Avanço da soja sobre pastos ameaça o pampa gaúcho
Para especialista, bioma tem condições de ser preservado com manejo adequado de bois
Agência O Globo
Publicado em 22 de setembro de 2021 às 08h45.
O avanço da soja sobre pastagens naturais e até mesmo áreas de plantio de arroz se transformou na principal preocupação do pampa, que se estende do Rio Grande do Sul até Argentina e Uruguai. É o único bioma que existe em um só estado brasileiro — ocupa cerca de dois terços do território gaúcho — e perdeu 21,4% de sua vegetação nativa entre 1985 e 2020, segundo dados do MapBiomas, que mapeia o uso do solo no país.
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Em 1985 a agricultura ocupava 29,8% do bioma. No ano passado, passou a usar 39,9%. O geógrafo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Heinrich Hasenack, coordenador do mapeamento do pampa, afirma que há um desvio da vocação natural da área, caracterizada por formação campestre.
— Ao contrário da Amazônia ou do cerrado, onde é preciso desmatar para criar gado, no pampa a vegetação nativa é um pasto natural, o que permite que a pecuária se desenvolva preservando a paisagem — afirma.
Segundo ele, os campos naturais do pampa permitem que o gado seja alimentado com dieta completa, sem necessidade de usar milho ou farelo de soja como complemento. Com práticas adequadas de manejo, assegura, a criação de bois tem retorno financeiro similar ao do cultivo de grãos, com a vantagem de preservar a biodiversidade.
— Antigamente poderia se argumentar que desconhece, mas o conhecimento de como obter mais carne por hectare é dominado pelo menos há 20 anos. Não cabe fazer pecuária ou agricultura como se fazia há 200 anos. A região permite ainda criar o gado premium europeu, mais valorizado, e isso não está sendo feito em escala — diz o professor.
Quando usados pelo gado, os campos do pampa preservam a biodiversidade e as espécies. Hasenack lembra que a produtividade alcançada no bioma é ótima - 70% do arroz nacional é produzido ali - mas mesmo assim a agricultura tem chegado a áreas menos propícias para cultivo, com mais risco de estiagem e erosão. E a expansão se dá principalmente com plantio de soja.
Hasenack conta que o cultivo de soja começou a se expandir a partir do Norte do estado, onde o solo que havia se desgastado e foi recuperado com técnicas transferidas por um convênio com o governo norte-americano. Os bons preços internacionais, no entanto, têm feito com que a soja avance por áreas onde o solo não tem condições de plantio sustentável, o que pode gerar degradação.
Nas regiões de plantio de arroz, a soja tem sido plantada alternadamente. Enquanto o arroz tem preço regulado, por ser associado à cesta básica dos brasileiros, a soja segue cotações internacionais, o que torna a produção mais atraente.
Apesar de pequeno em tamanho, o pampa é um grande centro de convergência de rotas de aves migratórias nacionais e internacionais, que fazem do bioma um local de descanso e até reprodução. O que atrai as aves é o mosaico de ecossistemas, que inclui lagoas costeiras, praias, dunas, campos, matas de restinga e áreas pantanosas. Há aves como batuíras e os maçaricos, que voam para a região no verão, em busca de alimentos.
Outras, como buscam o pampa somente no outono e no inverno, vindas da Patagônia, sul do Chile, Terra do Fogo e Ilhas Malvinas, como o pedreiro-dos-andes e a andorinha-chilena. As aves migratórias são originárias principalmente da América do Sul e da América Central, mas há também rotas internas, como a que liga o pampa ao pantanal e é feita por aves como colhereiro, gavião-caramujeiro e pato-de-crista.
Ao contrário da Amazônia e do cerrado, o pampa não registra muitas queimadas - a média anual é de 92,5 km2 - seja porque as áreas são usadas como pasto ou porque o fogo não é uma prática cultural nas áreas rurais. A cobertura de superfície de água - quase 10% do bioma - tem se mantido estável, com 1,8 milhão de hectares em 2020. A maior parte da água superficial está na zona costeira, como a Lagoa dos Patos, Mirim e Mangueira, que somadas armazenam 81% do total de superfície de água do bioma.
Hasenak explica que faltam políticas públicas para incentivar o uso de tecnologias e manejo que preservam as características naturais dos biomas no Brasil, com uma visão coletiva que implante várias cadeias produtivas numa mesma região.