Alpargatas: os desafios de sucessão de liderança que não cabem em um só cargo
Simplificação no portfólio de marcas, como foco em Havaianas, não reduziu a complexidade do negócio
Graziella Valenti
Editora Exame IN
Publicado em 5 de maio de 2023 às 11:06.
Última atualização em 5 de maio de 2023 às 11:18.
O balanço da Alpargatas (ALPA4), dona da Havaianas e acionista da Rothy’s, divulgado ontem à noite estampa com cores fortes o tamanho do desafio da companhia e os motivos da necessidade da revisão da liderança, até então conduzida por Roberto Funari – que assumiu como CEO após a aquisição do controle por Itaúsa e Cambuhy, os veículos de investimentos não financeiros das famílias Setúbal e Moreira Salles.
Desde que os novos donos chegaram, a empresa se concentrou na marca Havaianas. Mas o resultado não foi simplicidade, como poderia parecer. E, na visão de investidores de mercado e alguns poucos analistas que acompanham a empresa na bolsa, mexer só no corpo executivo – Funari renunciou ao cargo há duas semanas — talvez não seja suficiente para lidar com as complexidades hoje envolvidas no negócio. Talvez seja necessário pensar inclusive em um conselho mais diverso, para lidar com a soma de necessidades que a empresa possui e que dificilmente vão se encerrar em só nome.
A companhia teve prejuízo de R$ 200 milhões entre janeiro e março, comparado a um lucro de R$ 21 milhões em igual período de 2022. Os detalhes de como se chegou a essa conta final importam mais do que o número em si: houve queda de 2,7% na receita líquida, para R$ 902 milhões, com redução de 8% no volume vendido. O Ebitda recuou 63%, para R$ 62 milhões – a margem encolheu de 18% para 7%.
A companhia afirma que 40% dessa redução veio da desalavancagem operacional, ou seja, perda de eficiência gerada por vendas menores. A diferença reflete uma combinação de aumento dos gastos com marketing (30% maiores), tecnologia e consultorias. E esse Ebitda não considera ainda a provisão de quase R$ 270 milhões da venda da operação da Argentina para lidar com o calote de Carlos Wizard no pagamento.
Com esse quadro, deu para entender por que a reunião do conselho de administração, na semana retrasada, foi o clímax sobre o futuro de Funari. De forma consensual com a visão do colegiado, o executivo renunciou ao cargo – o anúncio ocorreu no dia 26. O conselheiro Luiz Fernando Ziegler de Saint Edmond assumiu a presidência interinamente. A troca foi a jato. Funari ficou apenas até quinta-feira da semana passada.
A boa notícia é que o diagnóstico está bastante claro para os acionistas. A mensagem da administração que acompanhou a divulgação do resultado do primeiro trimestre deste ano é a prova disso. “As iniciativas de expansão de geografias, canais e categorias, em que pese terem aberto importantes novas avenidas de crescimento, também trouxeram novos desafios, traduzidos sobretudo em um aumento de complexidade para os processos internos e na estrutura organizacional”, diz o texto. Mas não significa que a tarefa daqui para a frente será fácil. “Diante desse cenário, nos concentraremos em poucas alavancas de crescimento, redução de custos e despesas e simplificação de estruturas”, já avisa a companhia.
Funari fez ajustes para lá de relevantes na Alpargatas. Conduziu a venda de ativos considerados fora do core business, concentrou a operação em Havaianas, e colocou a companhia em uma direção digital e rumo ao contato com o consumidor. No meio da pandemia, os investidores chegaram mesmo a acreditar que havia feito tudo que a empresa precisava. O valor em bolsa da companhia passou de R$ 20 bilhões. Agora, está avaliada em R$ 5,5 bilhões – de volta ao mesmo preço de quando Itaúsa e Cambuhy assumiram o controle da empresa.
Tudo isso, porém, trouxe uma grande complexidade à operação e, de alguma maneira, o que estava sendo feito na ponta final da distribuição não foi acompanhado de ajustes industriais. O resultado é que a empresa perdeu eficiência de produção e, com isso, gerou problema nos canais. A venda massiva nos canais alimentares – grandes supermercados e hipermercados – ficou descuidada. O problema é que mesmo com venda online, lojas dedicadas, pop-ups e outras iniciativas, as grandes redes varejistas são de extrema importância para alavancagem operacional pelo volume que representam.
Embora o desafio nos Estados Unidos tenha se tornado um assunto para lá de recorrente nos balanços de 2022 para cá, a verdade é que acessar esse mercado de forma eficaz, com força de marca e distribuição, sempre foi um desafio. Já na Europa, onde os produtos se tornaram itens de desejo, houve problemas novos. Para completar, tudo ficou mais sofisticado com a decisão da empresa de ampliar o leque de produtos, partindo para moda têxtil.
Uma só andorinha nunca fez verão
Encontrar um talento que possa assumir o leme da Alpargatas e resolver todas essas frentes não será um desafio simples. O conselho de administração da companhia terá um duro processo de seleção pela frente. E assim como provavelmente não exista uma só pessoa capaz de colocar tudo em ordem, também não é possível afirmar que os desarranjos foram todos produzidos por Funari sozinho. Mais uma vez: a empresa tem dono e ativo, o que é bom.
E, entre os investidores, de longa data do negócio, a percepção é que no meio de tanta coisa para arrumar há uma coisa no lugar certo: os controladores. A companhia finalmente possui agora donos presentes que acompanham muito de perto o negócio. A Alpargatas ficou durante anos nas mãos do grupo Camargo Corrêa – esse mesmo, do setor de construção! – e era um negócio obviamente nada central. Depois disso, passou uma temporada curta com a J&F, dona da JBS. A percepção de valor da Havaianas é tamanha que ajudou com muita rapidez a resolver duas crises da Operação Lava-Jato e seus desdobramentos: garantiu liquidez de recursos tanto para Camargo como, poucos anos depois, para o grupo da família Batista.
Desde que Carla Schmitzberger transformou a Havaianas de um chinelo popular em um acessório desejado de moda, no Brasil e em muitos outros países, o produto não perdeu status. A executiva foi responsável pela marca durante muitos anos dentro da gestão do ex-CEO Márcio Utsch e saiu após a compra pela JBS, após mais de uma década na companhia. Hoje, dedica-se à participação de alguns conselhos de administração, como da Natura &Co. Contudo, a companhia não chegou a uma versão madura de estratégia, que combine indústria, tecnologia e consumo. Essa combinação, aliás, vem sendo um desafio de diversas grandes marcas.
Apesar do conforto de a Alpargatas ter um dono forte e presente, não significa que todas as engrenagens de governança estejam em seu nível ótimo. O conselho de administração da empresa é percebido como excessivamente concentrado em membros com conhecimento financeiro. Falta uma combinação mais diversa, na qual estejam presentes talentos industriais, de marketing, moda e até posicionamento digital para marcas de consumo.
A formação eleita recentemente é composta de oito membros. Desse total, seis representam controladores e acionistas (Silvio Tini) e apenas dois – o próprio Edmond (ex-CEO da Ambev) — e mais Staecy Brown (diretora de varejo da Apple) são independentes convidados.
O sucesso da Alpargatas talvez seja, cada vez mais, um conceito maior de time do que de um só capitão.
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Graziella Valenti
Editora Exame INCriadora do EXAME IN, espaço dedicado à cobertura de negócios, com foco em mercado de capitais. Na EXAME desde março de 2020, ficou 13 anos no Valor Econômico, oito como repórter especial, sete anos na Broadcast, do Grupo Estado.