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Crédito Privado

ENTREVISTA: Com excessos no crédito, "pessoa física virou o novo BNDES", diz Bruno Garcia, da Truxt

Sócio de uma das maiores gestoras de ações do Brasil vê riscos para economia brasileira com isenção para títulos de dívida – com efeitos que vão muito além da distorção na Bolsa

Garcia: "O novo BNDES é a pessoa física, dando crédito barato demais e subsidiado pela isenção do governo para grandes empresas" (Arte/Exame)
Garcia: "O novo BNDES é a pessoa física, dando crédito barato demais e subsidiado pela isenção do governo para grandes empresas" (Arte/Exame)
Natalia Viri

Natalia Viri

Editora do EXAME IN

Publicado em 12 de novembro de 2024 às 08:27.

Última atualização em 12 de novembro de 2024 às 09:54.

“Como pode o credor de uma empresa estar no céu e o acionista no inferno?”. A pergunta de Bruno Garcia, CIO da Truxt, resume bem a atual situação do mercado de capitais no Brasil.

Com trilhões entrando na renda fixa enquanto o mercado acionário vê uma sangria, as mesmas empresas que captam a taxas muito baratas no mercado de renda fixa são aquelas que negociam com os maiores descontos em Bolsa.

É certamente um desafio para as gestoras de ações, como a própria Truxt que tem cerca de R$ 5 bilhões em fundos de renda variável.

Com o cenário mais desafiador, a gestora está lançando um novo fundo, focado nas “bond proxies”: ações com retornos previsíveis e bom potencial de crescimento para para arbitrar uma das principais oportunidades da Bolsa atender a necessidade de clientes que buscam um perfil de renda variável mais defensivo e correlacionado aos juros reais (saiba mais aqui).

Mas as distorções vão muito além da Bolsa. Em entrevista ao INSIGHT, Garcia defende que a isenção para títulos de dívida como CRA, CRIS, FIIS e debêntures de infraestrutura está tendo efeitos perversos em toda a economia.

“Hoje, quem está financiando as empresas no longo prazo e a taxas baratas é a Dona Maria, que busca renda garantida numa debênture de 20 anos. Será que ela sabe o que está comprando?”, questiona.

Na sua visão, o direcionamento de recursos da poupança para o mercado de crédito, especialmente isento, está provocando distorções na política monetária, na arrecadação e na composição do financiamento da dívida pública e privadas – com a pessoa física fazendo o papel que na época do governo Dilma, foi do BNDES.

“O novo BNDES é a pessoa física, a Dona Maria dando crédito barato demais e subsidiado pela isenção do governo para grandes empresas”, diz. “Quando metade do estoque de crédito está sendo dada a prazos longos e com um spread baixo, quanto é que você tem que subir a Selic para desaquecer a economia? No limite, você está diminuindo a potência e aumentando o lag da política monetária.”

Com os juros hoje precificando um cenário “entre o céu e o inferno”, Garcia defende que, em algum momento o spread dos créditos vai abrir – seja por um movimento de busca por mais risco, num cenário mais benéfico, ou de redução de risco, num cenário mais pessimista –, com o potencial de traumatizar uma série de poupadores, como aconteceu com o estouro da bolha do mercado acionário no pós-pandemia, em 2021.

A seguir, os principais trechos da conversa, condensados para melhor entendimento:

INSIGHT: Muitos dizem que o mercado de crédito está mal precificado. Mas fato é que as emissões continuam saindo, mesmo com as taxas bastante comprimidas, especialmente no mercado de high grade. O que está acontecendo?

Garcia: Estou começando a ver uma possível bolha se formando, tanto no nível dos spreads quando no montante emitido. Na questão dos spreads, a principal distorção é a evolução do spread ao longo dos ratings de crédito. As empresas historicamente mais arriscadas estão com um prêmio de risco muito baixo em relação as mais seguras.

E por quê? Antigamente, era o pessoal dos grandes bancos com décadas de experiência que se sentava num comitê de crédito e falava: vou dar dinheiro para essa empresa e definia a taxa, a garantia, porque ia encarteirar isso no book por cinco, de dez anos.

Agora, é o agente autônomo que vende para Dona Maria, que está em busca de busca renda garantida, uma debênture de 20 anos. Será que ela realmente sabe o que está comprando? Se esse título der default, quem vai negociar por ela? As experiências recentes de renegociações de títulos pulverizados numa base de varejo foram bem negativas.

