Efervescente, mercado de capitais vive silenciosa revolução regulatória
CVM editou 14 instruções desde 2018 e há revoluções importantes à vista, na regulamentação de fundos e no regime de ofertas
Publicado em 25 de setembro de 2020 às 04:09.
Última atualização em 25 de setembro de 2020 às 17:28.
As últimas duas décadas do mercado de capitais brasileiro foram altamente produtivas. Sim e não. A parte do sim: das 338 companhias listadas na B3 hoje, mais de uma centena são empresas que estrearam no pregão a partir de 2004 — 16 só neste ano. São quase 190 novatas desde então e mais de uma centena delas se tornou relevante no mercado. Para se ter uma ideia, das 77 ações que compõem o Índice Bovespa atualmente, 60 são de companhias listadas no Novo Mercado ou no Nível 2 de governança da bolsa.
Sem nenhum tipo de atualização dos valores, esses IPOs e mais um sem número de ofertas subsequentes movimentaram perto de 670 bilhões de reais na bolsa, ao longo desses dezessete anos. É bastante, não há como negar.
Mas, a parte do não: mesmo assim, o mercado encolheu em quantidade. A bolsa está ainda muito próxima do menor número de empresas listadas desde que o total começou a ser registrado, a partir de 1996. Tudo estaria muito pior se o mercado brasileiro não tivesse recuperado a capacidade de se tornar um agente de financiamento, a partir de 2004 com o IPO da Natura.
Quase em um contrassenso, mesmo com a queda do total de companhias, a quantidade de ações em circulação no mercado aumentou substancialmente, o que permitiu que o volume diário movimentado na bolsa se multiplicasse ao ponto de estar hoje em torno de 30 bilhões de reais. Havia mais companhias antes (chegaram a 550), é verdade, mas menos líquidas e menos ativas.
Esse aumento da atividade foi fruto de uma coleção de iniciativas dessas últimas duas décadas: criação do Novo Mercado, reforma da Lei das Sociedades por Ações, edição das Instruções 400, que estabeleceu o regime de ofertas públicas, e anos mais tarde da 476, que acelerou o acesso ao mercado para quem já está nele, e da 480, que revolucionou a transparência das companhias brasileiras. Isso sem falar em mais um sem número de iniciativas e regras que atualizaram a contabilidade das companhias e ainda estruturaram a indústria de fundos de investimentos. Basta lembrar que no início dos anos 2.000 não havia sequer a marcação a mercado das cotas.
Quando o advogado societário Marcelo Barbosa assumiu a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em 2017, esse arcabouço precisava de atualização para o mercado seguir cumprindo seu papel. As inovações todas estavam perto de completar entre uma ou duas décadas de adoção. Ou seja, estavam perto de ficarem velhas. A quantidade de companhias ainda encolhia e o mercado secundário de títulos de dívida estava mais para um desejo do que para realidade.
De todos os presidentes da autarquia das últimas duas décadas, é talvez o que menos confortável se sente com os holofotes inerentes da posição. E um dos mais obcecados por trazer para o regulador um valor essencial para o mercado: a previsibilidade. Barbosa sabe disso e está trabalhando para resolver exatamente as questões e deficiências que apontou em sua sabatina pelo senado. Com uma agenda pública de regulação e bem detalhada, a CVM de hoje consegue dar tempo para o mercado se estruturar e participar do debate, com estudos e argumentos para esse processo de modernização.
Daí nasce a relação em que a CVM atual é pouco ‘hype’ na cobertura midiática ou, trocando em miúdos, é o terror dos jornalistas. Quase nada que Barbosa diz ao mercado é uma surpresa. E isso é um valor de sua gestão. Ele gosta de ser um exemplo para o mercado que regula: as novidades CVM são comunicadas ao mercado oficialmente, por ela, para todos e ao mesmo tempo.
Logo que tomou posse da cadeira, Barbosa tratou de cara de uma tal de “redução do custo de observância”, expressão técnica esquisita que significa na prática a diminuição do custo direto e indireto de se cumprir as regras (tarefa que pode até parecer obrigação óbvia, mas não tem nada de simples), e também do desenvolvimento do mercado de dívidas. Quando chegou, debêntures nada mais eram do que títulos que ficavam na carteira de bancos, no lugar de uma tradicional linha de crédito. Agora cerca de 80% ou mais das emissões estão pulverizadas entre investidores pessoas físicas e variados fundos de investimentos de crédito.
