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A “fada da confiança” é real e nosso futuro depende dela

A melhor terapia para elevar a demanda é o governo gastar para compensar a retração do setor privado.

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Celso Toledo

Publicado em 6 de agosto de 2019 às, 13h15.

“Fada da confiança” é uma personagem criada pelo economista ganhador do Nobel Paul Krugman para criticar a noção de que ajustes fiscais podem ser expansionistas quando o efeito positivo sobre a confiança privada mais do que compensa a queda da demanda pública. No pós-crise, quando os governos europeus apertaram os cintos, ele cravou a mosca ao prever o crescimento pífio que de fato ocorreu. Por essa e por outras é bom ler com atenção seus artigos, mas sempre com a pulga atrás da orelha, pois são escritos com boa dose de pimenta ideológica.

Confiança é mesmo um tema escorregadio. Há, por exemplo, situações excepcionais em que a política monetária perde completamente a eficácia. Além disso, durante as ressacas que se seguem às farras de crédito, os agentes econômicos às vezes ficam obcecados em reduzir dívidas qualquer que seja o nível da taxa de juro. Apertar o cinto e contar com a fada nesses casos equivale a jogar gasolina na fogueira. A melhor terapia para elevar a demanda, talvez a única, é o governo gastar para compensar a retração do setor privado.

Mas isso não quer dizer que a confiança seja uma variável externa ao contexto em que a política fiscal é formulada. O próprio Krugman admite que o humor da fada é o xis da questão em casos problemáticos como o da Grécia e, em certa medida, da Itália. O fato é que as expectativas não reagem bem quando governos com histórico duvidoso começam a torrar dinheiro. Após a crise de 2008, o Brasil chegou a ter cacife para bancar uma política anticíclica, mas a margem existente foi esgotada pela lambança que nos levou a uma das maiores recessões da história.

Hoje ocorre o inverso. Há razão para acreditar que o controle do crescimento dos gastos governamentais e o avanço da agenda de reformas estruturais poderão ativar o pó de pirlimpimpim capaz de fazer o setor privado arregaçar as mangas e trabalhar. É compreensível que os leigos em teoria econômica torçam o nariz para esse diagnóstico meio esotérico. Mas, queiramos ou não, a evidência mostra que o crescimento econômico é mesmo um fenômeno misterioso. Comentei na última coluna quão difícil é associá-lo a causas com apelo intuitivo.

Descrença entre leigos é uma coisa, mas ver colegas horrorizados com a tese de que a economia anda de lado porque a fada está dormindo é algo difícil de entender. Digo isso porque a profissão está acostumada a recorrer a malandragens para explicar o mundo. Para começar, os ciclos e as crises econômicas não deveriam existir se a representação da realidade aceita atualmente valesse em sua forma mais pura. Refiro-me ao trambolho conhecido por “modelo de equilíbrio geral dinâmico estocástico – DSGE na sigla em inglês” – versão “neokeynesiana”. Para quem não sabe, essa preciosidade é a menina dos olhos dos bancos centrais mundo afora.

Como é possível que autoridades que têm como missão entender, prever e adotar medidas para atenuar as flutuações usem em suas análises e simulações um modelo incapaz de provocar esses fenômenos? Diante da impossibilidade de parir vaivéns persistentes em um mundo livre de imperfeições, o segredo é introduzir nas equações alguns embaraços do dia-a-dia, como a presença de contratos restringindo a liberdade de escolha das empresas ou hábitos enraizados das famílias. Só que esses esforços apenas remendam, mas não resolvem o problema. A solução final é aplicar uma marretada épica que praticamente coloca por fora o fenômeno que precisa ser desvendado. Quem usa o modelo disfarça bem, explicando que apenas introduziu um pouquinho de “estrutura” em “choques” de cunho aleatório e a vida segue como se o jacaré não existisse.

A incompatibilidade do DSGE com o mundo real pode ser contornada de forma mais elegante e científica sem a evocação de forças do além. A solução é descartar a hipótese pouco palatável de que o ser humano é racional ao extremo, seguindo a ampla evidência que vem sendo descortinada pelos psicólogos. O economista belga Paul De Grauwe, professor da London School of Economics, seguiu esse caminho e povoou um modelo idêntico ao DSGE trivial ligeiro com cidadãos mais parecidos conosco. Gente que não compreende o mundo em toda a sua complexidade e, por isso, planeja o futuro de forma meio tosca.

Por mais atraente que possa ser a premissa radical para o outro lado, não é razoável também supor que as pessoas sejam toupeiras. A economia de De Grauwe está, portanto, no meio do caminho. Os agentes têm racionalidade limitada por vieses cognitivos, teimosia, memória curta e demais vícios humanos, mas têm plena consciência das próprias limitações. Projetam o futuro por meio de regras de bolso simplórias, mas quando o critério escorrega demais é substituído por outro. Ou seja, eles aprendem com os erros. Nesse planeta, nem todos usam os mesmos atalhos e a presença de heterogeneidade é algo importante na geração dos ciclos.

Ao abandonar a hipótese de racionalidade extrema na formação das expectativas, o sistema é capaz de reproduzir mais fielmente as características observadas do PIB e da inflação, sem o apelo a velhacarias difíceis de engolir. Os vaivéns econômicos saem da lógica interna do modelo e derivam da convivência caótica de indivíduos que entendem parcialmente o mundo. Curiosamente, basta essa dosezinha de realismo para trazer à luz o que De Grauwe batizou de “espíritos animais”, seguindo a expressão escolhida originalmente por Keynes para caracterizar adivinha quem? Se pensou na fada da confiança, acertou em cheio.

As simulações revelam períodos de “otimismo” e de “pessimismo” parecidos com as mudanças agressivas de humor que observamos de tempos em tempos – como essa inhaca dos dias de hoje. A interação entre agentes que pensam de forma distinta, que se ajustam lentamente quando percebem que estão errando demais e que tendem a esquecer lições aprendidas há muito tempo dá ensejo a profecias autorrealizáveis que, por sua vez, explicam os períodos de recessão e de crescimento. A fada da confiança não surge do nada. Ela existe porque somos míopes.

Voltando ao Brasil, é relativamente simples entender as causas do crescimento baixo, mas não é tão fácil compreender a recuperação lenta. A contenção dos gastos públicos, a retração do comércio global, as maluquices do Trump e a crise na argentina são fatores que, evidentemente, diminuem nossa capacidade de expansão. No entanto, a inflação controlada, os juros baixos e em queda e os sinais de vida no mercado de crédito deveriam ter produzido uma reação mais forte. Falta só a fada despertar os “espíritos animais”. A razão disso não ter acontecido é enigmática. É lícito conjeturar que o governo ajudaria se não tivesse tanto apego ao obscurantismo e se realmente estivesse disposto a romper com o patrimonialismo que condenou o país. Mas contra essas forças da natureza, as parcas, moiras, gnomos, fadas e deuses em geral lutam em vão.