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O minoritário está distante de um bucaneiro que saqueava navios no Caribe

CVM está atenta a abusos que impõem perdas a companhias abertas ou a seu acionista controlador

CVM: muitas vezes o minoritário é mais sofisticado que o acionista controlador (Cris Faga/Getty Images)
CVM: muitas vezes o minoritário é mais sofisticado que o acionista controlador (Cris Faga/Getty Images)

O acionista minoritário de companhia aberta, nos anos 1990, era um espécime em extinção: apenas visava obter ganhos com a valorização de seu investimento em ações no mercado de capitais e a distribuição de lucros, não se interessando em contribuir para o desenvolvimento da companhia, comparecendo às assembleias gerais – o acionista controlador, ou grupo controlador, com o poder (e a responsabilidade) da nossa Lei das Sociedades Anônimas de 1976 (LSA), ditava livremente a política empresarial da companhia e a atuação de seus administradores.

É um quadro econômico diferente dos Estados Unidos já a partir do fim dos anos 1960. É lá que surge Nelson Peltz –que ganhou ainda mais os holofotes ao tentar reestruturar a emblemática companhia Walt Disney (presidida por Robert Iger) –, criado no Brooklin, dono de uma das casas mais paradisíacas da América e o oposto de invasores truculentos como Carl Icahn e Ron Perelman. Diversamente desses, que forçavam os controladores ou acionistas relevantes (considerados seus adversários) a alavancar em excesso os balanços das companhias com vistas a pagarem enormes preços em recompra de ações ou a distribuírem elevados lucros (por vezes fictícios), o objetivo de Peltz não era o ganho fácil, mas o de buscar valor para as companhias e não operar como um bucaneiro, um pirata que saqueava navios no Caribe no século XVI. Aqui cabe uma frase lapidar do escritor Roberto Bolaño em seu último livro (O Gaúcho Insofrível, Companhia das Letras, 2024): “Sempre é conveniente declarar quando se entra nessa espécie de Club Mediterranée habilmente camuflado de pântanos, de deserto, de subúrbio operário, de romance-espelho que se olha a si mesmo”.

O mundo de Peltz está repleto de criaturas do pântano em que o interesse público – no caso o de companhias abertas – é subjugado em detrimento do lucro fácil, de curto prazo, em que minoritários refinados e donos de uma enorme capacidade de articulação empresarial destroem catedrais, geradoras de emprego e de renda. “Hoje o minoritário não é mais um descapitalizado, um desvalido, que em alguns casos provoca distúrbio na companhia”, diz Luiz Antônio de Sampaio Campos, sócio de BMA Advogados e ex-diretor da CVM. O artigo 115 da LSA diz que o acionista sempre deve exercer o direito de voto no interesse da companhia, e será considerado abusivo o voto com a finalidade de provocar prejuízo à empresa ou a outros acionistas, ou de obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a companhia ou para outros acionistas.

“O abuso não é um privilégio do controlador”, afirma Campos. “Muitas vezes o minoritário é mais equipado e sofisticado do que os controladores”, afirma Julian Chediak, sócio de Chediak Advogados e professor de Direito na PUC-Rio.

O advogado Carlos Eduardo Bulhões Pedreira enfatiza que a norma do artigo 115 é destinada a todos os acionistas: “exercer abusivamente o direito de voto ou agir em conflito de interesse com o da companhia é ´pecado societário´, inclusive quando ocorre fora do grupo social, mediante pressão ou constrangimento moral direto à pessoa do controlador ou acionista relevante para obter vantagem indevida, pois na maioria das vezes causa prejuízo à companhia”.

Nelson Peltz, a julgar pelas inúmeras investidas no mercado americano, em que grandes companhias dos mais diferentes setores da economia foram beneficiadas por seu ativismo, é um grande vencedor. Tem o DNA do capitalismo moderno. Alguns exemplos da sua atuação frenética: presidente não executivo da The Wendy'sCompany, Sysco e The Madison Square Garden Company, tendo, ainda, ocupado cargos de diretor em empresas notáveis como H.J. Heinz Company e Mondelēz. Peltz completou apenas o ensino médio – é sarcástico com a Universidade de Havard –, tem dez filhos e está longe de ser uma unanimidade, agindo como um tubarão branco em mares revoltos ou calmos, de preferência à luz do dia.

