publicado em 29 de junho de 2010 às, 17h58.

Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às, 11h40.

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Editorial do “O Estado de S. Paulo” de 29 de junho comenta a possibilidade de revisão das indenizações milionárias pagas aos que se qualificam como “vítimas da ditadura” no Brasil: uma conta que chega a R$ 4 bilhões a 9.300 beneficiários. Você acha que tais indenizações são justas e proporcionais? E os que foram vítimas do terrorismo de esquerda, por acaso obtiveram reparações semelhantes na justiça?
Confira o texto na íntegra:

A indústria da reparação

Já não sem tempo, o Tribunal de Contas da União (TCU) poderá incluir na sua agenda a revisão das indenizações milionárias a perseguidos pelo regime militar. Com base numa lei sancionada pelo então presidente Fernando Henrique em 2002, ao apagar das luzes do seu segundo mandato, a Comissão de Anistia aprovou pagamentos que somam pelo menos R$ 4 bilhões a cerca de 9.300 beneficiários. A lei obriga o poder público a pagar reparações às vítimas da ditadura de 1964 que se qualificarem como tal. O período coberto vai do início da perseguição configurada à promulgação da Constituição de 1988.

A iniciativa de passar um pente-fino pelos desembolsos considerados desproporcionais aos malefícios de qualquer natureza infligidos aos opositores da ordem autoritária partiu do procurador do Ministério Público junto ao TCU, Marinus Marsico. Autor de representação nesse sentido que está para ser votada pelo colegiado, ele deixa claro que o seu alvo não é a reparação financeira em si, “mas os valores concedidos” a esse título em níveis extravagantes, devido a uma interpretação no mínimo irrealista do espírito da lei e dos desdobramentos presumíveis dos atos com que a ditadura atingiu os seus adversários.

A legislação estabeleceu que as reparações serão maiores quando a perseguição política se traduziu em perda de emprego. Nesse caso, além do recebimento de uma pensão mensal – atualmente, cerca de R$ 3.000, em média -, a vítima tem direito ao pagamento de montantes retroativos a 1988. O limite do benefício mensal é o teto salarial do funcionalismo público, ou seja, R$ 26,7 mil, em valores correntes. Reparações dessa ordem não são propriamente excepcionais. O TCU não pretende rever as indenizações pagas de uma tacada só, até o limite de R$ 100 mil. Elas representam menos de 5% do total dos dispêndios.

O procurador Marinus Marsico cita três exemplos de reparações claramente impróprias. O primeiro é o benefício pago à viúva do capitão Carlos Lamarca, que desertou do Exército para se tornar guerrilheiro e foi morto na Bahia em 1971. Depois da anistia, Lamarca foi promovido post-mortem a coronel, acima dos postos de major e tenente-coronel. Com isso, a viúva Maria Pavan Lamarca recebe o equivalente ao soldo de um general. “A remuneração mensal de R$ 11.444 bem como o pagamento retroativo de R$ 902,7 mil deveriam ser reduzidos”, sustenta o procurador.

Os outros dois casos notórios são os dos jornalistas Ziraldo Alves Pinto e Sérgio Jaguaribe, o Jaguar, fundadores do semanário Pasquim. Em 2008, a Comissão de Anistia aprovou o pagamento retroativo, a cada um, de pouco mais de R$ 1 milhão, além de R$ 4.375 mensais. O procurador argumenta que “não há elementos suficientes que indiquem estar correta a indenização”. Ziraldo observa que não a pediu – o seu nome foi incluído numa lista preparada pelo Sindicato dos Jornalistas do Rio, em 1988. “Mas, se é um direito meu”, afirma, “então está o.k.” Houve quem tenha pensado – e agido – de forma diferente.

O humorista Millôr Fernandes discordou da decisão do sindicato, pediu para que o seu nome fosse excluído da ação e fez um comentário cáustico: “Quer dizer que aquilo (a luta contra a ditadura) não era ideologia, era investimento?” Ainda que não fosse, certas decisões da Comissão de Anistia impõem, ou deveriam impor aos beneficiados, um dilema moral. Aplica-se, por exemplo, ao jornalista cuja reparação resultou do seguinte cálculo: consideraram-se todas as promoções que ele poderia ter tido se não tivesse perdido o emprego, até o topo da carreira na redação em que trabalhava, verificou-se quanto o mercado remunera essa função hoje em dia e, assim, se chegou ao valor de sua pensão vitalícia.

O fato é que a reparação às vítimas do arbítrio se concentrou nos seus aspectos financeiros. A legislação adotada, escreve o jornalista Roldão Arruda, do Estado, parece mais próxima do direito trabalhista do que das convenções internacionais sobre violações dos direitos humanos. A concessão de benefícios materiais prevalece sobre a busca da verdade dos anos de chumbo – a primeira reparação devida às vítimas e suas famílias.