O agente autônomo e os bancos ganham suas comissões de venda e estruturação na cabeça, independente do que venha a acontecer com o título no futuro. E essas comissões são maiores do que as ganhas para vender fundos de investimento.

Outro sinal de uma possível bolha está no montante emitido. O estoque de isentos cresceu R$ 1 trilhão em menos de cinco anos. É muita coisa! Hoje, o estoque de crédito financiado via mercado de capitais (isento e não isento) é mais de metade da poupança do brasileiro ou quase R$ 6 trilhões.

Além dos riscos para o investidor, isso é uma coisa que está afetando a política monetária. As empresas estão captando a 10 anos, com taxas baixas. Quanto é que o Banco Central tem que subir a Selic para desaquecer a economia para compensar esse fator?

No limite, você está diminuindo a potência e aumentando o lag da política monetária.

O novo BNDES é a pessoa física, a Dona Maria dando crédito barato demais e subsidiado pela isenção do governo para grandes empresas.

Mas o acesso a crédito no Brasil sempre foi uma questão. Não dá para dizer que a entrada do mercado de capitais nessa concessão está cumprindo esse gap?

Recentemente, o [secretário de reformas econômicas do Ministério da Fazenda] Marcos Pinto trouxe um dado numa entrevista de que metade do crédito brasileiro está sendo dado pelo mercado de capitais, com um spread médio de 1,75%. A outra metade, que está na mão dos grandes bancos, está com spread médio de 8%.

A grande diferença é o mix, porque as PMEs não conseguem emitir debêntures, elas continuam nos bancos, que ficam com a parte mais arriscada e a taxas maiores.

Aumentar o crédito é bom. O grande problema é a distorção que você tem pela isenção. Se tudo isso tivesse acontecido sem a distorção, com os investidores sabendo o que estão comprando, legal.

Mas na prática são os bancos, as empresas do agro, construtoras, players de infraestrutura tomando dinheiro mais barato através de LCAs, LCIS, CRAs , CRIs, FIIs, etc. E hoje, boa parte dessas empresas não precisam mais desse benefício. Você está jogando gasolina numa fogueira que já pegou fogo e está criando uma série de situações na economia que podem acabar mal.

Quando houver qualquer problema de crédito no Brasil que faça esses spreads abrirem, os investidores podem ficar tão machucados que podemos estar acabando com uma geração de financiadores. Fechando, mesmo que momentaneamente, um importante canal de financiamento de projetos longo prazo.

Me parece uma reprise do que aconteceu no mercado de ações no pós pandemia, em 2021...

De fato, quem acabou se empolgando com os juros baixos no pós pandemia em 2021 e aumentou de forma importante a alocação em risco perdeu muito. Temos uma geração de tomadores de risco muito machucada. O mercado captou somente em fundo de ações R$ 160 bilhões entre 2017 e 2020 e perdeu de lá para cá R$ 140 bilhões, ou seja, quase tudo que captou.

O investidor não quer mais ouvir que a Bolsa está barata, que ele não quer tomar nenhum risco. Ele fala: 1% ao mês isento está de bom tamanho para mim, não quero mais do que isso, sem realmente entender que existe risco nesses investimentos.

Todo tipo de investidor? Mesmo o mais bem assessorado?

Todo mundo. Com o fim dos exclusivos, o investidor de alto patrimônio também foi em busca da isenção. Um pedaço pequeno dos recursos liberados dos exclusivos foi para fundos de previdência (num movimento que levou o governo a impedir a criação de novos fundos acima de R$ 5 milhões de reais) e um pedaço grande acabou indo para carteiras de isentos.

Diante a performance medíocre dos fundos de ações e multimercados no pós pandemia, o alocador precisa também apresentar alternativas para o cliente final, até como uma forma de mantê-lo na sua grade, o que pode ter acabado ajudando na migração para crédito.

Aqui vale uma observação. Quanto pior ficar o Brasil melhor é o benefício da isenção. Vamos imaginar um mundo hipotético aqui, só para estressar o argumento, em que a inflação vá para 30% ao ano. O papel paga inflação mais 6%, vai render 36%. Quanto é que vale 15% dos 36%? 4,8%. Se eu tirar o 4,8% que é o benefício, os juros reais recebidos ficam em somente 1,2%.

Como tributamos inflação, quanto maior a inflação, maior é o benefício das isentas. E numa situação de crise de credibilidade, de percepção de descontrole fiscal, de mudanças no Banco Central, as pessoas ficam com medo da inflação os isentos ficam mais atrativos.