A CVM regulamentou a criação de novos ativos para os investidores e aperfeiçoou outros. Os tais certificados de recebíveis do agronegócio surgiram e os imobiliários deslancharam. Veio a festa dos CRAs e CRIs. As debêntures incentivadas finalmente pegaram para valer. E agora os BDRs poderão entrar de vez para a lista de investimentos à disposição do mercado — e ETFs com eles também serão possíveis.
Desde 2018, depois de Barbosa tomar pé da situação, a CVM emitiu um total de 14 instruções, duas deliberações, uma resolução e um parecer de orientação (confira todas as mudanças ao fim da matéria). E a lista de próximas — previstas e divulgadas — dá uma indicação do porte das atualizações e modificações que ainda estão por vir, incluindo a pavimentação de um caminho para um ambiente de concorrência no mercado de bolsa de valores — ou seja, a possibilidade de criação de novas bolsas, por meio da Instrução 461 — e mais uma chacoalhada na indústria de fundos, devido à chamada Lei da Liberdade Econômica. Barbosa tem pela frente pouco mais de um ano e meio de gestão CVM, e a lista de tarefas até o fim está pronta. E não é pequena.
Toda essa movimentação vem sendo ainda acompanhada de um grande agito: o mercado de investidores individuais quintuplicou de tamanho em 3 anos após mais de uma década de estagnação. “Eu me lembro muito claramente dos dados porque citei no primeiro grande evento de mercado que participei. Eram 600 mil contas para bolsa, comparadas a 1 milhão de contas para operar criptoativo”, comenta Barbosa, em entrevista exclusiva ao EXAME IN. Três anos depois e esse total se multiplicou por 5. Hoje, são 3 milhões de contas de investidores individuais. O combustível, todos sabem, é a queda na taxa de juros que criou uma legião de “órfãos da Selic”. Mas o solo para essa mudança era fértil. E ainda é só o começo, perto da população economicamente ativa do país.
“O aumento dessa base é muito bem-vindo e desejável. E isso se liga diretamente com uma das missões da CVM que é trabalhar pelo desenvolvimento do mercado, pelo aumento da captação da poupança popular para financiar o setor produtivo. Isso fala diretamente com nossos objetivos principais. O outro é proteger o investidor”, enfatiza Barbosa.
E, pela primeira vez em décadas e décadas, essa é uma frente estimulada pela CVM de Barbosa. A gestão de Maria Helena Santana criou as bases para a participação dos investidores na vida empresarial das companhias, estimulando e facilitando indicações de acionistas minoritários para conselhos de administração e fiscal. Agora, Barbosa está dando instrumentos para que os investidores lutem – ou briguem mesmo, se caso for — por seus direitos com mais facilidade.
A autarquia reduziu os percentuais - para torna-los proporcionais ao tamanho das empresas - para que investidores ingressem com ações de ressarcimento em nome das companhias, tanto contra executivos como contra controladores (artigos 159 e 246 da Lei das S.As.). Essas são duas ferramentas disponíveis na Lei das S.As. são pouco usadas na prática.
Agora, a CVM se prepara para deixar claro e por escrito que informações sobre arbitragens devem ser divulgadas ao mercado. A iniciativa é para lá de importante porque todas as companhias listadas no Novo Mercado e no Nível 2 de governança da bolsa são obrigadas, pelo regulamento da B3, a resolver qualquer conflito societário pela via arbitral. Como o procedimento é sigiloso, o tempo mostrou que as companhias se escondem atrás disso para não informar ao mercado quando são alvo de questionamentos.
Tudo isso está ocorrendo em um ambiente no qual o investidor, munido da força do voto que o Novo Mercado lhe conferiu, consegue exercer seu poder de influência sem custo nenhum, a partir de um clique, com as assembleias virtuais regulamentadas — tanto de acionistas, como de debenturistas. Pense, só pense, no que isso produzirá em um futuro próximo.
Confira abaixo, os principais trechos da entrevista exclusiva de Marcelo Barbosa ao EXAME IN:
Qual mercado é esse que sairá dessas tantas movimentações regulatórias?
Quem acompanha de perto o que fizemos e faremos pode prever que o mercado que será possível vai ter algumas características. Primeiro, uma variedade e quantidade muito maior de ativos. Em ações, claro, mas principalmente em papéis de dívida. Além de fomentar um mercado secundário de dívida, também flexibilizamos o investimento em BDR [antes restrito apenas a investidores qualificados]. Também é possível prever que nossa infraestrutura de mercado e regulação vão refletir padrões mais modernos. Aqui, estou falando especificamente da Instrução 461 [que trata do funcionamento de bolsas e competição nesse mercado]. Além disso, todo o regime de ofertas públicas será aprimorado. Isso tudo constitui uma agenda de desenvolvimento avançada. E, não menos importante, temos pela frente a mudança no regime informacional, iniciada em 2009, com a Instrução 480, e que agora vai passar agora por aprimoramentos significativos, pouco mais de uma década depois.
