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Dívidas

As sugestões para a crise do advogado que cuidou de 150 bi em dívidas

Para Eduardo Munhoz as empresas devem preservar o caixa, depois a operação e só então olhar para a dívida financeira

EDUARDO MUNHOZ: não é o momento de uma correria para se manter em dia com os bancos a qualquer custo (Divulgação)
EDUARDO MUNHOZ: não é o momento de uma correria para se manter em dia com os bancos a qualquer custo (Divulgação)

Publicado em 13 de abril de 2020 às 09:55.

Última atualização em 13 de abril de 2020 às 16:02.

“Empresas quebram por falta de caixa e não por excesso de dívida.” Com essa explicação simples, o advogado Eduardo Secchi Munhoz, que em menos de dez anos esteve à frente da estratégia jurídica para reorganizar mais de 150 bilhões em compromissos financeiros dos casos mais emblemáticos do país, justifica a recomendação para que as companhias se esforcem para preservar o caixa e manter a operação.

Não é o momento, na opinião do especialista, que também é professor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e árbitro na câmara da B3, daquela correria para se manter em dia com os bancos a qualquer custo, inclusive, da manutenção do negócio.

Munhoz inaugurou a atividade no direito empresarial no ano do Plano Real, em 1993. Antes de ter seu próprio escritório butique, o E. Munhoz Advogados, atuou de 1994 a 2010 no Lilla, Huck, Malheiros e, de 2010 a 2015, no Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey e Quiroga.

Da cadeira privilegiada de quem fez e faz as operações, assistiu à montanha russa da economia do país – desde os problemas com a maxidesvalorização, passando pela euforia com o mercado de capitais, até a quebradeira com a recessão vivida especialmente de 2014 a 2017 e a retomada da bolsa com força, antes da pandemia da covid-19.

Dedicado a atuar ao lado do empresário, e não dos bancos, Munhoz espera que assim como a pandemia trouxe a onda dos doentes nos hospitais trará a onda das empresas lotando bancos e os sistema judiciário com as demandas para reestruturar suas dívidas. Para ele, o preparo para esse momento envolve o aumento da infraestrutura do judiciário, em regime de mutirão, e possíveis mudanças cirúrgicas no sistema de recuperação judicial, com foco em facilitar o financiamento e o investimento pelas companhias.

Apesar de a legislação brasileira já permitir os empréstimos a empresas em recuperação, conhecidos no mercado pela sigla DIP (da expressão em inglês debt-in-possession), o advogado – que realizou as maiores dessas raras operações no país – vê inúmeras ineficiências que dificultam o crescimento dessa prática.

Os pacotes do Ministério da Economia para a crise, na visão de Munhoz, deveriam conter medidas nessas frentes para o Congresso conduzir. Além disso, a concentração bancária facilitaria a adoção de saídas mais ousadas e criativas. “Daria para fazer desse limão uma limonada.”

Ele acredita que a pandemia pode ser a oportunidade para uma mudança cultural no tratamento do tema no Brasil. “O tamanho e a contundência dessa crise, quem sabe, nos levará a entender que reestruturação de dívida significa reconhecimento de perdas, pelos credores, pelo empresário e pelos trabalhadores. Quanto antes essas perdas forem reconhecidas, de forma realista, mais cedo será possível recomeçar um novo ciclo da economia. Empresa endividada não investe.”

A fala é do especialista que renegociou os compromissos do grupo J&F, da família Batista e dono do frigorífico JBS, reorganizou os bilhões devidos pelo Grupo X, de Eike Batista, e coordenou as recuperações judiciais da OAS e do Grupo Odebrecht, entre outras. A seguir, a entrevista completa:

Os bancos e o sistema judiciário estão preparados para lidar com a crise econômica esperada como resultado da pandemia?
Acho que não. Nenhum dos dois. Os bancos precisam se aparelhar e investir nos seus departamentos de recuperação de crédito e de negociação de dívida. Bastante. Aumentar quantidade de pessoas, criar método e diretrizes para ter mais capilaridade na busca dessas negociações. Talvez como nunca houve. Essa crise é muito maior do que a de 2014 a 2017, dada a forma abrupta e generalizada que ela veio.

