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Americanas: o que o trio do 3G disse sem escrever e que arrepiou o mercado todo

Sob pressão, Lemann, Sicupira e Telles alegam inocência e apontam existência de auditoria reputada

Capital: 3G enfrenta percepção negativa do mercado sobre posicionamento e problemas só pioram (Thinkstock/Thinkstock)
Capital: 3G enfrenta percepção negativa do mercado sobre posicionamento e problemas só pioram (Thinkstock/Thinkstock)
GV

Graziella Valenti

23 de janeiro de 2023 às 21:23

Existem alguns fatos sobre Americanas (AMER3). E alguns mistérios. Fato: a companhia não reportou ao mercado um volume de compromissos financeiros da ordem de R$ 20 bilhões, o que inflou os lucros dos últimos anos e reduziu a dívida real. Fato: a empresa teve de pedir recuperação judicial, pois teve os recursos bloqueados por credores. Mistério: como havia, dentro de casa, funcionários dispostos a contar o problema a um novo e desconhecido presidente — Sergio Rial contou com a cooperação de dois executivos voluntários para entender a situação, ou seja, denúncia — e a informação não circulava antes? Mistério: como o comitê de auditoria tinha gente fazendo perguntas (e tinha!) e isso não chegou ao conselho de administração, ainda mais sendo esse o fluxo correto das informações?

Depois de 11 dias desde que o escândalo veio à tona, com a renúncia de Rial e André Covre, que assumiram em 2 de janeiro como CEO e CFO, respectivamente, o trio de sócios do 3G Capital resolveu dar alguma satisfação à sociedade em uma nota pública. Era a grande ansiedade de todo o mercado, não apenas dos credores. O efeito dessa comunicação, porém, não poderia ser pior. Além de ferver ainda mais os credores, deixou enfurecidos aqueles que sempre trabalharam pele evolução das boas práticas de governança no Brasil.

A Americanas movimenta mais de R$ 55 bilhões em vendas por ano, sendo que 60% é de parceiros comerciais, ou seja, outras empresas que vendiam pelo marketplace do grupo. A companhia tem cerca de 50 milhões de clientes e 45 mil funcionários diretos. Na bolsa, valia R$ 11 bilhões antes do problema vir a público e agora está avaliada em torno de R$ 700 milhões.

Diante dessa penetração da companhia na sociedade brasileira, mais fatos e mistérios atuais, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira decidiram dizer que nada sabiam. Até aí, relativamente esperado que assim o fizessem. Mas a justificativa é curiosa: a companhia contava com uma auditoria com grande reputação, a PwC, e a firma “circularizava” uma carta com os bancos a respeito dos passivos.

“A mensagem que fica é, se a companhia tem auditoria, não precisa de conselho, nem de outros órgãos que questionem o balanço. É como se o conselho de administração perdesse uma de suas principais funções, que é fiscalizar os executivos e seus atos”, comentou uma pessoa que acompanha os impactos do caso sobre o mercado. “E, por isso, então, eles entendem que poderiam ser eximidos de qualquer responsabilidade?”

“Contávamos com uma das maiores e mais conceituadas empresas de auditoria independente do mundo, a PwC. Ela, por sua vez, fez uso regular de cartas de circularização, utilizadas para confirmar as informações contábeis da Americanas com fontes externas, incluindo os bancos que mantinham operações com a empresa. Nem essas instituições financeiras nem a PwC jamais denunciaram qualquer irregularidade”, alega o trio em nota. E segue ainda: “O comitê independente da companhia terá todas as condições de apurar os fatos que redundaram nas inconsistências contábeis, bem como de avaliar a eventual quebra de simetria no diálogo entre os auditores e as instituições financeiras.”

Na prática, o trio de sócios — sendo que Beto Sicupira é conselheiro e Paulo Lemann (filho de Jorge Paulo) também — cutuca os bancos. Como se os credores pudessem ou tivessem o dever de saber melhor da companhia do que os próprios donos.

A Lei das Sociedades por Ações, no artigo 116, não deixa dúvidas a respeito das responsabilidades dos controladores: “O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”. Aos credores, cabe cuidar do risco de seus negócios e à auditoria, fiscalizar o reporte dos números no balanço.

O trio 3G é hoje dono de aproximadamente 31% da Americanas. Mas, até o fim de 2021, eram sócios majoritários no controle. Eram donos da Lojas Americanas que, por sua vez, era controladora da B2W. Há pouco mais de uma ano, as empresas foram unificadas e a sociedade resultante aderiu ao Novo Mercado da B3 o que fez com que a posição de controle do trio fosse diluída em uma participação inferior a 50,1%. Apesar disso, os três sócios indicavam a maioria do conselho e a presidência da Americanas seguiu nas mãos de Miguel Gutierrez, o mesmo executivo em 20 anos — pelas regras da B3, isso caracteriza controle de fato.

A Americanas é emblemática na história de Lemann, Telles e Sicupira, já que foi a primeira investida e a partir da qual começaram a desenvolver a “cultura Ambev”, como ficou conhecido o modelo de atuação do trio após a união de Brahma e Antártica que culminou na criação da AB Inbev. O 3G é considerado o mais bem-sucedido do país, embora não morem mais no país, e soma uma fortuna estimada em R$ 180 bilhões. Eles são também os acionistas de referência da Kraft-Heinz e do Burguer King.

Agora, os problemas afetam não só trabalhadores, fornecedores e credores. Os investidores sofreram perdas, com a queda das ações e também com os títulos de dívida, que estavam espalhados em diversos fundos do mercado já que eram considerados “seguros” pelas agências de rating.

Para que a recuperação judicial alcance sucesso, é preciso que haja um plano de reorganização dos vencimentos. Idealmente, um projeto comum de acionistas e credores. Contudo, desde a revisão da Lei de Falências, os detentores da dívida da companhia podem se unir em um bloco majoritário e apresentar, eles próprios, um plano. A conversa entre credores e o trio, conduzida pelo Rothschild, que não tem sido fácil, só piora. A cada dia que passa algo azeda mais o diálogo, se é que ainda é possível chamar dessa forma.

A tal carta

Desde que o caso veio à tona, a carta de circularização dos auditores com os bancos virou um tema. A cada crise o mercado aprende um pouco das relações e dos instrumentos, como foi com os derivativos cambiais usados por Sadia e Aracruz. Esse é um documento que os auditores enviam aos bancos para que reportem saldo de conta-corrente, investimentos e empréstimos e financiamentos das companhias, mas em termos absolutamente gerais.

A carta não faz nenhum questionamento a respeito de risco sacado, no caso de Americanas, nem outro tema específico, no caso de outras empresas. Nenhum banco entende esse financiamento para pagamento a fornecedores como dívida financeira. E isso não é simplesmente porque assim decidiram, é porque o entendimento é esse inclusive com o Banco Central. Por não ser vista como operação financeira, mas sim comercial, os bancos não pagam IOF sobre elas.

A troca de informações com os bancos não é a única fonte de informação dos auditores. O risco sacado é informado pelas instituições ao BC e o dado é agregado por empresa. Por exemplo, cada instituição reporta risco sacado com Americanas e outras varejistas. Haveria, em tese, outras formas de o auditor ter acesso aos dados. A PwC, como faz toda auditoria, atua com base nas informações que a empresa auditada fornece.

Hoje o trio conseguiu incomodar o mercado de forma mais geral. Até agora os investidores assistiam ao embate entre os donos da empresa e os credores, na tentativa de entender o futuro depois disso. Agora, houve um incômodo geral com a forma pela qual os sócios percebem o problema e suas responsabilidades para com ele.

Para quem decide. Por quem decide.

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