Por que tudo isso precisa ser previsível?
Desde pouco tempo após eu chegar, reforcei a importância de fazer a divulgação da agenda regulatória do ano. É importante o regulador ser previsível. O que fazemos precisa ser anunciado e esperado. Com isso, o mercado se programa, se prepara, se planeja e se ajusta. Além disso, isso oferece tempo para os estudos que os participantes vão trazer. Estou convicto de que, quanto mais tempo nós dermos, melhor vai ser o imput que vamos receber. Além disso, é importante que tudo tenha sequência e continuidade. É um movimento com encadeamento lógico e não um desejo desorganizado do regulador.
Como quando você, desde o começo, falou do custo de observância?
Exato. Quando entrei, logo comecei a falar disso. Há uma mudança cultural em relação a isso, dentro e fora da CVM. Agora, as pessoas começam a argumentar conosco com base nesse princípio. Além, disso, internamente, as áreas fazem as propostas seguindo essa direção. É algo que começou em 2017 e desde então temos visto iniciativas nesse sentido. Em um primeiro momento, isso nos levou até a Instrução 604. Mas outras medidas têm relação com isso. Agora, na revisão da Instrução 480 [que trata do formulário de referência], vamos usar várias das sugestões que vieram do mercado quando fizemos a consulta sobre custo. Aquilo tudo está nos alimentando até agora.
Dá para saber se o que já foi feito trouxe mais eficiência ou redução de custo?
Nas ofertas públicas, permitimos a apresentação confidencial do pedido de registro e dispensamos de análise prévia, o material publicitário. Isso visivelmente agregou agilidade. Temos realizado diversas dispensas de obrigações. Acredito que a lista mais palpável é para gestores e administradores de fundos.
E isso se traduz em uma cadeia produtiva melhor que possa custar menos para o investidor?
Podemos desobrigar o gestor e administrador de algumas tarefas, mas a questão do custo vai sempre depender mais da relação com o cliente. Aí não nos cabe fazer essa pressão. É algo mais mercadológico. Nos custos de serviços que regulamos, já existe bastante transparência. Mas não sei se os investidores estão com olhar tão detalhista.
Tem alguma iniciativa que possa mexer diretamente com custo para o investidor?
Quando editamos a Resolução 3, que trata de BDRs, abrimos uma porta para aumento dos fundos passivos via ETFs. Devemos ter um aumento da oferta desses produtos, que, por definição, têm taxas mais baixas. É uma oportunidade de pressão sobre os demais fundos.
É possível afirmar que a CVM está dando instrumentos para o investidor ser mais eficiente na busca por seus direitos, num momento em que temos um crescimento tão grande da pessoa física como acionista direta?
Temos de ver o uso na prática de tudo que estamos fazendo. O emprego da ferramenta da tecnologia torna tudo mais simples e com uma escala bem maior. Tem ainda o próprio sandbox [espaço criado pela CVM para receber inovações de mercado]. Vai haver uma pressão de melhoria dos serviços oferecidos no médio e longo prazo. Por fim, a questão da transparência traz um efeito difícil de medir, mas acho que a academia depois vai ajudar a entender isso — e tenho buscado uma proximidade maior com os profissionais de pesquisa. Tem o que o investidor faz com a informação e o que ele não faz porque tem informação. Muitas vezes, não fazer nada é algo importante.
Tem ainda a questão de dar mais transparência sobre as arbitragens, não?
Sem dúvida isso é muito importante. Para uma companhia que tem cláusula de compromisso arbitral no estatuto [como todas do Novo Mercado e do Nível 2], é importantíssimo que informações sobre isso sejam divulgadas. Tem decisões que o investidor precisa tomar e que pode ser influenciado por algum andamento num procedimento arbitral. É importantíssimo saber e entender. Já é consenso: o sigilo da arbitragem não prevalece sobre a regra e o dever de divulgação de fato relevante das empresas.
Apesar de o mercado de dívida ter crescido muito, a quantidade de coisas por fazer ainda é enorme, não?
Fizemos um grande esforço e estudos para entender o mercado de dívida. Temos um amplo diagnóstico. As regras das ofertas serão melhoradas quando fizermos a reforma das Instruções 400 e 476, para modernizar todo esse regime. Também já diagnosticamos que a criação de um índice do mercado de dívida, em algum momento, será muito importante, pois permitirá a criação de ETFs. Há ainda toda a discussão em torno de uma maior digitalização desse mercado. Isso é um desafio do Brasil e de diversos outros países. Os negócios com esses títulos são realizados, em sua imensa maioria, no mercado de balcão. Se for possível eletronificar essas transações, seria avanço grande em termos de eficiência, velocidade e transparência.