E com isso as distorções só aumentam. O desconto na Bolsa talvez nem seja a mais complicada delas.

Quais as outras?

Um outro efeito importante e no financiamento da dívida pública. O boom de isentos somado a relutância do Tesouro em endossar o aumento de juros no Brasil está mudando a composição da dívida brasileira.

A despeito de todo aumento da dívida ocorrido nos últimos anos, o montante de título pré-fixados e indexados à inflação que foi vendido desde 2022 foi abaixo do que venceu, ou seja, foi uma emissão líquida negativa de R$ 230 bilhões. É um crowding out reverso.

O investidor pessoa física não vai comprar uma NTN-B, uma LTN. Ele vai comprar um isento para não pagar imposto. Isso torna o perfil da dívida do brasil mais arriscado do que no passado recente. Quase metade das dívidas está sendo rolada a taxas pós fixadas em overnight ou em prazos curtos.

Outro efeito importante se dá na arrecadação. Vamos pegar um estoque de R$ 2 trilhões de incentivadas e botar um rendimento de 14%. Dá R$ 280 bilhões, 15% em cima disso seriam R$ 42 bi. Quanto é que o Lula precisa para reajustar as tabelas de imposto de renda? R$ 35 bi.

Se acabar com o isento no Brasil, dá para fazer a principal promessa de campanha. E vale a pena ressaltar que o benefício da isenção está sendo dividido pelas pessoas físicas de alta renda e pelas maiores empresas do Brasil.

E até onde vai o mercado de incentivadas? Já houve nas últimas semanas algumas emissões que não saíram por conta dos prêmios baixos. Quando você acha que vem um ajuste maior nos spreads?

O ajuste pode vir pelo bem ou pelo mal. O que seria a via pelo mal? Suponha que chegamos em 2025 e o governo chute o pau da barraca no fiscal. Começa a gastar, não bota restrição nenhuma, começa a não respeitar as regras do arcabouço e gera a percepção de descontrole das variáveis nominais no Brasil.

O investidor pode decidir dolarizar um pedaço do seu patrimônio e pensa: vou vender 20% das minhas isentas. 20% de um estoque de R$ 2 tri é R$ 400 bilhões. O mercado negocia aproximadamente R$ 400 milhões por dia. Ou seja, o montante a ser vendido é 1000 vezes maior que a liquidez diária.

E quem vai comprar esses títulos nessa situação de stress? Os únicos que podem fazer frente a esse fluxo são os grandes bancos. Só que o spread requerido por eles vai ser muito acima do atual. Ele vai falar assim: “bom, mas essa empresa daqui eu financiaria a 200 bps”, quando a taxa atual é zero. E ajustando pela duration, que está cada vez mais longa, alguns títulos podem ter perdas de principal de até 20% ou 30%.

Outra possibilidade é um aumento de inadimplência. Olha os Fiagros. A vida toda quem emprestou para o agro foi o Banco do Brasil. Aí vem o pessoal da Faria Lima e começa a empacotar o Fiagro. Dizer que a safra deste ano está ruim é um exagero, né? Piorou um pouco, mas saiu do high ever para um pouquinho abaixo do high ever. E olha a quantidade de crédito ruim pipocando no agro.

Será que pode servir de gatilho para as pessoas podem começar a perceber que o risco de crédito está mal precificado?

Por fim também tem um caso bom: chega em 2026, uma chapa mais pró-mercado entra como favorita [na eleição]. As pessoas decidem que é hora de apostar no Brasil, de comprar multimercado, bolsa, coisa e tal. Pega um pouquinho do que está em crédito isento e põe em bolsa, multimercados, vamos dizer 20%. Não tem espaço. É um elefante na sala de cristal. Qualquer movimento e as coisas quebram.

A grande questão é que o Brasil é um tanto afeito à mediocridade: não ter nem um cenário horroroso, catastrófico, mas tampouco as coisas melhorarem demais. Não corremos o risco de ficar nesse meio do caminho?

Não, porque esses juros que estamos pagando hoje, de quase 7% real, é um juro que não equilibra o Brasil. É uma ponderação entre um juro mais alto de um país quebrado e um juro mais baixo de um país saudável. O 7% é a média ponderada do céu com o inferno.