O Judiciário também vai precisar de esforço semelhante. O número de varas especializadas é pequeno. Para dar a celeridade necessária e atender a essa curva, é fundamental que haja preocupação e investimento relevante na formação de novas varas. Deveria haver um esforço de mutirão para lidar com a demanda que virá. Mal comparando, assim como há onda de pacientes nos hospitais, haverá também uma onda de empresas em busca de proteção do Judiciário contra credores.

É possível fazer esse aparelhamento rapidamente?
Em geral, não são medidas muito rápidas. Mas, com esforço e dedicação dos Tribunais de Justiça dos diversos estados, é possível. Obviamente, isso precisa envolver orçamento. O judiciário tem orçamento próprio.

Será necessário realocar recursos e negociar com o Estado verbas para lidar com isso. Mas uma parte depende só da organização do próprio judiciário, de realocação interna de recursos, para atender essa demanda que, ao meu ver, é uma prioridade. A recuperação da economia exige isso e é perfeitamente possível.

O que acha mais importante para facilitar a vida prática da crise esperada?
Antes de falar em mudanças de lei, quero frisar que isso não basta. É preciso um conjunto coordenado de medidas. É preciso que o Tribunal de Contas da União (TCU) e outros órgãos públicos entendam que quando um banco público reconhece uma perda num crédito e, portanto, concede um desconto numa dívida ou mesmo converte em capital, isso não é um motivo de responsabilização do gestor da instituição.

É uma decisão empresarial. Dar crédito é uma atividade de risco. Ninguém jamais previu algo como o que estamos vivendo. Portanto, o banco público precisa reconhecer quando não vai recuperar a totalidade do crédito. Não aceitar isso é ruim para o país e para a economia. Não parece, mas isso é uma medida que pode mudar muito a realidade.

E na frente legislativa, o que pode ser feito?
Eu apontaria duas medidas que me parecem muito relevantes. A primeira é uma lei que trate da insolvência da pessoa física. Nesse momento, será tremendamente necessário. Fundamental, na verdade, e nós não temos no Brasil. Sem isso, as famílias não voltarão a consumir e a ativar a economia. A outra iniciativa legislativa possível seria uma lei para tratar das pequenas e médias empresas, e que serão muito afetadas por essa crise, com regime simplificado.

Temos um sistema que não tem se mostrado efetivo em diferenciar as companhias por tamanho. Na própria lei atual tem um capítulo disso, mas ela prevê o mero alongamento de dívida que, muitas vezes, não é suficiente. Precisaria haver a criação de uma espécie de juizado de pequenas causas para empresas, com processos simplificados, que exijam menos documentos, menos laudos.

Enfim, que barateie a solução e a torne mais ágil. Existem algumas coisas em debate no Congresso e isso precisa ser acelerado. As pequenas e médias são as que mais vão sofrer e, muitas vezes, negociam com uma planilha de excel porque não alcançam o alto escalão dos bancos.

Mas as grandes empresas também devem ser afetadas. O que pode ser feito de forma geral?
O que deveria ser essencialmente atacado é melhorar a situação de financiamento e investimento nas companhias em crise. Sem financiamento e sem investimento, não tem recuperação de empresa. Tudo deveria estar focado nesse esforço, para dar mais segurança jurídica para quem queira investir ou financiar nessa circunstância. Tem que mexer com cuidado e de forma cirúrgica na lei, naquilo que realmente pode fazer a diferença.

E como o financiamento e investimento podem ser estimulados?
É preciso ter muito cuidado na hora de importarmos soluções de outros países, mas vale olhar para a experiência dos Estados Unidos, o país com maior índice de recuperação de empresas em crise. Nesse sentido, uma questão importante – para a qual existe previsão em lei lá, mas aqui ainda não – é a possibilidade de um novo financiador compartilhar garantias com credores antigos.

Quando as empresas entram em recuperação judicial, em geral, já deram a maioria dos bens em garantia e não há muito a oferecer para novos financiadores. Obviamente, ninguém vai dar credito novo sem garantia. Mas é possível, com previsões legais cuidadosas e decisões judiciais adequadas, um credor novo compartilhar garantias mesmo que contra vontade dos credores antigos.

O cuidado a ser tomado é não prejudicar o credor antigo. O espaço para isso existe porque, na maioria das vezes, os bens dados em garantia têm valor muito superior ao crédito coberto. Então, é possível o compartilhamento.

