Você sabe se o seu fundo já te defendeu e processou alguma empresa?
CVM inicia consulta pública para determinar que empresas divulguem informações sobre processos arbitrais dentro do formulário de referência
Publicado em 17 de fevereiro de 2021 às 17:18.
Última atualização em 18 de fevereiro de 2021 às 12:40.
Você alguma vez perguntou ao gestor do seu fundo se ele já processou alguma empresa investida? E você, como investidor individual, já considerou essa possibilidade? A de buscar ressarcimento por algo equivocado que o controlador ou algum administrador fez que prejudicou a companhia na qual você investe e, portanto, seu dinheiro.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), nas palavras do atual presidente Marcelo Barbosa, quer “melhorar a tutela privada do mercado”. Trocando em miúdos: a ideia é, cada vez mais, facilitar os caminhos para que os investidores sejam ativos fiscalizadores dos negócios, usando as ferramentas que a Lei das Sociedades por Ações oferece.
A mais nova medida nessa direção é tornar obrigatório que as companhias deem publicidade a processos arbitrais sempre que eles: envolvam direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos; ou possam levar a decisão cujos efeitos têm potencial de atingir a esfera jurídica do emissor ou de outros investidores que não sejam parte do processo.
A publicidade deve ser dada dentro do formulário de referência, um documento de base anual, mas com atualização viva e constante. A CVM deu a largada em uma audiência pública para discutir sua proposta de como essa divulgação deve ser feita e em quais momentos. As sugestões e comentários poderão ser feitos até 12 de abril. A regra nova em debate vai alterar a Instrução 480 da casa.
Nada disso — o esforço pela atuação dos investidores e as formas de como estimular e facilitar esse caminho — a CVM tirou da cartola. O assunto vem sendo amplamente debatido por meio de workshop com especialistas nacionais e internacionais e seguem as recomendações da Organização para Cooperação do Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Arbitragens são, por definição, sigilosas. Mas essa característica não pode ficar acima dos direitos dos investidores, nem dos deveres das empresas com eles. A CVM já havia deixado isso registrado quando esclareceu que as companhias precisam informar o mercado e publicar fato relevante quando necessário, relacionado às arbitragens.
Agora, foi além: determina que dentro do formulário de referência, as empresas informem os processos dentro daquelas condições citadas — o que vai terminar por abranger quase tudo relacionado ao direito societário.
Existem situações em que um processo pode não merecer fato relevante — por não representar risco de perda relevante para a empresa e, portanto, de oscilação para as ações — mas que os investidores merecem saber de sua existência, para verificar, inclusive, se devem tomar medidas a respeito.
Sem entrar no mérito de que a arbitragem é o único caminho para discussões de empresas do Novo Mercado, Barbosa afirma na entrevista ao EXAME IN que a decisão da CVM reconhece que a arbitragem aplicada ao direito societário é um caso de sucesso e tem vantagens inquestionáveis. “Mas alguns aperfeiçoamentos são necessários, foi o que se percebeu ao longo dos debates”.
“Nós tentamos identificar quais os momentos críticos para essa comunicação no meio dos processos. São aquelas, ao nosso ver, em que talvez o investidor precise tomar uma decisão importante. Mas queremos saber quais as sugestões do mercado para isso e vamos debater o tema com todo cuidado que o assunto requer”, afirma Barbosa.
Na proposta para a audiência, as recomendações da CVM são para que as empresas informem quando há: a instauração de um processo arbitral, uma decisão provisória, o julgamento, uma proposta de acordo ou o fechamento de um acordo. “Pode ser que haja outros marcos ou sugestões para desdobrar esses”, comenta Barbosa. E toda essa divulgação, explica o presidente do órgão regulador, "não depende de qualquer juízo da empresa a respeito do prognóstico do caso". “A companhia não pode tomar o lugar do juiz ou do regulador.”
Antes disso
A xerife do mercado já havia adotado outras iniciativas para fomentar a atividade de fiscalização dos investidores, reduzindo os percentuais mínimo exigidos na lei para pedido de lista de acionistas, eleição de conselho fiscal, solicitação de voto múltiplo, abertura de processos contra administradores e contra controladores.
