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Corrupção

"Apagão da caneta faz vítimas todos os dias no Brasil"

Sócio-gestor da Farallon aponta em artigo o pior dos dois mundos no país: impunidade criminal para desvios e excessos de sanções, que paralisam decisões

Daniel Goldberg espera que decisão do STF inaugure era de maior maturidade no sistema de controle de atos da administração pública (Germano Lüders/Exame)
Daniel Goldberg espera que decisão do STF inaugure era de maior maturidade no sistema de controle de atos da administração pública (Germano Lüders/Exame)
GV

Graziella Valenti

18 de junho de 2020 às 15:44

O noticiário da semana veio povoado de escândalos de corrupção associados à compra de equipamentos médicos, respiradores, ventiladores e máscaras. Gente jogando dinheiro vivo pela janela durante operações de busca e apreensão. De embrulhar o estômago. Preocupante e trágico que, em meio a uma das maiores crises sanitárias de nossa história, aproveitadores de toda sorte se juntem a servidores desonestos para desviar recursos públicos.

Em uma conversa com um governador na semana passada, me dei conta de uma outra tragédia em curso — e essa não será discutida nos jornais nem mostrada nos noticiários. Quando perguntado pelo grupo acerca do nível de testagem para a covid-19 em seu estado, me disse esse governador: “Aqui paramos de comprar testes e também máscaras. Ninguém na Secretaria de Saúde quer assinar nada. Como a procura por equipamentos médicos subiu muito e os preços perderam a referência, todo mundo está apavorado com acusações de superfaturamento”.

Enquanto isso, nós, brasileiros, continuamos com nossas demandas: exigimos zero corrupção, mas 100% de agilidade. Queremos zero de burocacia, mas 100% de controle. Queremos recuperação econômica imediata e reabertura, mas sem fatalidades. Aqui devoramos a sobremesa e fingimos que as calorias não existem.

A verdade é que, do ponto de vista de arquitetura institucional, nossos sistemas de controle precisam ser (muito) aprimorados. Em engenharia de processos, a taxa de confiabilidade de um sistema ou equipamento é medida em falhas por unidade de tempo. Em aviação, um erro na manufatura de uma peça ou no código de um software pode facilmente levar à morte centenas ou milhares de pessoas. Por isso, a indústria aérea tem um dos menores níveis de tolerância ao erro — os processos e sistemas precisam garantir que a chance de catástrofe seja no máximo de 1 em 1 bilhão de horas de voo.

Na prática, para que a chance de um acidente permaneça abaixo do nível de risco tolerável (1/1.000.000.000), diferentes peças e equipamentos terão padrões de tolerância distintos. O nível admissível de falhas para o piloto-automático é muito maior do que o do sistema de cabos elétricos (fly-by-wire). Se o piloto automático quebra durante um voo, a chance de catástrofe é de apenas 1/1.000.000. Afinal, caso isso aconteça, o piloto da aeronave simplesmente assume o comando até o final do voo. Isso significa que se o nível de falha do piloto automático for de apenas 1/1.000, a probabilidade final de um acidente fatal permanecerá extremamente baixa (1/1.000*1/1.000.000=1/1.000.000.000). Já o sistema fly-by-wire liga a cabine do piloto às partes móveis do avião, incluindo o leme. Se o sistema de cabos elétricos entrar em pane haverá um acidente. Por isso, o nível de defeito nesse sistema não pode ser superior a uma falha a cada bilhão de horas de voo. O tipo de monitoramento de qualidade e fiscalização do processo de manufatura de uma peça ou equipamento que não pode quebrar a cada 1.000 horas é completamente diferente daquele que acompanha a confecção de um equipamento que não pode apresentar qualquer defeito a cada 1 bilhão de horas.

Quando vejo notícias de uma operação de busca e apreensão da Polícia Federal, com mobilização de Ministério Público Federal (MPF) e Controladoria-Geral da União (CGU) coibindo um suposto superfaturamento de 48.000 reais na compra de máscaras lado a lado com uma invesitgação de fraude de bilhões de reais, fico pensando se não estamos tratando o fly-by-wire da mesma formaque o piloto automático. Claro, é importante coibir todo tipo de abuso e desvio. Mas a prioridade deveria se centrar nas áreas de maior risco de lesão ao patrimônio público e os mecanismos pelos quais se faz o monitoramento deveriam ser distintos.