Em nada lembra aquela espécie citada por Bolaño. Guarda léguas – e põe léguas nisso – de alguns investidores minoritários brasileiros que, se aproveitando de um momento difícil de uma companhia aberta, mediante sucessivas compras de lotes de ações, impõem graves prejuízos aos demais acionistas.
Coube à CVM concretizar o espírito e a finalidade da norma do artigo 115 da LSA, de José Luiz Bulhões Pedreira e Alfredo Lamy Filho, de 1976. É nesse mesmo ano que uma outra lei criou a CVM. Antes desses dois instrumentos modernizadores do mercado de capitais, a Praça XV, no Rio de Janeiro, sede da então poderosa Bolsa de Valores, era um covil de ladrões, nas palavras do futuro ministro da Fazenda do governo Geisel, Mario Henrique Simonsen, no início de 1976, às vésperas de completar 39 anos.

Nelson Eizirik, sócio de Eizirik Advogados e professor da FGV Direito (Rio), explica que a autarquia proferiu uma decisão administrativa (dificilmente será alvo no Poder Judiciário a quem cabe dar a palavra final para um contencioso de qualquer espécie) ao tratar do conflito de interesse formal e material, dando relevância a este último: “O voto do controlador não pode ser proibido, a não ser que ele tenha causado um dano à companhia. Nesse caso, considera-se que o acionista votou em situação de conflito de interesses”. Com essa interpretação, a autarquia, observa Julian Chediak, dá mais poder aos grandes acionistas, adotando, dessa forma, uma postura liberal e, assim, evitando os supostos abusos de acionistas minoritários ativistas, que têm o objetivo de causar prejuízos à companhia. O voto completo da CVM está aqui.

É bom lembrar que Peltz, mesmo com toda a sua experiência e o seu ativismo, saiu vitorioso e derrotado na Disney. Explica-se: o CEO Iger, como se sabe, conseguiu afastá-lo depois que a empresa revelou um vasto plano de reestruturação que incluía cortes de custos e 7 mil demissões. A Disney disse que cortaria US$ 5,5 bilhões em custos, sendo US$ 3 bilhões em conteúdo, excluindo esportes, e outros US$ 2,5 bilhões em custos não relacionados a conteúdo. A reestruturação foi feita após uma enorme pressão de Peltz. “Nos últimos seis meses, as ações da Disney subiram aproximadamente 50% e apresentam o melhor desempenho na NYSE, a Bolsa de Nova York”, de acordo com a Trian, a empresa de investimentos em que é coproprietário. No início de abril deste ano, os papéis da Walt Disney caíram 3,4% após a “derrota” de Nelson Peltz. O jogo continua a ser jogado. Peltz não aceita a derrota temporária.

Da mesma maneira, o jogo continua na CVM, que impôs multas de R$ 832 milhões em 2023, mantendo-se atenta também aos abusos de acionistas minoritários ao grupo social. “Eu me refiro aos acionistas minoritários que desempenham o papel de somar, de complementar a visão de executivos e do acionista controlador. Eles evitam o pensamento de grupo – como disse um grande empresário– que suprime a oxigenação, deixando de arejar o conselho de administração e a companha. É importante o debate com agentes econômicos que tragam valor à companhia,ainda que tenham uma visão diferente da do controlador. É o oposto do minoritário que apenas extrai um valor para a companhia, não necessariamente trazendo ganho à empresa”, completa Campos.

É evidente que sempre haverá algum tipo de conflito entre o minoritário ativista, que precisa dar retorno para os seus cotistas do fundo de investimento no curto prazo, e o controlador, que toma muito risco e tem uma visão de longo prazo. O poder regulador evita excesso de ambos os lados e pune, na medida do possível, quem comete os malfeitos. O fato é que o minoritário está despido daquela visão romântica. Não há mais ilusão, até mesmo porque o mercado de capitais não é um lugar para freiras. “E também não cabem prostitutas”, ensinou Simonsen em uma entrevista histórica, um ano antes de morrer, em fevereiro de 1997.

Observação: Esta coluna usou informações da Inteligência Artificial.

*Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME