Recompra da Hering abre debate: quais os limites dessa estratégia?
Recompra é ferramenta típica de defesa de oferta hostil, mas bom uso depende de empresa e mercado terem acesso às mesmas informações
Publicado em 12 de maio de 2021 às 09:24.
Última atualização em 12 de maio de 2021 às 11:22.
A Hering não queria mesmo uma combinação de negócios com a Arezzo. Talvez, com ninguém, até vir a proposta sedutora do Grupo Soma, que saiu vencedora e chacoalhou ambas as companhias. A varejista têxtil tinha um programa de recompra de ações aberto em agosto do ano passado e nem piscou para usá-lo como forma de se defender de uma esperada oferta hostil da companhia conduzida por Alexandre Birman.
Esse é o argumento que pessoas próximas apresentam para o fato de a empresa ter aplicado R$ 61 milhões, 13% do caixa disponível, para recomprar ações de sua própria emissão enquanto avaliava possíveis fusões.
Em 7 de abril, a Arezzo entregou uma oferta de R$ 3,4 bilhões pela Hering ao presidente da companhia, acionista e conselheiro Fabio Hering. Em 12 de abril, depois de passar janeiro, fevereiro e março sem fazer nenhuma compra na bolsa, a companhia virou a máquina contra a transação — ou em busca de um preço maior. A decisão não deixa dúvida que os movimentos estão relacionados e não há quem aposte em insider. Portanto, é dado como certo que o objetivo da empresa era mesmo se defender ou atuar para valorizar seu negócio.
Até esse momento, dia 12, ninguém no mercado conhecia o assunto. A oferta só se tornou pública no dia 14, quando a Hering divulgou um fato relevante no qual recusava a proposta, por julgá-la aquém do razoável, e informou que defenderia seus interesses e de seus acionistas e seguiria com a recompra de ações.
Na época, ninguém no mercado pescou. Agora, ficou claro. A empresa saiu comprando suas ações. Estratégia típica, de fato, de situações de defesa contra ataques hostis. Até aquele momento, ainda não era. Birman jurava que queria diálogo e propunha uma união. Mas a Hering farejava que podia acordar com uma oferta pública de aquisição (OPA) como espada.
A proteção foi usada porque, na bolsa, a empresa estava avaliada em R$ 2,7 bilhões — pouco mais da metade do que já havia sido avaliada pelos investidores. Enfrentava o custo da pandemia, que encolheu a receita em 30% com as lojas fechadas, de um programa de digitalização que ainda não estava maduro (de quem estava?) e também de anos de falta de crescimento. A empresa não trazia um projeto de expansão que animasse fazia anos — e isso não tinha nada a ver com a pandemia.
Ocorreu que, muito rapidamente, o Grupo Soma se mobilizou e fez um lance que ficaria complicado demais para a Hering recusar: avaliou a empresa em R$ 5,1 bilhões, manteve os planos de sucessão da empresa e deu a posição de chairman para Fabio Hering.
Mas, enquanto isso, entre os dias 12 e 22 de abril, a tesouraria da Hering comprou 3.000.000 de ações – o maior movimento desde que havia lançado o programa em agosto de 2020. O programa tinha como alvo 3,99% do capital em circulação. O máximo permite pela regra é 10%.
A divulgação do saldo dessas recompras na segunda-feira à noite, dia 10, gerou um tremendo bafafá no mercado. Só se falava disso. Mas, o limite entre uma conduta trapalhada ou uma tentativa de defesa só mesmo a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) vai poder avaliar — e já está analisando, desde o dia 19.
Após consultar diversos advogados experientes no tema e alguns ex-xerifes, o EXAME IN ouviu que tudo depende da seguinte resposta: o mercado sabia o tempo todo de tudo que a empresa sabia? Essa é a grande questão. A Hering e o Grupo Soma apresentaram a operação como um namoro antigo, mas no qual o pedido de noivado só foi feito na quinta-feira à noite (na verdade, o aviso de que haveria um), ou seja, último dia de atividade da tesouraria no mercado.
Não foi um nem foram dois advogados em direito societário que disseram: o melhor a fazer nesses momentos é tornar tudo público e rápido. Mesmo se a ideia é recusar. Um deles comentou ainda que, se a ideia era usar a recompra para se defender de uma possível oferta hostil, o ideal teria sido primeiro divulgar a proposta, depois a recusa e, junto com ela, uma decisão do conselho de administração de ampliar o programa de recompra, que era de 4% do capital para o limite de 10%.
Num mundo mais habituado a essas situações, junto ainda deveria vir um comunicado da companhia sobre o desenvolvimento de um novo plano estratégico para acelerar os negócios. A Hering ensaiou tudo isso, mas trouxe uma recompra que virou polêmica e um plano que sempre apresentava aos seus investidores — incluindo fundos badalados que lá estiveram por anos, apaixonados pela oportunidade que viam com marca tão forte e tradicional, com seus 140 anos de história.
Para o mercado vai ficar o debate sobre essas situações e seus limites. A Instrução 10 da CVM, que trata do assunto, deixa muito espaço e muitas dúvidas. Por ela, somente se existisse uma oferta pública já lançada, a recompra obrigatoriamente deveria ser suspensa. O restante fica para o bom-senso ou para o conservadorismo, pela falta de histórico no país — junto com o eterno dilema sobre o que é uma oferta lançada, é sua intenção declarada ou o edital do leilão em bolsa publicado. E se a oferta é combinação, portanto, incorporação?
Mas, se a Instrução 10 da CVM traz dúvidas, a Instrução 358 traz clareza. "Antes da divulgação ao mercado de ato ou fato relevante ocorrido nos negócios da companhia, é vedada a negociação com valores mobiliários de sua emissão, ou a eles referenciados, pela própria companhia aberta".
De muito claro, ficou o bastidor de que a Hering não queria mesmo facilitar para o preço oferecido pelo Birman. O investidor teve, então, o negócio com promessa de crescimento que tanto queria. Agora, tudo depende da execução combinada de Soma e Hering.
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