A Amaro amargou: como a varejista inovadora se perdeu no caminho
Startup de moda quer renegociar dívidas de mais de R$ 240 milhões em plano de recuperação extrajudicial
Karina Souza
Repórter Exame IN
Publicado em 29 de março de 2023 às 19:33.
Última atualização em 29 de março de 2023 às 19:39.
No meio do caminho da Amaro tinha uma pedra. Depois mais uma. E outra. Até que a coisa toda virou uma avalanche. Selic, Shein, inflação, restrições de crédito bancário pós-Americanas e um aporte fechado (que não veio). É o resumo do que fez a varejista de moda, que faturou (bruto) R$ 367,8 milhões no ano passado e teve prejuízo líquido de R$ 102,8 milhões, entrar com um pedido de recuperação extrajudicial recentemente. Na petição, já acatada pela justiça, a companhia afirma ter dívidas financeiras de R$ 151,7 milhões com bancos — sendo que só para este ano estão registrados vencimentos de R$ 124 milhões — somados a outros R$ 92,7 milhões em compromissos com fornecedores.
A proposta da empresa prevê o pagamento integral das dívidas, em duas modalidades. Na primeira, 85% créditos mencionados, corrigidos pela variação do CDI, pagos em uma única parcela daqui a cinco anos. Na segunda etapa, está o pagamento de valor equivalente aos 15% restantes, corrigidos pela variação do CDI, mas com uma carência de 18 meses e em 42 parcelas.
De largada, a retailtech já conseguiu a adesão correspondente a 41,63% do montante devido aos credores (mais do que o mínimo legal necessário, de 33%), formado principalmente por bancos. Agora, a empresa tem 90 dias para conseguir a aprovação dos 8,3% restantes para que o processo possa continuar, uma vez que a lei exige um mínimo de 50% para casos de recuperação extrajudicial.
As chances de avançar são altas, na visão de uma fonte consultada pelo EXAME IN. Dois caminhos são visíveis a partir de agora para conseguir o restante: ir atrás de bancos que eventualmente não tenham entrado na primeira vez ou conseguir uma grande quantidade de fornecedores. Independentemente de qual deles seja tomado, a partir dos 50%, a visão é de que a companhia caminha para um cenário de estabilidade. Caso isso se confirme, no futuro, uma possível venda do ativo não está descartada.
É uma mudança e tanto. Em 2021, as conversas giravam em torno de um possível IPO para a empresa e dos avanços no marketplace, que havia chegado a 500 marcas, em uma aposta que reforçava o público-alvo ao qual havia se dedicado até então. Marcas de prestígio como Lancôme, Kérastase, L'Oreal e Shiseido haviam encontrado, na empresa de varejo, mais um canal de distribuição.
Durante todos esses momentos, estava sempre presente no discurso de Dominique Oliver, co-fundador e CEO da Amaro, o diferencial da empresa como o fato de ser uma nativa digital, a curadoria e o apetite "de startup" para crescer. Sem falar as cifras absolutas, o executivo havia afirmado à mídia que a companhia tinha crescido 25% em 2020, outros 50% em 2021 e esperava 45% de aumento em 2022. Não dá para ter uma ideia do quanto da projeção se cumpriu, uma vez que a petição não traz números relacionados a anos anteriores.
Por outro lado, o documento aponta, de forma clara, como a companhia foi afetada pelo cenário macroeconômico da pandemia para cá, especialmente com o aumento dos aluguéis — apesar da pegada digital, a Amaro tem lojas físicas desde 2015, que somam, hoje, 20 guide shops.
"Muitos contratos sofreram ajustes de mais de 50% entre 2019 e 2022, sendo que o patamar de consumo aumentou de maneira muito menor no mesmo período", diz a petição, que ainda cita dados da Pesquisa Mensal do Comércio, realizada pelo IBGE. A queda no volume de vendas de vestuário no último trimestre de 2022 foi consecutiva, mês a mês: -14,8% em outubro, -16,1% em novembro e -11,9% em dezembro.
Toda essa situação evidencia, mais uma vez, as dificuldades pelas quais o varejo de moda passa. No limite, a Marisa, há pouco mais de um mês, teve recursos de controladores injetados na empresa para renegociar dívidas com bancos. Os débitos totais somavam R$ 788 milhões até o fim de setembro (ainda não estão disponíveis as informações relacionadas ao ano todo, serão divulgadas nesta sexta-feira, 31).
Até para quem vai bem, as perspectivas são cuidadosas. Um relatório publicado pelo Bank of America nesta semana cortou o preço-alvo da Renner de R$ 25 para R$ 22. O corte tem como motivo principal a expectativa de que o clima mais quente e seco limite a demanda de outono e inverno, além de levar em consideração que a empresa saiu de 2022 com estoques mais pesados. “Vendas mais lentas, combinadas com condições de crédito mais restritas ao consumidor também devem resultar em mais perdas em serviços financeiros”, escrevem os analistas Robert Aguilar, Melissa Byun, Vinicius Pretto e Wellington Santana. Apenas para efeito de comparação, no ano passado, a receita líquida de vendas da empresa foi dez vezes maior do que a da Amaro, faturando R$ 3,5 bilhões.
A ameaça Shein
Entre os argumentos levados pela Amaro à Justiça, a empresa ainda cita o aumento da concorrência com plataformas chinesas de comércio eletrônico como um agravante aos desafios financeiros. "Entrada de grandes players asiáticos no mercado de moda online brasileira que, em razão de vantagens tributárias, conseguem ofertar os produtos com preços extremamente menores que os das marcas nacionais e inflacionar os canais de mídia online como Google e Facebook, tornando muito caro para a Requerente fazer propaganda para obter novos clientes", diz a petição. Expectativas de analistas de mercado apontam que a Shein, principal concorrente em nicho da Amaro, deve faturar R$ 16 bilhões neste ano.
O posicionamento contrasta com o que Dominique Oliver, CEO da Amaro, afirmou em entrevistas anteriores ao EXAME IN. O discurso, no último ano, era de que as empresas atingiam públicos-alvo diferentes e que, quem compra na Amaro, por ter maior poder aquisitivo, não se sentiria tão motivado a olhar para a Shein. O tempo mostrou que, em tempos de bolso mais magro, a plataforma tem adesão de consumidoras de diversas classes sociais -- e não só à C e D, como se acreditava antes.
A Amaro não é a única a sentir esse efeito. Diferentes companhias têm se queixado da forma como empresas como essa operam no Brasil, encarando a situação como concorrência desleal. A discussão ganhou palco hoje, inclusive, no South Summit Brazil, evento de inovação e empreendedorismo realizado em Porto Alegre. Em um painel realizado ao longo do dia, Luiza Helena Trajano adiantou que varejistas brasileiros devem começar uma campanha de marketing em breve para "conscientizar os consumidores sobre a importância de termos condições iguais de concorrência" com os chineses.
Permanece a dúvida sobre quando e como essas questões serão totalmente resolvidas por aqui. É uma pedra a mais para a 'avalanche' (ou 'tempestade perfeita') enfrentada pelo setor. A Amaro, com a recuperação extrajudicial, ensaia o primeiro passo para sair dela.
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Karina Souza
Repórter Exame INFormada pela Universidade Anhembi Morumbi e pós-graduada pela Saint Paul, é repórter do Exame IN desde abril de 2022 e está na Exame desde 2020. Antes disso, passou por grandes agências de comunicação.