As companhias brasileiras foram crescendo e hoje deter fatias de 5% ou 10% do capital pode ser algo desafiador para negócios de centenas de bilhões. Por isso, as participações mínimas passaram a guardar relação com o valor de capitalização das empresas.
O que todo esse juridiquês significa na vida do investidor? Significa que a CVM está tentando facilitar a vida dele para cobrar as companhias e exigir boas práticas. Mas também que o ambiente de investimento tende a mudar. Cada vez mais, os fundos de investimento terão menos desculpas para não atuar na defesa dos direitos dos cotistas.
Todos são fiscais
O mercado brasileiro tem várias peculiaridades. A começar pela própria CVM, que aqui cuida de temas societários, algo que a Securities and Exchange Commission, por exemplo, não faz. Além disso, o regulador brasileiro é obrigado a avaliar todas as queixas dos investidores que forem levadas a ele e ainda tem o dever “de ofício” de fiscalizar as empresas. Ou seja, ainda que ninguém se queixe de nada.
Outra particularidade é que aqui as companhias não são as vilãs e elas não pagam indenizações a investidores que se sintam prejudicados. Pela Lei das S.As, as companhias são vítimas ou de maus administradores ou controladores. O que os acionistas podem fazer é atuar em nome da empresa e buscar compensação para a companhia, o que tenderia a recuperar o valor de seus investimentos.
Há um debate, mas muito no início — inclusive com casos práticos na própria Câmara de Arbitragem do Mercado (CAM), criada pela B3 para atender ao Novo Mercado e ao Nível 2 —, de investidores que apelam ao código civil em busca de indenizações. A Petrobras mesmo perdeu uma arbitragem assim em processo iniciado por Previ, Petros e outros fundos, em razão da Lava-Jato. A estatal, porém, contesta o resultado na Justiça.
A Lei das S.As. cria um paradoxo em relação à legislação anticorrupção, na qual as empresas não apenas são responsáveis, junto com os executivos, como podem ser penalizadas. Foram os casos dos acordos de leniência da Lava-Jato, da Braskem, da J&F (dona da JBS), e por aí uma sorte de empresas abertas que acabou fazendo alguma espécie de acerto com o Ministério Público Federal (MPF). Na lei anticorrupção, o CNPJ pode ser punido. Na lei societária, a companhia é vítima.
Ativismo ou defensivismo?
Lembrar um pouco de história, mesmo a recente, sempre ajuda a entender o presente. Há 15 anos, a gestora brasileira de recursos Polo Capital atuou fortemente para buscar formas de evitar uma reestruturação societária da Oi. O que ela fez? Falou com outros acionistas, foi à CVM e buscou demonstrar as distorções. Tinha uma posição significava nas ações da empresa.
A situação, pouco comum no mercado brasileiro, na ocasião deu a eles a pecha de “ativistas”. Um ano depois, após levarem a aquisição do Grupo Ipiranga ao regulador e à Justiça, e questionados sobre essa forma de atuar, a dupla de fundadores da casa, Marcos Duarte e Cláudio Andrade explicou: brigar não era estratégia (até poderia ser, mas não era), mas eles entendiam que estava no dever fiduciário deles defender o patrimônio do cotista de fundos. Criaram o termo, então, defensivismo. “Somos defensivistas”, disseram.
Naquela é época, o ano era 2007, o Novo Mercado estava começando a deslanchar de verdade, com o quarto ano de atividade de captação de recursos com ações pelas empresas, após décadas de quase paralisia. A CAM estava pura e casta. Não havia registrado nenhum debate.
A Justiça? Era um caminho terrivelmente demorado e repleto de desconhecimento — ainda é assim, mas houve melhoras. Desde então, múltiplos casos foram parar na CAM. Há quem diga até que há oportunismo em muitos deles — investidores que atuam em busca de acordos que lhes rendam algum dinheiro apenas para encerrar discussões.
Ivo Waisberg, renomado advogado societário, de contenciosos e de recuperações judiciais, uma vez debatendo a questão do oportunismo foi bastante claro sobre o assunto: “enquanto o mercado não for inundado de iniciativas de investidores, oportunistas ou não, não haverá temor das companhias, administradores e controladores”. A tal da tutela privada, portanto, não estará exercendo sua força.
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