Do ponto de vista da produtividade do setor público, um ponto crucial é a questão da responsabilização do gestor. Nesse aspecto, minha sensação é que hoje estamos no pior dos mundos: no campo criminal, a pena para aqueles diretamente responsáveis pelos desvios é muito leve e o efeito dissuasório muito pequeno à luz da gravidade do crime. Por outro lado, o sistema sancionatório administrativo e civil — e a prática dos órgãos de controladoria que aplicam a lei e a regulamentação tornam os agentes públicos honestos extremamente vulneráveis e, portanto, cautelosos. Em suma: nosso sistema é leve para o desonesto e muito pesado para o honesto. Muita gente que contribuiu com diversos governos anda por aí com patrimônio indisponível (e jurando que nunca mais volta ao setor público), enquanto os operadores do subterrâneo continuam a todo vapor.

Os escândalos da pandemia mostram que a sistemática atual não impede que esquemas toscos de fraude à lei continuem a ser implementados — criação de “empresa laranja”, “CPF fantasma”, equipamentos inexistentes — práticas rudimentares que alguns acreditavam estar no passado. Por outro lado, os relatos de paralisação no processo de compras públicas estão custando vidas. De tempos em tempos tentamos avançar.

No governo Temer, foi aprovada a chamada Lei da Segurança Jurídica. Um dos artigos da lei dizia que o funcionário público responde nas áreas civil e administrativa — ou seja, com seus bens pessoais — apenas em caso de dolo ou erro grosseiro. Além disso, definia o erro grosseiro. Se o gestor pratica um ato do qual os órgãos de controle discordam, não decorre necessariamente que tenha de ter seus bens bloqueados e tenha de reparar o Tesouro pelos supostos prejuízos. Teve início uma guerra: os órgãos de controle — Tribunal de Contas da União (TCU), Procuradoria-Geral da República (PGR), MPF — se uniram para “demonstrar” à opinião pública que o dispositivo prejudicaria o combate à corrupção.

Alguém imagina que os descalabros que vimos durante a Operação Lava-Jato não seriam enquadrados no conceito de dolo? Os agentes públicos pegos em interceptação combinando expressamente a contratação de um equipamento que não existe vão alegar mero equívoco? O gestor da Secretaria de Saúde que contrata empresa de fachada e é pego com dinheiro escondido embaixo do colchão vai escapar à responsabilização porque a lei exclui mera culpa como hipótese de responsabilização? Claro que não.

A pressão foi tamanha que o governo Temer vetou parcialmente o dispositivo, deixando incerto o conceito de erro grosseiro. Como resultado, os agentes desonestos e corruptos continuaram a se imiscuir na máquina pública e muitos dos honestos continuaram a fazer de tudo para evitar que sua assinatura fosse posta em um contrato público. O “apagão da caneta” continuou a fazer vítimas invisíveis todos os dias.

Com a crise da covid-19, o governo Bolsonaro enviou uma Medida Provisória (MP) ao Congresso que restaura algo suprimido  pelo  governo Temer. Passa a haver um conceito de erro grosseiro, a situação em que  há responsabilização do agente público. Diversos partidos políticos atacaram a medida por meio de ações diretas de inconstitucionalidade e agora no final de maio o Supremo Tribunal Federal julgou o dispositivo constitucional. Foi uma decisão extremamete importante.

Com ela, o STF inaugura — espero — uma era de maior maturidade no sistema de controle de atos da administração. É um bom primeiro passo. Agora precisamos dar os próximos. Tornar a fiscalização mais ágil, flexível e seletiva. Priorizar as situações em que a chance de fraude é alta e o dano ao erário também. Ao mesmo tempo, endurecer as sanções para o desvio de recursos públicos. Fazer com que a máquina pública funcione não é tarefa fácil, mas é urgente. O Brasil não é um país que funciona no piloto automático.

*Daniel Goldberg é sócio-gestor da Farallon Capital no Brasil, ex-presidente do Morgan Stanley e ex-secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça

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