Do ponto de vista dos investidores, para mim, a grande questão é que ele não está sendo compensado pelo risco que está correndo no crédito privado. Se for para tomar risco me parece melhor, comprar ações, multimercado. Se é para buscar proteção pode-se comprar ativos dolarizados e títulos federais curtos indexados à inflação. Títulos privados longos de devedores com risco mediano, e spreads baixos não me parecem nem de longe uma boa opção.

Eu, Bruno, sou a favor da diversificação. E dentre a diversificação priorizo os pesos num Barbell, ponderando ativos seguros, no qual tenha pouquíssima chance de perda de capital com ativos arriscados no qual consiga delimitar o montante que posso perder. Sempre busquei minimizar o risco alocado no “meio’. Isso é mais verdade que nunca agora.

Olhando para os descontos das empresas em Bolsa, claramente há uma arbitragem óbvia, especialmente em bond proxies, como empresas de energia, shoppings. Por que ninguém está arbitrando esse negócio?

De novo, a questão do fluxo. O primeiro fator é que 70% das ações do mundo estão nos Estados Unidos, onde é possível comprar as melhores ações do mundo em setores com vantagens sustentáveis e crescimento de longo prazo como Inteligência artificial, e-commerce, software EV, GLP-1 etc..... Tem muita história de crescimento nos mercados desenvolvidos.

O gringo não precisa vir mais para mercados emergentes para comprar crescimento. Na verdade, os emergentes vêm sendo um value trap. Nos últimos 20 anos, o índice de ações emergentes não sai do lugar.

E para piorar o investidor estrangeiro não gosta de apostas de carrego em ações de mercados emergentes. No caso de uma bond proxy, o câmbio de entrada importa muito, pois o custo do hedge cambial acaba comendo muito desse retorno.

Dessa forma, o encolhimento da indústria acionária local fez muito preço em setores de carrego, como utilities, infraestrutura. Por fim, vale ressaltar que são exatamente essas empresas que estão captando barato. Ou seja, ao comprar essas ações estamos nos beneficiando do custo de dívida barato e da capacidade de alocação de capital delas.

Correndo o risco de ser repetitiva: e quando e por que isso deve mudar? O mercado está em compasso de espera para negociar eleição?

100%! Não tem dinheiro de longo prazo, os investidores perderam a paciência. Estou no mercado desde 1998, e poucas vezes da minha vida, eu vi um grau de pessimismo tão grande como agora.

Hoje o prêmio de risco de equity está muito alto. A bolsa brasileira como um todo negocia hoje a 8x PL [preço/lucro]. É menos do que na época da Dilma, mas naquela época, e economia estava emburacando. Agora está subindo, com os lucros sendo revisados para cima.

A previsão de crescimento de lucro por ação da Bolsa é 15%. Se eu fechar o olho e abrir só no fim de 2025, que é o ano anterior a eleição eu ganhei esse 15% em troca do CDI, digamos de 12%. Hoje, desde que não haja uma compressão adicional de múltiplos, ou uma forte revisão de lucros, estou sendo pago para esperar.

No passado quando você comprava a um P/L baixo, se o avanço no lucro ficava no zero a zero, a ação derretia na mão pois ninguém queria abdicar do CDI. Hoje é melhor.

Em 2026, podemos ter uma mudança para um governo mais pró mercado e ver um re-rating grande ou uma continuidade da situação atual. Quanto temos para cair e quanto temos para subir em cada cenário? Se der tudo errado o PL vai cair quanto? De 8 vezes para 6? Nem a China negocia 6x PL.

Se tudo der certo, o P/L pode ir para 12 ou 14 vezes. A assimetria é muito grande, 20% a 30% para cair e 70% e 80% para subir.

Por fim, dentro da bolsa, a maior distorção que vejo são nas “bond proxies”. Elas têm quase o mesmo upside da bolsa com um risco muito menor. Elas estão em setores defensivos e conseguem ao longo do tempo repassar inflação e gerar caixa de forma sustentável.

O problema é que hoje, no Brasil, você não tem bolso de longo prazo. Ninguém consegue comprar e fechar o olho daqui até 2026. A verdade é que hoje eu, assim como outros gestores de ações, tenho muita ideia de investimento e pouco dinheiro disposto a entrar.

Para quem decide. Por quem decide.

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Natalia Viri

Natalia Viri

Editora do EXAME IN

Jornalista com mais de 15 anos de experiência na cobertura de negócios e finanças. Passou pelas redações de Valor, Veja e Brazil Journal e foi cofundadora do Reset, um portal dedicado a ESG e à nova economia.

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