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Castro Neves e o novo tripé do 3G: crescimento, propósito e eficiência

O conselheiro da Kraft Heinz e do Burger King falou ao EXAME IN sobre a visão de investimentos que foi reforçada pela pandemia

João Castro Neves: precisamos encontrar os unicórnios dentro das nossas empresas (The Kraft Heinz Co/Divulgação)
João Castro Neves: precisamos encontrar os unicórnios dentro das nossas empresas (The Kraft Heinz Co/Divulgação)
LA

Lucas Amorim

17 de março de 2021 às 06:51

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João Castro Neves: precisamos encontrar os unicórnios dentro das nossas empresas (Kraft Heinz/Divulgação)

Aos 53 anos, João Castro Neves divide seus dias entre reescrever o passado e olhar o futuro. Executivo do fundo de investimentos 3G Capital, do trio Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, é conselheiro de dois grandes negócios — a empresa de alimentos Kraft Heinz e a cadeia de restaurantes RBI, dona do Burger King. Juntas, essas companhias de marcas para lá de tradicionais e globais movimentaram aproximadamente US$ 60 bilhões em vendas no ano passado, algo como quase R$ 350 bilhões em comida.

Além disso, Castro Neves é um grande especialista em bebidas, especialmente em cerveja, após passar mais de quinze anos na AB Inbev. Em todas essas frentes, aplicou e ainda aplica uma cultura baseada em meritocracia e eficiência operacional. Mas sabe que precisa equilibrar essas fortalezas com um foco cada vez maior no crescimento. E que, para tanto, é preciso apresentar um propósito.

É onde entra seu olhar para o futuro. O 3G, e Castro Neves, em particular, mapeiam há cinco anos o mercado em busca de empresas em franca expansão para um fundo de até US$15 bilhões — e também para plugar em seus negócios tradicionais. A conversa a seguir complementa uma dupla de entrevistas que começou nesta terça-feira com Miguel Patricio, presidente global da Kraft Heinz. Para Patricio e para Castro Neves, crescimento é palavra de ordem. "Um dólar de crescimento hoje vale mais do que um dólar de ebitda. O peso para o crescimento é maior que o peso do lucro", resume ele, que já liderou a Ambev e a AB Inbev.

 

Você é conselheiro no Burger King e Kraft Heinz e tem muito tempo de experiência nos mercados de bebidas. No que a pandemia mudou e no que ela acelerou a tese de investimentos do 3G?

A pandemia mudou a forma da gente operar negócio. A gente não acreditava que era possível operar a distância. A gente talvez daqui a três anos olhe para trás e mude de opinião. Eu não acredito que no longo prazo vamos viver sem ir ao mercado, sem ver as coisas acontecer, ou sem conhecer as pessoas. Ontem, estava fazendo um call com chineses para fechar um negócio —  uns caras que não conhecemos, não apertamos a mão, não olhamos no olho. Mas, feita essa ressalva, continuo acreditando no que sempre me moveu:  em cultura de dono, meritocracia, partnership. Acredito em trabalhar com pessoas em que você vê os mesmos valores e a mesma ambição. As pessoas têm uma percepção de arrogância na Ambev e no 3G. Acho que é bem o contrário, são pessoas muito pés no chão, que querem aprender todos os dias, com acertos e erros.

Mas nos mercados de comida e bebida, especificamente, a visão de investimento de anos atrás ainda vale?

Nos Estados Unidos, 15 a 20 anos atrás, 60 e poucos por cento das ocasiões de consumo eram dentro de casa. Nos últimos anos, as pessoas foram comendo mais fora de casa, com menos vida em família, e a alimentação fora do lar passou a ser 50% das ocasiões de consumo. Ao longo dos últimos 15 anos isso era vento contra a Kraft Heinz, mas vento a favor para Burger King e AB InBev. Daí, a pandemia inverteu isso, só que em termos. Porque 70% das vendas do Burger King já eram no drive-thru. Esse percentual foi a 90% na pandemia, e demandou algumas adaptações em serviços como o delivery. Nas cervejas, onde o bar era relevante, a demanda despencou. Todo mundo teve que se adequar. Na Kraft Heinz, as mudanças que já vínhamos fazendo desde 2019 na cadeia de suprimentos nos prepararam para ter nosso melhor ano da história. Quanto mais você trabalha, mais sorte você tem. Na ABI, precisamos usar tecnologia para permitir às pessoas fazer o maior número de pedidos online. No Burger King, também vínhamos investindo muito em tecnologia.

