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A inexistência da classe média indiana

Com a desaceleração no crescimento da economia chinesa, é natural a busca por um novo mercado para que se possa fazer as apostas.

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Instituto Millenium

Publicado em 22 de janeiro de 2018 às, 10h07.

Última atualização em 22 de janeiro de 2018 às, 11h39.

* Por Sérvulo Dias

Com a desaceleração no crescimento da economia chinesa, é natural a busca por um novo mercado para que se possa fazer as apostas. O sucessor natural é a Índia, com sua população atual de 800 milhões de pessoas e cujo crescimento populacional deve colocá-la no posto de nação mais populosa do mundo ao redor do ano 2050.

Com uma classe média considerada por muitos como em um estágio ainda prematuro na jornada da prosperidade, a Índia infla as expectativas das empresas multinacionais de bens de consumo e serviços para o tamanho dessa oportunidade, com uma estimativa para um mercado de consumo da ordem de 300-400 milhões de pessoas.

Mas, antes de ajustarmos os planos de negócios, vejamos com mais detalhes os números. O topo da pirâmide, 1% da população total (8 milhões de habitantes), tem renda média da ordem de US$ 20.000/ano. O extrato seguinte, 9% da população total (72 milhões de habitantes), tem renda média semelhante à renda média dos países da Europa Central. O extrato seguinte, 40% da população total (320 milhões de habitantes), tem renda média igual à renda média combinada dos seus vizinhos no Sul da Ásia, Bangladesh e Paquistão, ambos países muito pobres. Por fim, a base da pirâmide, representando 50% da população total (400 milhões de habitantes), tem renda média igual à dos países mais pobres do continente africano. Em resumo, se pensarmos no mercado de consumo para produtos além daqueles que compõe uma cesta muito básica, praticamente não existe uma classe média consumidora na Índia.

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E o futuro ainda reserva algumas armadilhas perigosas. As chances de crescimento e desenvolvimento da (ainda inexistente) classe média indiana serão reduzidas em função da crescente desigualdade social. Os estudos conduzidos por Thomas Piketty, o aclamado autor de “O Capital no Século XXI”, mostram que o topo da pirâmide indiana (8 milhões de habitantes) absorveu nada menos do que 1/3 da renda adicionada no período de rápido crescimento econômico entre 1980 e 2014. O topo da pirâmide detém agora 10 vezes mais renda do que detinha em 1980, ao passo que a o extrato seguinte, que contém 40% da população, nem mesmo dobrou sua renda no período. As políticas sociais implementadas nas últimas 3 décadas geraram um resultado interessante naquele extrato que sobrevivia com míseros US$ 2/dia, mas teve pouco êxito no que diz respeito à criação (de fato) de uma classe média. Em outros países com o mesmo nível de maturidade em relação à prosperidade, os extratos médios foram os grandes beneficiados pelo crescimento da renda; no caso indiano, os grandes beneficiados foram as elites, favorecidas pela “herança maldita” do sistema de castas ainda prevalecente.

As razões para tal cenário não são desconhecidas. Décadas de um estatismo intervencionista fizeram com que poucos se beneficiassem das primeiras doses do liberalismo introduzido no início da década de 90. A força de trabalho é extremamente improdutiva, fruto de um sistema educacional totalmente falido e que coloca no mercado milhões de adultos preparados somente para os trabalhos mais braçais. A economia, formada majoritariamente por pequenas e médias empresas trabalhando informalmente, emprega perto de 93% do total da população ativa. O feito chinês de criar um setor produtivo industrial formado por grandes corporações dificilmente poderá ser replicado na Índia no curto prazo, dado o absurdo nível de burocracia estatal, que afugenta negócios desse porte e complexidade.

Obviamente políticas públicas adequadas e liberalismo podem reverter esse cenário negativo, porém temos que colocar um viés mais realista nesse contexto. Nem mesmo o maior sistema democrático do mundo está imune a decisões ruins. Vale lembrar a recente tentativa governamental de “desmonetização” da economia colocada em prática pelo primeiro-ministro Narendra Modi em 2016 (vide o artigo “Moving Towards a Cash-Less Society” que escrevi em Janeiro de 2017). A medida, que visava atingir os grandes “ocultadores” de renda e os negócios que buscam evasão de divisas, acabou por atingir toda a população e com mais gravidade os mais pobres, que de um dia para outro não tinham como converter suas rúpias em consumo. O caminho para a prosperidade trilhado pela China, onde o crescimento do setor produtivo industrial impulsionou o crescimento do emprego e da renda, será menos impactante no caso indiano, já que o processo de automação limitará as oportunidades para o emprego industrial.

E é aqui que temos uma lição para o caso brasileiro. Catorze anos de um estado pesado e interventor geraram nada mais do que um forte achatamento da nossa classe média, tanto em termos de massa populacional quanto em termos de renda disponível para esse extrato. Políticas públicas de transferência de renda, cercadas de corrupção e desvios, em nada ajudaram a amenizar o problema da desigualdade social. Ao contrário, assim como ocorreu na Índia, o topo da pirâmide passou a concentrar ainda mais a renda. Nossa “casta legislativa” ainda não está convencida da importância e da urgência da reforma da Previdência, e se acovarda ao evitar a discussão e votação desse tema em período pré-eleitoral, almejando com isso a manutenção do seu confortável status quo. Perto como estamos do nosso próximo ciclo eleitoral, talvez o mais importante da nossa história, é hora de repensarmos o tamanho e o foco do estado que queremos para o futuro. O pragmatismo liberal talvez seja a única chance de retornarmos aos trilhos.

Sérvulo Dias é economista pela FEA/USP, administrador de empresas e especialista em marketing de serviços pela FIA.