Cláusulas de caducidade podem tirar setor público da inércia
No setor privado, a concorrência acirrada e as forças de mercado frequentemente derrubam as empresas que não se adaptam rapidamente
Publicado em 16 de outubro de 2023 às, 10h57.
Um dos maiores desafios do setor público é o que poderíamos chamar de "inércia administrativa" – a tendência de sistemas e práticas estabelecidas perdurarem mesmo quando se tornam obsoletos ou ineficazes. No setor privado, a concorrência acirrada e as forças de mercado frequentemente derrubam as empresas que não se adaptam rapidamente. No setor público, entretanto, a ausência desse tipo de pressão, combinada com uma série de outras barreiras institucionais e culturais, pode inibir a inovação.
O "path dependence", ou a dependência do caminho trilhado, ilustra essa resistência à mudança. Ao longo do tempo, o setor público acumula sistemas legados, processos e práticas – uma "dívida técnica" que pode se tornar um obstáculo para a inovação. No entanto, essa resistência não é apenas uma função da natureza do setor público ou da inércia burocrática. Ela está enraizada em incentivos institucionais e nas expectativas que a sociedade tem sobre o governo.
Quando os cidadãos olham para o Estado, buscam estabilidade, previsibilidade e segurança. Em um mundo em constante mudança, a capacidade do governo de fornecer essas garantias é essencial. Assim, respostas como "não sei" ou "vamos testar" de autoridades públicas são vistas com desconfiança, levando a um ambiente avesso ao risco e à experimentação. Em um ambiente onde o risco é frequentemente punido e a estabilidade é valorizada, como pode haver espaço para a inovação?
Esta é uma questão de design institucional. Nossas leis, nossas práticas e nossa cultura de governança são moldadas de tal forma que privilegiam a impessoalidade e a conformidade, em detrimento da eficiência, adaptabilidade e solução de problemas. Entre exemplos relevantes, temos as nossas práticas de recrutamento de pessoal e aquisição de bens e serviços. O sistema de concursos públicos garante a impessoalidade, mas falha em prover ao Estado os recursos humanos necessários para resolver problemas complexos. Similarmente, a legislação de compras prioriza a competição justa entre fornecedores, e não a capacidade do Estado adquirir suprimentos que melhor atendam as necessidades públicas.
Mas há maneiras de mudar essa dinâmica.
As "sunset provisions", ou "disposições de caducidade" como são referidas em certos contextos, representam uma solução interessante. Tais disposições são cláusulas integradas na legislação que estabelecem um prazo de validade para um ato legislativo ou entidade pública, a menos que haja uma intervenção do legislador para sua renovação. O intervalo entre a entrada em vigor de uma lei e sua data de caducidade pode variar, oscilando geralmente entre quatro a doze anos. Estas cláusulas geralmente determinam que a legislação ou entidade em questão seja submetida a uma revisão, a qual é frequentemente conduzida por equipes especializadas do legislativo ou por auditores externos. Estes profissionais podem sugerir a extinção da entidade ou legislação, sua continuidade com modificações ou a manutenção de seu formato atual.
Tal mecanismo é crucial para fortalecer o papel das assembleias legislativas no debate e formulação de políticas, visto que muitas vezes o poder executivo detém a preponderância nas decisões sobre a gestão pública. Esta abordagem promove não apenas uma avaliação contínua, mas também a eficiência e a busca por pertinência. As entidades estão cientes de que devem justificar sua relevância, sendo assim incentivadas a oferecer valor à sociedade.
Mais de 35 estados americanos adotam algum tipo de procedimento estruturado de avaliação de políticas públicas baseadas em cláusulas de caducidade, embora as abordagens e o escopo variem consideravelmente entre eles (Baugus & Bose, 2015). Em muitos estados, comissões dedicadas conduzem as avaliações, contando com equipes especializadas que analisam a eficácia, eficiência e necessidade de cada entidade sob revisão. Essas análises são muitas vezes acompanhadas de audiências públicas, permitindo que o público e as partes interessadas participem ativamente do processo de decisão.
O Texas é uma importante referência. Em 1977, o legislativo local estabeleceu uma comissão dedicada a conduzir essas avaliações. Desde então, 42 agências e programas foram encerrados, enquanto 52 tiveram suas funções transferidas ou consolidadas com outras entidades. O resultado dessa iniciativa foi uma economia superior a 1 bilhão de dólares e a realização de mais de 570 avaliações. Somente em 2021, seguindo as recomendações dessa comissão, 31 tipos de licenças em 18 áreas regulatórias foram eliminadas, desburocratizando processos para mais de 140 mil instituições.
No Brasil, também observamos os benefícios de avaliações desse tipo no aprimoramento de políticas públicas. As legislações referentes às cotas no ensino superior e ao FUNDEB incorporam cláusulas de caducidade e de reavaliação periódica. A renovação de ambas legislações dá testemunho sobre como esses mecanismos têm potencial para enriquecer o debate público e, consequentemente, refinar a redação legislativa e aperfeiçoar a formulação de políticas públicas.
No entanto, essas avaliações não devem ser vistas como ameaças ou exercícios punitivos. Em vez disso, devem ser entendidas como oportunidades para aprender, adaptar-se e evoluir. A chave é criar uma cultura de governança que valorize a reflexão, o aprendizado e a capacidade de mudar. E, talvez o mais importante, que reconheça que a inovação no setor público, assim como no setor privado, exige coragem, criatividade e disposição para correr riscos.