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Da Ucrânia a Taiwan: 2022 será o ano da tensão geopolítica

A volta de uma inflação adormecida há 30 anos se soma a riscos de confrontos na China e na Rússia num ano com cardápio cheio

2022 | Nora Carol Photography/Getty Images (Nora Carol Photography/Getty Images)
2022 | Nora Carol Photography/Getty Images (Nora Carol Photography/Getty Images)
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Diogo Castro e Silva

Publicado em 30 de dezembro de 2021 às, 11h15.

Diogo Castro e Silva*

 *Investidor e ex-diretor do Grupo Fosun para a América Latina

Poucas vezes na história recente um ano começa com um cardápio mais cheio que 2022. Risco geopolítico crescente de conflito entre grandes potências como desde a Guerra Fria não assistíamos, regresso de uma inflação que esteve adormecida 30 anos, eleições importantes como na França e sociedades fortemente polarizadas. Para finalizar, temos o mundo ainda lentamente atravessando a pior pandemia em um século. Winston Churchill costumava dizer, se referindo a certas regiões do mundo como o Médio Oriente, que elas produziam mais história que conseguiam consumir. Neste século, crescentemente, o fenômeno é global e nesse sentido 2022 está longe de ser um ponto fora da curva. A questão fica é se ele marca um crescimento ou apenas continuação deste ciclo.

O primeiro prato no cardápio de 2022 é, sem dúvida, o risco geopolítico elevado que advém de dois fatores principais. A existência de pontos nevrálgicos de tensão que podem desencadear um conflito, Ucrânia e Taiwan, e a situação de fragilidade e tensão política dos três principais atores, EUA, China e Rússia, que favorece de decisões pouco refletidas e erros de cálculo ainda para mais, no caso de Rússia e China, alimentadas por narrativas de nacionalismo humilhado.

Fragilidade política na China? Esta afirmação parece de fato contrariar toda a projeção de solidez e força do seu líder. Mas de fato a China enfrenta desafios complexos e paradoxalmente no meio da projeção de uma carapaça de solidez existem debilidades crescentes. Para começar, 2022 representa o funeral da herança de Deng Xiaoping, o pai da China moderna. Iniciado no final dos anos 70 do século passado, o projeto de Deng se assentava em três pilares principais.

O primeiro, consistia no princípio da liderança coletiva e no estabelecimento de uma regra clara de sucessão política de forma a evitar o aparecimento de um novo Mao no país. Deng olhava com interesse para o autoritarismo iluminado e meritocrático de Singapura e do seu líder Lee Kuan Yew que transformou em 30 anos este pequeno país em uma potência mundial. Não se tratava de transformar de todo a China em democracia e os eventos de Tianamen em 1989 iriam demonstrar de forma clara os limites do liberalismo político de Deng, mas de modernizar o estado Chinês e renovar legitimação da supremacia do Partido no topo da sociedade do país. Evitar o destino do seu congênere na União Soviética.

O segundo pilar seria uma política externa discreta e de paciência face não só as ambições territoriais da China na região, nomeadamente a reunificação do país com os territórios perdidos no século da humilhação, como o regresso à sua primazia na cena mundial, lugar histórico do império do meio para a grande maioria dos chineses. Por último, capitalizando na política externa e suportando a legitimação do Partido, modernizar a economia adotando o modelo que tanto sucesso tinha tido em todo o Sudeste Asiático. Transformar a China na fábrica do mundo.

O ano de 2022 simboliza, então, o final da era Deng, que esteve na base do maior milagre econômico da história. E que maior símbolo destes ritos fúnebres que o Congresso do Partido Comunista Chinês do final do ano de 2022 que vai entronizar o atual Presidente Xi Jinping não só como líder absoluto como “eterno”? Por outro lado, o modelo econômico é agora de fato o modelo Chinês e não mais o modelo do Sudeste Asiático impulsionado por Deng. Dirigismo estatal e enfoque da economia no mercado interno são as imagens de marca desta nova era.

Não que a economia chinesa não tivesse problemas a resolver sobretudo a questão da desigualdade social que cresceu brutalmente no país nas últimas décadas. Mas a China acabou substituindo a construção de um Estado social moderno por medidas administrativas de grande dimensão e de caráter aleatório que estão na verdade correndo o risco de impactar de forma definitiva os motores do crescimento econômico do país. Se acrescentarmos a isto os problemas de alguns setores fundamentais como o Real Estate, o fim do bônus demográfico e uma política de controle da pandemia sem uma clara saída de regresso à normalidade, a performance econômica chinesa, central até hoje para legitimidade do regime, nunca esteve tão ameaçada como agora.

Por último, a política externa. As semelhanças aqui com a Alemanha pré primeira guerra mundial são muitas. Tal qual o mais longevo Chanceler da Alemanha, Bismarck (que como nota não foi ultrapassado no recorde por Merkel recentemente por meros 13 dias), que unificou a Alemanha e a projetou como potência no centro da Europa sempre tendo a preocupação de não unificar os seus rivais contra ela, Deng começou o processo de reunificação da China absorvendo quer Hong Kong quer Macau de forma pacífica e com o consenso da região e do mundo. A partir de 2008 e da crise econômica, a elite chinesa se convenceu da fraqueza do Ocidente e do seu modelo econômico e se decidiu para uma política externa crescentemente assertiva na região, desafiando também diretamente EUA pela primazia global. Vinte anos depois do Kaiser alemão dispensar os conselhos do seu prudente Chanceler, a Alemanha se viu desencadeando a Primeira Guerra Mundial rodeada de inimigos a oeste e a leste, o maior pesadelo de Bismarck. Repetirá Xi o destino do Kaiser Guilherme?