Algo mais no modelo americano faria sentido para o Brasil?
Nos Estados Unidos, existe um princípio chamado “mootness doctrine”. Na prática, significa que decisões judiciais futuras, no âmbito de recursos, não podem anular garantia ou aquisições de bens. Ou seja, não há possibilidade de anular, por meio de recursos, contratos firmados, se não houve na ocasião do contrato nenhum questionamento. Aqui no Brasil, esse é um dos maiores medos de financiadores e investidores.

Por isso, é um risco que poucos tomam. Imagina fazer o investimento e, lá na frente, enfrentar perda da garantia ou do bem adquirido. No Brasil, ainda temos grande variação das decisões judiciais. É um fator fundamental e mudaria muito a percepção de risco de investidores.

Mas nossa legislação já oferece espaço para o financiamento no modelo DIP, não?
Nossa lei permite. Mas existem dificuldades. Aqui, só conseguem o DIP as companhias que ainda têm bens para dar em garantia. Só que a maior parte delas não têm mais o que dar. Além disso, é muito difícil o DIP sair só confiando na prioridade do crédito na hipótese de falência da empresa, como determina a lei.

Há o temor de que a garantia seja desconstituída por decisões futuras. Há vários fundos que atuam nisso. Mas sempre fica a dúvida sobre quando é seguro desembolsar o dinheiro: na decisão do juiz do caso, do Tribunal de Justiça, do STJ?

Mas há como resolver essas questões a tempo de lidar com essa crise?
Pelo menos dois dos pontos, precisam de mudança de lei. Mas a gente vê que o Congresso Nacional consegue ser rápido quando quer e se coordena. O ideal é que houvesse coordenação do poder executivo e que, dentro do pacote econômico para lidar com a crise, algumas iniciativas legislativas pudessem ser incluídas. Daria para resolver em espaço de meses e seria suficiente. Porque a crise não vai acontecer e durar só os próximos meses. Há um espaço de tempo necessário para empresas resolverem essas questões.

Antes de tudo isso acontecer já estávamos debatendo uma reforma da Lei de Falências, com o Projeto de Lei 10.220, de 2018. Ele poderia ser útil nesse momento?
Eu sou completamente contra essa ampla mudança da lei proposta nesse projeto. Ainda mais em um momento de crise. Isso já geraria instabilidade. O projeto atual, relatado pelo deputado federal Hugo Leal (PSD-RJ), mesmo com esforço de muitos envolvidos, está muito distante de atacar os problemas principais e, ao mesmo tempo, traria uma modificação grande no sistema.

Isso significa, então, que devemos esquecer o projeto atual?
Eu acho que sim. Pelo menos, nesse momento.

Nada do que você sugeriu está presente na atual proposta de revisão da lei?
Nada. Não resolve essas questões. Há até maior burocratização para obter financiamento durante o processo de recuperação judicial. Parece haver uma dificuldade de diálogo entre juristas e economistas.

 

São muito comuns aqui no Brasil as críticas aos bancos, que preferem alongar dívidas a cortar seu valor absoluto. Dar mais prazo será suficiente para essa crise?
É verdade, os bancos preferem alongar. Mas é esperado que a crise atual leve muitas companhias a uma situação de estrutura de capital inadequada. Isso acontece quando a dívida fica muito alta comparada à capacidade de gerar caixa e pagar os compromissos.

As companhias podem ser boas, ter uma operação eficiente, mas com resultado insuficiente para as dívidas. Nesse cenário, para ter solução definitiva e estruturante, é essencial diminuir a dívida. Não tem jeito. E só existem dois caminhos: aplicar um desconto sobre o valor, o chamado haircut, ou a conversão da dívida em capital, em participação acionária no negócio.

Essas são as duas grandes formas de lidar com problema de estrutura de capital. E as duas são difíceis de serem implementadas no Brasil.

Por que a resistência aqui a essas saídas?
Primeiramente, porque os bancos públicos, Caixa, Banco do Brasil e BNDES, têm grande relevância aqui no financiamento das empresas. Mas são resistentes a essas medidas por causa da atuação do TCU e outro órgãos que já mencionei. Isso é gravíssimo pela não compreensão de uma atividade de risco. Os bancos privados também precisarão aceitar.

