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Os desafios de Doria antes de pensar em voos mais altos

É fácil criar uma caricatura “coxinha” de João Doria Jr a partir do seu jeito de vestir, suas participações na TV e seu engajamento na campanha “Basta”. Mas quando um personagem como ele entra na política, novas variáveis merecem atenção. O Doria homem público terá que ser substancialmente diferente do Doria homem de negócios bem […]

 (Germano Lüders/Exame)
(Germano Lüders/Exame)
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Ricardo Sennes

Publicado em 23 de fevereiro de 2017 às, 12h23.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h36.

É fácil criar uma caricatura “coxinha” de João Doria Jr a partir do seu jeito de vestir, suas participações na TV e seu engajamento na campanha “Basta”. Mas quando um personagem como ele entra na política, novas variáveis merecem atenção. O Doria homem público terá que ser substancialmente diferente do Doria homem de negócios bem relacionado com a elite empresarial. Ainda que tenha feito movimentos bem avaliados nessa direção, a transformação ainda está longe de se consolidar.

Doria tem política e comunicação no DNA. Seu pai era publicitário, mas também se envolveu com campanhas e estratégias eleitorais nos anos 60 e chegou a ser eleito deputado federal pelo Partido da Democracia Cristã da Bahia. Entretanto, logo no primeiro mandato, o golpe militar de 1964 forçou seu exílio, que acabou durando dez anos.

Doria estudou e trabalhou com comunicação e marketing, com especial interesse em televisão. Teve passagens pelas TVs Manchete, Bandeirantes e RedeTV. Apesar do público bastante segmentado de seus programas, Doria adquiriu uma enorme capacidade de comunicação televisiva e de massa.

A sua entrada na política se deu pelas conexões com o governador Montoro – também um político com passagem pelo mesmo PDC de seu pai. Atuou primeiramente no âmbito municipal e depois no federal, ambas as vezes em turismo, Paulistur e Embratur respectivamente. Ainda nos anos 80 participou da organização do movimento Diretas Já. Apesar de não ter deixado um grande legado nessas experiências, demonstrou que não é um novato na política.

Doria, portanto, não é um acidente de percurso da política paulista ou raio em céu de brigadeiro, mas uma pessoa com conhecimento, contatos e experiência, além de um comunicador experiente, particularmente na TV. Está filiado ao PSDB desde 2000, ou seja, seus planos para voos na política não são de hoje.

Sendo a escolha da maior liderança política atual do estado de São Paulo também não podemos dizer que ele foi um candidato avulso ou um outsider. Alckmin bancou Dória nas primárias do PSDB, repassou-lhe o amplíssimo leque de aliados que dispõe no âmbito estadual. São 13 partidos que garantiram ao novo prefeito uma inusitada vitória no primeiro turno e mais de 45% de apoio na Câmara Municipal.

Ao contrário de seu antecessor, Doria tem mantido contatos frequentes com vereadores de seu partido e de sua base, além de estar cultivando um bom relacionamento com o Tribunal de Contas do Município. Tem mostrado uma atuação política similar a de sua campanha, na qual se orgulhou de ter percorrido a cidade e realizado reuniões em números muitas vezes superiores aos de seus adversários. Esse perfil de comportamento contrasta com o que se esperaria de um “coxinha”.

Os fatores que mostram que Doria não está brincando de política, entretanto, não são suficientes para garantir o sucesso de sua gestão. Os desafios da cidade de São Paulo são colossais e multidimensionais. Gerir a mancha central de uma conurbação de quase 20 milhões de habitantes não é tarefa de síndico; exigem uma visão estratégica e sofisticada. E, até o momento, Doria não mostrou essas credenciais.

Em quase dois meses de mandato, o atual prefeito mostrou que sabe se manter na mídia e provocar debates que mobilizam a opinião pública. Como está surfando numa onda mais conservadora e mais à direita do espectro político, suas polêmicas têm produzido resultados razoavelmente positivos. Mas ainda deve à cidade uma visão estratégica de desenvolvimento urbano, econômico e social.

A gestão anterior deixou legados importantes incluindo uma nova concepção urbanística para o futuro da cidade, algumas experiências inovadoras no campo da mobilidade, embora não tenha conseguido implementar a rede de corredores exclusivos de ônibus planejada. Em termos fiscais, Haddad também teve seus méritos: criou a Controladoria Geral do Município e deixou a prefeitura com um caixa razoável e linhas de financiamento contratadas de quase 15 bilhões de reais para investimentos em serviços e obras. Em contrapartida, foi bem menos ousado nos campos da educação e da saúde, nas quais não deixou marcas significativas. Dória parte, portanto, de um patamar positivo para estruturar sua estratégia política e de gestão.

Sua aposta em uma forte onda de privatizações e concessões ainda parece mais uma questão de princípio do que de estratégia de gestão. Falta definir o que é prioritário e o que pode ser deixado para um segundo momento. O timing político também importa. Enquanto processos de privatização podem se arrastar ao longo do mandato, outras soluções, muito mais simples, poderiam produzir resultados visíveis em menor tempo. É necessário deixar claro quais objetivos se busca alcançar com as privatizações e concessões, que podem ser de melhoria dos serviços, arrecadação de caixa, ampliação de acesso aos usuários, redução do custo de manutenção, incentivo à inovação, etc. Para quem não tem claro para onde ir, todo vento atrapalha.

O prefeito tem ainda muitos desafios pela frente antes de se credenciar para voos mais altos. Gerir de forma estratégica uma cidade da importância política, social e econômica de São Paulo pode impulsionar em quatro ou seis anos a carreira de um político. Mas se não vencer as dificuldades reais e concretas, também pode enterrá-lo.

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