Vocês pensam em determinar a existência de uma bolsa para papéis de dívida?
Nós não emitimos nenhum entendimento nesse sentido. É uma decisão que não nos cabe, pelo menos, não dessa forma. Mas, muitas vezes, nossas determinações e exigências podem ser interpretadas como algo que leva nessa direção.
O aumento da participação da pessoa física mexe com as iniciativas da CVM? Como?
Toda essa alteração do perfil do investidor, obviamente, nos sugere e nos recomenda ter um olhar mais atento para questões de divulgação de informação. Será que o investidor pessoa física vai entender? Será que é útil? E isso deve ecoar também nas companhias, pois elas precisam repensar sua comunicação para entender que essa base mudou. Temos sempre que pensar quem é o público consumidor. O regulador do mercado de capitais é, antes de tudo, um regulador de informação.
Nesse sentido, se preocupa com o uso das redes sociais por esse público e pela indústria que cresce ao seu redor?
Eu não vejo necessidade nem de ignorar as redes e seus efeitos, nem de tornar isso um tema central. As redes sociais são caixas de ressonância. Tudo que tem lá ressoa. É claro que tem conteúdos indesejados também. Definir e identificar quais são é difícil. Mas, quando elas tratam de informação com impacto no mercado são iguais quaisquer outras e serão tratadas da mesma forma. Poderia ser jornal, televisão ou o que quer que fosse e teria o mesmo tratamento. Vamos sempre questionar: É uma informação divulgada com qual intuito? Era privilegiada? Requer de alguma companhia esclarecimento? As redes agregam complexidade porque são muito capilarizadas e dinâmicas. Elas trazem dificuldades e desafios. Mas algumas delas [dificuldades] já apareceram em outros momentos. A febre do avestruz, por exemplo, ou do boi gordo, ou do criptoativo. ‘Será que é valor mobiliário?’. A lógica é a mesma nessa discussão. É por isso que a frente da educação financeira é tão importante. O aumento do mercado no futuro depende do conforto que os investidores pessoas físicas vão ter com os conceitos de poupança, risco e retorno.
A lista da nova regulação:
Normas de Mercado publicadas pela CVM em 2018, 2019 e 2020
Instrução 598
03/05/18
Um novo marco regulatório sobre a atividade de analista de valores mobiliários
Instrução 600
01/08/18
Instrução específica regulamentando a emissão e oferta de Certificados de Recebíveis do Agronegócio — CRA
Instrução 602
27/08/18
Regulamentação de ofertas públicas de distribuição de contratos de investimento coletivo hoteleiro — Condo-Hotéis
Parecer de Orientação nº 38
25/09/18
Parecer de orientação sobre Contrato de Indenidade
Instrução 604
13/12/18
Projeto Estratégico de Redução de Custos de Observância
Deliberação 809
19/02/19
Análise reservada de pedidos de registros de ofertas públicas de distribuição de ações e de emissores de valores mobiliários
Instrução 606
25/03/19
Criação dos Fundos de Investimento em Infraestrutura
Deliberação 818
30/04/19
Dispensa a necessidade de aprovação prévia pela CVM de material publicitário utilizado em oferta pública de distribuição de valores mobiliários registrada
Instrução 607
17/06/19
Novo marco regulatório que disciplinou o processo administrativo sancionador da CVM
Instrução 612
21/08/19
Aperfeiçoamento dos controles internos dos intermediários
Instrução 615
02/10/19
Retirada da obrigação de registro em cartório dos regulamentos de fundos de investimentos
Instrução 617
05/12/19
Nova regra sobre a Prevenção à Lavagem de Dinheiro e ao Financiamento do Terrorismo (PLDFT) no mercado de valores mobiliários.
Instrução 620
17/03/20
Dispõe sobre a aquisição, por companhias emissoras, de debêntures de sua própria emissão.
Instrução 622
17/04/20
Regulamentação de Assembleia digital de acionistas
Instrução 625
14/05/20
Regulamentação de Assembleia digital de debenturistas
Instrução 626
15/05/20
Criação do Sandbox regulatório (ambiente regulatório experimental)
Instrução 627
22/06/20
Fixação das porcentagens mínimas de participação para exercício de alguns direitos dos acionistas
Resolução 3
11/08/20
Reforma da regulamentação sobre certificados de depósito de valores mobiliários — BDR
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