Na proposta de saída da Kora do Novo Mercado, HIG sofre um revés
B3 viu conflito de interesses em médicos fundadores que iam votar em assembleia para saída do segmento de governança; operação vem opondo controlador e minoritários, que alegavam 'jogo de cartas marcadas'
Natalia Viri
Editora do EXAME IN
Publicado em 4 de junho de 2024 às 12:43.
Última atualização em 4 de junho de 2024 às 12:44.
A proposta de saída da Kora Saúde do Novo Mercado está colocando controladores e minoritários em rota de colisão.
Em decisão proferida ontem, a B3 decidiu que médicos fundadores da companhia de hospitais que fazem parte do acordo de acionistas não poderão votar na assembleia que vai decidir sobre a dispensa de realização de uma oferta para que a empresa saia do mais elevado segmento de governança para companhias listadas.
A bolsa, que responde pelas regras do Novo Mercado, acolheu um pedido feito por minoritários, que apontavam um conflito de interesses da operação. Um conjunto de gestoras locais que tem 4% do capital vem questionando também o formato da proposta e o preço oferecido pelo fundo de private equity HIG, que é o controlador da Kora. Entre os descontentes, estão nomes como Leblon Equities, Polo Capital, Iridum e Forthsail.
No começo de maio, o HIG, que tem 69% da Kora, anunciou sua intenção de tirar a companhia do Novo Mercado, alegando que precisa de mais flexibilidade para fazer transações que possam ajudar a reduzir sua queima de caixa e endividamento.
Para isso, convocou uma assembleia marcada para amanhã para pedir a dispensa da realização de uma oferta pública de aquisição (OPA), mecanismo previsto pelo regulamento do segmento de listagem para dar uma porta de saída para os investidores que não concordam com a retirada de direitos – entre eles, a existência apenas de ações com direito a voto.
A primeira distorção acontece logo na largada, apontam os minoritários: no mesmo documento em que pediu a dispensa da OPA, os controladores já deixaram claro que pretendem realizar uma outra em trinta dias depois da aprovação da saída do Novo Mercado, com preço “máximo” de R$ 0,87 por ação.
A oferta de compra seria para converter o registro de companhia aberta de classe A, que permite a negociação de ações, para classe B, que permite apenas a emissão de dívida.
O preço é o equivalente ao preço do pregão imediatamente anterior ao anúncio da intenção de saída do Novo Mercado. Somente neste ano, as ações da Kora Saúde acumulam queda de 48%. Em 24 meses, o recuo é de 74%.
“Depois da saída do Novo Mercado, os acionistas já vão estar com direitos reduzidos, o que dá espaço para conseguir um preço mais baixo”, diz um gestor. Em um mês, desde o anúncio da intenção de sair do segmento de listagem, as ações caem 23%.
Conflito de interesses
Um conflito de interesses ainda mais patente estava em quem poderia votar na assembleia, marcada inicialmente para amanhâ. Pelo regulamento do Novo Mercado, a dispensa de oferta no caso da saída do nível de governança precisa ser votada apenas por membros do chamado free-float, que inclui apenas as ações em circulação, excluindo controladores e pessoas vinculadas a ele.
No caso da Kora, o free-float é pequeno, de apenas 20% do capital – no limite mínimo do que é permitido pelo segmento de listagem da B3. A grande questão é que dois acionistas fundadores do hospital Meridional, um dos principais ativos da Kora, estavam enquadrados como free-float.
Um deles, Bruno Machado, tem 7% do capital. Outro, Ivan Lima, também tem ações, ainda que sua participação exata não fique clara nos documentos regulatórios da companhia. Na avaliação dos minoritários, a participação é de cerca de 3%. Ambos são signatários do acordo de acionistas com o HIG e Antonio Benjamin Neto, outro fundador da Kora, que tem 7,7% do capital e atua como CEO.
Com isso, na prática, apontam os minoritários, a proposta de dispensa de OPA já nascia virtualmente aprovada. Ainda segundo o regulamento do Novo Mercado, a assembleia que decide sobre a dispensa de oferta precisa ter voto de maioria simples dos presentes.
Em primeira convocação, esse quórum é de dois terços do capital em circulação. Caso o patamar não seja atingido, em segunda convocação, qualquer quórum permite a instalação.
“Os fundadores votam em conjunto com os controladores e tem praticamente metade do free-float. Com o voto deles, a operação já nasce aprovada”, aponta um minoritário. Em fato relevante publicado hoje pela manhã, a Kora afirmou que a B3 considerou tanto Bruno quanto Ivan como "pessoas vinculadas" e que, portanto, são impedidas de votar. Com isso, a assembleia não deve atingir o quórum mínimo de 66% do float. Tirando os médicos fundadores, apenas 35% das ações em circulação tinham se cadastrado para participar da assembleia.
A expectativa é que haja uma segunda convocação, ainda sem data prevista. Sem o voto dos fundadores, é possível que a operação seja bloqueada – o que dá mais poder de barganha para os minoritários e deve, no mínimo, fazê-los sentar à mesa de negociação com o HIG. Até agora, apontam eles, o debate estava interditado. Os gestores descontentes tem quase metade do float excluindo a participação de Bruno e Ivan.
