Zerar a conta de créditos do ICMS não "quebra" o país
Especialistas afirmam que o STF deu recado pela transparência, e que o Brasil precisa atualizar seus tributos
Publicado em 14 de maio de 2021 às 19:19.
Última atualização em 14 de maio de 2021 às 19:57.
Parece impensável, e é, supor que o governo, com seu caixa depenado inclusive por gastos derivados da pandemia no último ano, deverá pagar a empresas — algumas das maiores do país — impostos cobrados indevidamente no passado. É isso o que prescreve a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de que o ICMS não pode integrar a base de cálculo do PIS/Cofins. Essa decisão foi tomada em 2017 e reafirmada nesta quinta-feira. O dinheiro devido pela União, estimado em cerca de R$ 250 bilhões, espanta. Zerar essa conta passa a ser uma imposição jurídica, mas o caixa do governo não vai quebrar.
Especialistas em tributação e política fiscal ouvidos pelo EXAME IN veem um exagero nessa estimativa de créditos tributários, inclusive, porque algumas empresas chegaram a explicitar em seus balanços contábeis que deixaram de recolher outros tributos — sobretudo PIS e Cofins — para recuperar ou compensar o que já foi pago.
“Ao longo do ano passado, cerca de R$ 100 bilhões foram compensados à Receita Federal”, afirma um interlocutor na condição de anonimato que destaca o fato de o órgão não apresentar a memória de cálculo do estrago projetado.
A percepção de que o governo dramatiza o potencial impacto dessa fatura a pagar é compartilhada pelos três especialistas consultados — todos com experiência no setor público e na iniciativa privada. “Não descarto a possibilidade de o governo estar exagerando na perda para tentar forçar votações no Congresso Nacional, seja da reforma tributária, seja para conter despesas. Inclusive, porque no caso dos maiores contribuintes do país, vinham se creditando diretamente, desde 2018”, diz um dos entrevistados.
Essa pendenga jurídico-tributária se arrasta há anos. E a decisão do STF determina que terão direito à compensação ou reembolso de recolhimentos as empresas que entraram na Justiça até 15 de março de 2017. Os créditos devidos serão calculados com base nos cinco anos anteriores ao ajuizamento. As empresas que moveram ações após 15 de março de 2017 não terão direito ao retrocesso de cinco anos.
O economista José Roberto Afonso, um dos mais respeitados especialistas do país em política fiscal, professor do IDP, CAPP-Lisboa e GV Europe, confessa não compreender o motivo de tanta atenção para a decisão do STF de quinta-feira que só definiu como aplicar o que já tinha sido decidido em 2017. “A opção foi bastante equilibrada e sensata, na minha modesta opinião, porque não aceitou a retroatividade, o que aí sim seria desastroso para o Fisco, e não reabriu o caso, o que seria danoso para os contribuintes. Portanto, o risco fiscal na decisão de ontem é nulo. O prejuízo já tinha sido decidido e imposto anos atrás.”
O recado do STF
Afonso avalia que o maior dano quanto a essa decisão de créditos tributários não vem do Judiciário, mas sim dos outros Poderes. “O Executivo Federal ainda não se reposicionou diante do novo marco delineado. Até parece que esperava convencer o STF a adotar uma modulação que revertesse a decisão de origem. A menos que mudem os ministros do STF, que formaram ampla maioria, é questão de tempo que a mesma decisão sobre ICMS se aplicará sobre ISS. O Congresso Nacional também pode corrigir as leis de cobranças das contribuições, sem esperar iniciativa do Executivo, que até propôs o CBS supostamente para corrigir essa perda”, pondera.
No entender do pesquisador da GV Europe, o STF voltou a dar um recado claro em favor da transparência na cobrança dos impostos e evitar que se tribute uns aos outros. “É assim que funciona em boa parte do resto do mundo. No lugar de reclamar, seria bom começar a trabalhar para colocar o sistema tributário brasileiro próximo aos padrões internacionais. O Judiciário já fez sua parte.”
O economista Raul Velloso, um dos maiores especialistas brasileiros em finanças públicas, ex-secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento e presidente do Instituto Nacional de Altos Estudos (Enae), se debruçou sobre essa questão tributária e afirmou ao EXAME IN que o impacto anunciado não faz sentido.
“Há uma conta a acertar, mas a União não vai quebrar. O governo dramatiza a questão e deixa de considerar atenuantes. Além disso, despreza a visão atual sobre a capacidade de endividamento dos governos. O mundo mudou. E essa capacidade de endividamento também. Ela é muito maior se comparada aos malefícios que [a dívida] pode impor sobre a inflação. Desde 2008, quando eclodiu a crise do subprime, o mundo se tornou mais tolerante com a emissão de dívida e de moeda. E o Brasil é um dos países mais atrasados em aderir a essa nova visão. Aqui impera o dogmatismo fiscal”, diz Velloso.
Sinal de que o assunto crédito devido não é pacífico, outro especialista em finanças públicas, que fala ao EXAME IN na condição de anonimato, é crítico à decisão do STF. “É um absurdo o que fizeram, pois a tributação certamente foi repassada pelas empresas aos preços. Os consumidores pagaram a mais e agora as empresas vão receber a devolução dos tributos pagos a mais pelo governo. Sou a favor que os tributos incidam sobre uma base [de cálculo] sem tributos, mas quem tem de decidir isso é o Congresso, não o Judiciário.”
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