Para completar o retrato de agudização das tensões geopolíticas temos ainda de falar em dois outros atores. Olhar com cuidado a bandeira da Rússia permite entender um pouco os dilemas deste país. São duas águias, uma olhando para o Ocidente e outra para Oriente. E este é de fato o paradoxo do país. A Oriente está a China, eterno rival geopolítico da Rússia, e hoje aliado cada vez mais estreito, e a Ocidente a sua permanente tentação imperial. Ao mesmo tempo, o regime de Putin enfrenta fadiga política sem uma renovação clara, bem como desafios econômicos e demográficos importantes, e a mesma tentação da sereia nacionalista que tenta o regime chinês é vista por muitos no regime como porta de saída para os seus problemas. Para além disso, o sucesso de um regime ucraniano democrático ancorado no Ocidente é visto como uma ameaça ao próprio regime de Putin. Se na Ucrânia funciona porque não na Rússia é a pergunta que incomoda o regime. A pressão militar exercida sobre a Ucrânia tem esta pergunta em mente e como objetivos, mais do que uma invasão clássica, desancorar o país do Ocidente e inviabilizar o seu sucesso como país democrático e unificado. Este é o segundo ponto nevrálgico das tensões geopolíticas das grandes potências mundiais.

E enfim temos o último vértice deste triângulo. Os EUA. Mais do que a questão Trump em si, os EUA vivem uma crise constitucional e política de difícil solução talvez apenas comparada na sua história à grande crise de 1860 que desencadeou a guerra civil no país. A partir das eleições do final de 2022 para o Congresso, esta crise pode conhecer novos agravamentos. A existência de apenas dois partidos políticos torna extremamente difícil qualquer remédio constitucional para a atual crise que divide a sociedade norte-americana. Formular uma política externa crível perante estas tensões internas é naturalmente desafiador e aos olhos da China e Rússia esta fragilidade torna extremamente atrativa a oportunidade de avançar com as suas agendas em Taiwan e Ucrânia respetivamente. E é aqui que o grande risco geopolítico se centra. Nos erros de cálculo dos diferentes atores. Durante a Guerra Fria, os momentos de maior tensão sempre ocorreram em momentos de fragilidade percebida de um dos dois blocos. Sem falar também quando a determinação dos EUA em defender a Península da Coreia foi subestimada, o que acabou por gerar uma guerra devastadora na região. E para os EUA às vezes nada melhor que uma grande crise externa para resolver problemas políticos internos.

Falar de 2022 sem discutir a pandemia é obviamente impossível. A última pandemia que vivemos, a da Gripe Espanhola, desapareceu ao fim de 3 anos não porque se tenha na altura descoberto qualquer cura mas porque ao fim desse período, e mais de 50 milhões de mortes depois, o vírus acabou por perder gravidade se acomodando à população humana. A Ômicron parece indicar que o mesmo destino parece ser o da covid-19 e curiosamente sensivelmente no mesmo período de tempo. Felizmente para nós, os avanços da medicina e sobretudo a descoberta em tempo recorde de vacinas eficazes tornaram esta pandemia menos mortal. Mas as consequências, sobretudo ao nível econômico vão ser duradouras.

À semelhança de outras pandemias da história, a covid-19 vai continuar a provocar um aumento dos custos laborais em várias economias talvez não, no caso desta pandemia, pela sua mortalidade mas pela alteração de muitas relações até agora estáveis no mercado de trabalho. Neste fator temos em parte a explicação do aumento da inflação que se assiste depois de um “sono” de mais de 30 anos. Mas esta é apenas parte da equação. O período de baixa inflação que vivemos até agora teve uma razão principal que foi o milagre econômico chinês assentado no imenso contingente de mão de obra que aguardava emprego neste país nos anos 80 do século passado.

Este fator desapareceu como vai desaparecer também ao longo de 2022 o suporte quase ilimitado que Bancos Centrais deram durante mais de 10 anos em muitas das principais economias mundiais. Os mercados globais vão ter que de novo começar a precificar riscos como o geopolítico e qualidade da política econômica sem a rede dos Bancos Centrais e é esperado por isso um aumento acentuado da volatilidade. Se acrescentarmos a isso os riscos de uma bolha como a pontocom do início deste século, 2022 promete trazer, pois, muita instabilidade nos mercados globais e muita exigência sobretudo para as economias emergentes.

Para o Brasil, 2022 vai ser um ano eleitoral e quem for o novo Presidente vai tomar posse num cenário global de grande complexidade, o que, adicionado à lista de trabalhos interna, vai demandar decisões políticas acertadas na política externa, na sociedade e na economia. Para além disso, em 2022 temos na linha de frente outros temas como o agudizar das mudanças climáticas, um tema onde o Brasil, aos olhos do mundo, é ator principal. 2022, sem dúvida, promete um prato cheio.