O reconhecimento da B3 dos médicos como pessoas vinculadas coloca em xeque o float mínimo que a Kora tem apresentado desde o IPO. Desde a oferta, há três anos, eles aparecem classificados como free-float no formulário de referência, espécie de raio-X corporativo arquivado anualmente pelas companhias abertas. Feita quase no fim da janela de ofertas que se encerrou no fim de 2021, a operação saiu chorado e a empresa teve dificuldade de conseguir o percentual de ações em circulação necessária para se enquadrar no Novo Mercado.
A avaliação é que a inclusão de Bruno e Ivan – que não exercem funções administrativas na companhia – aconteceu para conseguir avançar com a oferta.
Com a tese de consolidação do setor de hospitais, a expectativa da Kora era de que seria possível realizar novas operações para levantar capital via follow-on para financiar sua expansão, aumentando o float.
Os juros dispararam e o setor de saúde se viu desafiado pela disparada da sinistralidade das operadoras, que acabaram transferindo a pressão para os prestadores de serviços como hospitais. O resultado: queima de caixa maior que o esperado e endividamento elevado.
Com o balanço da Kora pressionado, os controladores alegam que precisam de outras alternativas para financiamento: seja a emissão de ações preferenciais, sem direito a voto, seja a combinação de negócios com alguma empresa que não está no Novo Mercado.
As empresas listadas no segmento podem comprar qualquer outro tipo de companhia, mas só podem ser incorporadas por outras empresas listadas no segmento de listagem especial.
Testando a fronteira da governança
É a primeira vez que um controlador pede a saída do Novo Mercado com a dispensa de realização de oferta. No fim do ano passado, a Zamp, controladora do Burger King e do Popeye’s, também saiu do Novo Mercado com dispensa de oferta, mas o pedido foi feito pelo fundo árabe Mubadala, que fazia uma investida pelo controle da companhia, mas ainda era considerado free-float.
Diferentemente da Kora, a Zamp era uma corporation e o Mubalada votou como parte do grupo de ações em circulação.
Os minoritários de Kora argumentam que a companhia poderia recorrer a um aumento de capital convocando também os minoritários a acompanharem. “É uma possibilidade. Não sei a que preço isso seria feito, mas há um preço justo. A questão é que o HIG provavelmente teria que dar desconto a preço de tela e seria diluído”, diz um dos gestores que questiona a operação.
Apesar da pressão sobre o balanço, a empresa vem azeitando suas operações e conseguindo reduzir a queima caixa. “Agora que está a empresa está melhorando, eles estão propondo sair com a empresa na mínima histórica.”
Além de discordarem dos méritos de uma OPA após a saída do Novo Mercado, a “garantia” de que ela acontecerá nos trinta dias seguintes à saída do Novo Mercado também é questionada.
“Quem garante que os acionistas fundadores que estão sendo considerados float vão aprovar essa operação?”, pergunta um dos acionistas.
Além disso, o fato de ter um preço mínimo, de R$ 0,87, é pouco usual. Nas OPAs feitas para saída do Novo Mercado, é preciso ter um laudo feito por instituição independente que avalie a companhia – e que pode ser questionado, caso os minoritários não concordem.
No fato relevante do começo de maio, a Kora disse que já pediu um laudo, mas cravou que o preço máximo que vai topar é de R$ 0,87 por ação – sem dar um preço mínimo. Uma das condições suspensivas da operação, segundo as notas de rodapé do documento, seria se a ação caísse mais de 15% em relação à data do anúncio. Até o fechamento de ontem, elas já caíam mais de 20%.
Pela Lei das S.A.s, uma OPA para cancelamento de registro de companhia aberta também precisa ter um laudo para amparar o valor. A legislação, contudo, não prevê uma OPA de conversão de categoria A para categoria B, o que pode abrir margem para questionamentos.
“Na prática, vira um squeeze de mandato. Uma pressão para os minoritários que não podem ter títulos além de ações saírem a qualquer preço”, diz um deles.
Na base de Kora, nenhum dos acionistas tem uma posição muito relevante, o que diminui os incentivos financeiros para um questionamento mais contundente, que demanda a contratação de advogados e um processo que costuma se alongar.
“Mas a HIG tem outros ativos que pretendem levar a mercado via IPO. Com certeza, esse risco de governança vai estar na mesa”, diz. A fabricante de louças Nadir Figueiredo é uma das empresas do portfólio que está na fila para ir a mercado.
A gestora de private equity também é controladora da Desktop, de banda larga, e da Eletromídia, de mídia out of home – empresa na qual já foi alvo de questionamentos de minoritários, por conta de uma venda feita para a Globo por um valor acima do que estava a mercado.
A valores de tela de hoje, para fechar o capital da Kora, o HIG precisaria gastar algo como R$ 100 milhões para comprar os 20% do capital restante. Tirando a fatia de cerca de 10% dos acionistas fundadores, esse valor cai para R$ 50 milhões – menos de US$ 10 milhões.
A Kora abriu capital avaliada a R$ 7,20 por ação e chegou a valer mais de R$ 6 bilhões na Bolsa no pico, logo após a oferta.
Procurada, a HIG não se pronunciou até o momento.
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Natalia Viri
Editora do EXAME INJornalista com mais de 15 anos de experiência na cobertura de negócios e finanças. Passou pelas redações de Valor, Veja e Brazil Journal e foi cofundadora do Reset, um portal dedicado a ESG e à nova economia.