E o que acontece para frente?

Estou muito mais envolvido em comida. Em março do ano passado, ficou a impressão de que em agosto a vida voltaria ao normal. Hoje, ninguém mais acredita que a vida voltará totalmente ao normal. Eu estou trabalhando de casa, você também. Quando a gente voltar, acho que não será cinco vezes por semana, das sete às sete. Iremos de novo quatro vezes por ano à China? Acho que não. Há uma nova eficiência na forma de trabalhar que não sabíamos que existia.

E vocês atuam em setores conhecidos por demandar mão na massa e pé na estrada, né?

Exatamente. Os 38 mil funcionários que temos, metade nas 80 fábricas no mundo são heróis. Estão há 365 dias encarando isso em primeira mão. Melhoramos os protocolos para aumentar a segurança, mas as pessoas estão lá. Vendas é similar: sua equipe está lá fora. Nós tínhamos sempre as pessoas do escritório nos mercados, conhecendo as pessoas. Mas se íamos a Bentonville (sede do Walmart) para uma reunião de uma hora que exigia dois dias de deslocamentos, talvez não iremos mais todo mês. Achamos que voltaríamos muito rápido para a vida que tínhamos antes. Mas acho que a aterrissagem será lenta, e num local diferente daqueles de onde partimos.

O investimento em eficiência, sempre um ponto forte da cultura 3G, foi uma fortaleza na pandemia, certo? Quem era mais eficiente se deu melhor. Por outro lado, me passa a impressão de que a pandemia foi um exercício de humildade extremo: vocês estavam acostumados a liderar os mercados, a forma como as pessoas consomem, o marketing, o varejo. De repente, isso mudou. A pandemia mostrou que nem sempre dá para liderar e, às vezes, é preciso se adaptar?

Estou no ecossistema de 3G há 25 anos. Os primeiros dez anos foram a fase de desenvolver pessoas, uma máquina de vendas e sua eficiência — por uma questão de necessidade de sobreviver. A gente tinha uma crise a cada três anos no Brasil e, a cada ano e meio, em países como a Argentina. Ou você era eficiente ou morria. Não fomos à eficiência por esporte. Depois, veio uma segunda fase, quando começamos a ir para mercados mais maduros. A fase de entender o consumidor. Não é que não pensávamos no consumidor 30 anos atrás. Mas, antes, a máquina de vendas estava acima: no mercado. Nos  emergentes, a força de vendas fala mais alto. Nos desenvolvidos, é o contrário. A execução no ponto de venda é importante, mas é o consumidor que manda. Esse aprendizado, pelo menos pra mim, de que o consumidor está no centro, veio nos últimos cinco anos. Acelerou a relevância de consumer insights. Daí, a pandemia acelerou exatamente essa noção no setor de consumo. Só que, para o 3G, esse entendimento veio muito mais na mudança de emergentes para desenvolvidos, tempos atrás, do que agora durante a pandemia.

Essa divisão entre emergentes e desenvolvidos ainda existe? O consumo em países como o Brasil também está cada dia mais sofisticado.

Há 25 anos, a gente brincava que vinha para os Estados Unidos, copiava um montão de coisa, e levava sete anos para chegar ao Brasil. Essa mesma viagem, dez anos depois, já levava três anos. Agora, é quase automático, com as redes sociais. A velocidade de mudança é mais rápida. Mas aí, na diferenciação, entram algumas outras coisas, como o poder de consumo. O mercado emergente ainda tem consumidores de menor renda per capita. No Brasil, o consumo fora de casa ainda é muito maior. Quanto mais fora de casa o consumo, mais relevante a máquina de vendas. O que mudou é que hoje há muito mais tecnologia impactando as vendas do que antigamente. Só que a falta de renda ainda faz com que o consumidor leve mais em conta o preço do que nos mercados maduros. É relevante em todo lugar, mas é mais nos emergentes.