É curioso que eles acabam vivendo essa situação quando organizam créditos para vender em suas carteiras. Nesses casos, aceitam descontos enormes. Mas só partem para isso quando os casos são gravíssimos e as companhias estão à beira da falência. Será preciso antecipar a tomada desse tipo de decisão.

Tem alguma contrapartida que poderia ser oferecida?
Tem sim, que é o outro lado dessa moeda. Deveria ser mais fácil para os credores afastar o empresário, o dono, e a administração quando não confiam para dar um novo rumo ao negócio. Estamos falando de salvar as empresas e não os empresários. Também poderia ser conferido algum benefício tributário aos bancos para corte de dívida e conversão em capital.

Poderia, por exemplo, ser dado um desconto no imposto sobre ganho de capital quando o banco fizesse a venda de participação em empresas fruto de conversão de dívida. Ou então, poderia ser permitido que ao menos a parcela do crédito que se transformasse em capital fosse lançada como perda, o que reduz o imposto.

Vê espaço para os bancos criarem braços de participação em empresas, assim com existe a BNDESPar, do BNDES, e a Bradespar, do Bradesco?
Com um amplo esforço de coordenação e vontade daria para fazer desse limão uma limonada. Poderia até mesmo ser desenvolvido um programa que estimulasse o desenvolvimento do mercado de capitais, com participação da própria Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da Bolsa [B3]. As empresas nas quais os bancos convertessem a dívida em capital poderiam se comprometer em listar ações no mercado.

Tudo isso poderia ajudar na melhoria da estrutura societária das companhias no Brasil, com desconcentração das enormes participações dos donos. No Brasil, só não teremos uma crise sistêmica porque os bancos dão pouco crédito e nosso sistema é muito mais concentrado. Os bancos estão sólidos e são poucos. Tudo isso tornaria a organização mais fácil e poderia ser usado ao nosso favor nesse momento.

É comum também ouvirmos que o empresário brasileiro adia o momento de admitir que está com problemas. Qual conselho daria às companhias?
As empresas quebram por falta de caixa e não por excesso de dívida. A minha recomendação é que elas busquem preservar o caixa, em primeiro lugar, e a operação, em segundo lugar. A dívida financeira deve ser colocada em terceiro lugar. Quando não tem caixa, a companhia não consegue operar e perde ainda mais valor. Muitas, no afã de não entrar em default com os bancos, deixam de pagar fornecedores e trabalhadores.

É uma decisão equivocada porque prejudica a negócio. O credor financeiro tem a maior capacidade de aguentar a situação e, a rigor, quando a empresa protege a operação também preserva a perspectiva de solução futura para as dívidas. O banco sempre vai exigir o pagamento, vai ameaçar e endurecer. Mas, em um segundo momento, pode inclusive entender a opção da companhia.

Quem tem a visão completa do negócio é o empresário. É uma decisão dura, fácil de falar, difícil de fazer na prática. Mas quem consegue sai muito melhor das situações do que aqueles que ficam apagando incêndio e pagando dívidas enquanto prejudicam a operação.

Estão surgindo, no legislativo, inciativas de emergência para mudar o ambiente de recuperação e falências. Elas são boas?
As discussões com foco nesse momento me parecem inadequadas. Algumas trazem sugestões que não levam a soluções e, além disso, representam interferências excessivas, como moratórias generalizadas. Iniciativas que incentivam descumprimento de contratos, de forma generalizada, não trazem benefício. Depois, para recriar uma situação em que as pessoas voltem a respeitar contrato será difícil. Todas as empresas são credoras e devedoras ao mesmo tempo. Ninguém é só uma coisa.

Mas e o projeto, também aos cuidados do deputado Hugo Leal (PSD-RJ), pelo qual as companhias poderiam atualizar seus planos de recuperação?
Existe boa-fé de quem está pensando nessas medidas, mas, a meu ver, falta uma análise mais cuidadosa dos efeitos econômicos. Essa proposta, pela qual as empresas podem revisar os planos já aprovados e incluir créditos posteriores à recuperação, diminui ainda mais a possibilidade de as companhias conseguirem novos créditos. Então, ao invés de ajudar, prejudica.

Eu já vi dois potenciais financiadores desistirem de operações que estavam em análise com receio de que isso seja aprovado. Também já recebi consultadas preocupadas dos raros investidores que forneceram DIP.

Para quem decide. Por quem decide.

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