Das mudanças no 3G que você comentou, essa preocupação com o consumidor é uma delas. E sobre gente, vocês sempre pregaram meritocracia. O ambiente que privilegia eficiência segue sendo relevante. Mas, em um determinado momento, os pilares de vocês passaram a ser muito atacados.  Só que na pandemia, eles se mostraram muito relevantes de novo. Onde vocês precisaram adaptar a cultura, e onde mantiveram?

O playbook no mundo dos negócios foi evoluindo. Minha memória dos primeiros dez anos é que tudo era muito focado em gente e eficiência. Depois, o foco foi para o consumidor. E fomos aprendendo como aplicar essas lições no Brasil e na América Latina, depois na Bélgica, na China, na Rússia, no Canadá. O playbook evoluiu. A gente foi muito para eficiência, e agora a volta do pêndulo é crescimento — com eficiência. Perdemos uns anos não falando de forma organizada sobre crescimento. Um dólar de crescimento hoje vale mais do que um dólar de ebitda. O peso para o crescimento é maior que o peso do lucro. É só você ver o múltiplo das empresas de crescimento. A humildade de aprender sempre me atraiu aqui. Não somos donos da verdade. Quando você acha que caminha na água é quando você vai afundar. Crescimento convive com eficiência. A Amazon é o melhor exemplo: sempre se concentrou em resolver os dramas do consumidor, em eficiência, mas também é obcecada com crescimento.

E isso muda na forma como atrair e motivar as pessoas?

Você tem que mostrar que evoluiu. Até a forma de se comunicar mudou. Na Kraft Heinz, encontramos um novo propósito da companhia. Lá, falamos em fazer a vida deliciosa. Há 30 anos, se eu fosse falar de propósito, iam me dizer para ir vender. Agora, primeiro vem o propósito, depois a visão e a estratégia. Ontem, comunicamos a 5 mil pessoas missão, estratégia e valores, numa convenção. Falamos de. consumidor, diversidade, eficiência, futuro e crescimento. Se você não muda, não vai continuar atraindo os melhores talentos.

A própria tarefa de definir quem são os melhores talentos mudou, não? Antes parece que bastava trazer os melhores das melhores escolas. Agora, está mais complicado.

Sempre teve o negócio da escola, mas o que marca mesmo é a vontade de criar e de deixar um legado. Essa parte continua sendo uma característica que procuramos nas pessoas. A diferença é que a gente achava que essas pessoas eram mais parecidas. Hoje vemos que essas pessoas não são necessariamente parecidas. A discussão de propósito existe no jovem mais técnico e também no mais faminto, que quer crescer e construir carreira. Nós adequamos a linguagem, mas vamos continuar ressoando para pessoas que veem oportunidade de crescer e de ser relevantes mais cedo. A mesa de pingue pongue não resolve o problema. Se você tem uma mesa, mas não explica como pode fazer o mundo melhor e como sua empresa ajuda na jornada, você não atrai.

Como você tem dividido seu tempo entre grandes empresas e busca por novos negócios, para plugar nas empresas tradicionais, mas também para dar uma nova cara ao 3G nos próximos cinco ou dez anos?

A 3G tem um trabalho de longo prazo, uma crença de que todos somos donos. No caso específico da Kraft Heinz, temos um time diverso e conseguimos mostrar que nossa visão de crescimento combina o orgânico com a saída de ativos commoditizados e a entrada em novos segmentos, como plant based. Há 1,5 ano diziam que seria impossível atrair talento e crescer de novo. Adoramos quando as pessoas dizem isso. O conselho tem um papel relevante, mirando o longo prazo. Quando eu entrei na empresa todos diziam que o Marcel (Telles) ia vender a Brahma. Isso era em 1995, 96. Estamos lá até hoje. Estamos melhorando nossa forma de operar, mantendo a cultura.

E onde as startups entram nos próximos anos?

De duas formas. Temos um fundo que vamos investir numa nova plataforma, mirando longo prazo, sonho, gente e cultura, no qual o crescimento será chave. Mas precisamos da mentalidade de startups também nas nossas empresas. Na ABI, compramos muitas cervejarias artesanais e seus fundadores vieram junto, e precisamos encontrar caminhos para eles continuarem crescendo. Na Kraft, também temos o desafio de encontrar unicórnios dentro da empresa, ou comprar no mercado, e depois dar espaço para esses negócios crescerem.

Para quem decide. Por quem decide.

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