Americanas: o preço para um futuro de paz para Lemann, Sicupira e Telles
Revelações apontam que diretores da Americanas foram frontalmente questionados sobre risco sacado por auditores e comitê, mas negaram existência
Graziella Valenti
Editora Exame IN
Publicado em 24 de março de 2023 às 08:01.
Última atualização em 24 de março de 2023 às 14:29.
Uma solução para a quase centenária Americanas (AMER3) está mais próxima do que parece. Mas, existem ainda algumas questões no caminho, e o tempo e suas revelações não parecem ajudar. O trio de sócios controladores, Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles, colocou um preço alto para os credores na recuperação judicial: abrir mão de direitos. A proposta de plano levada à Justiça no começo dessa semana prevê que aqueles que aderirem à reestruturação abdicam de qualquer litígio, já existente ou futuro, contra a empresa, seus acionistas – leia-se, o próprio trio – e administradores. O texto vai além e o plano quer impor uma penalidade para os que quiserem manter esses direitos: quem tiver intenção de preservar a liberdade de questionamentos futuros vai obrigatoriamente ver o valor de seu crédito ser reduzido em 80%.
Em alguma medida, é comum tentar garantir que uma recuperação judicial não desemboque em uma disputa judicial sem fim. Mas, aqui, a avaliação de quem é do ramo há décadas é que a exigência foi salgada demais. Em especial, pelo contexto. O caso da Americanas é muito diferente de uma recuperação judicial comum, onde uma companhia sofreu uma piora de suas condições financeiras que levaram ao pedido de proteção contra credores. Aqui, da noite para o dia, surgiu um rombo até então desconhecido de R$ 20 bilhões na empresa em passivos não relatados adequadamente no balanço, o que levou os compromissos totais, que já eram elevados, a R$ 43 bilhões.
Existem indícios fortes de fraude. Os próprios sócios controladores se dizem vítimas, apesar de Sucupira ser presidente do conselho de administração (ou seja, acionista e administrador). Novos documentos que se tornaram públicos na quarta-feira, dia 22, fizeram crescer, entre credores e investidores, a percepção de que houve intenção de omissão de compromissos do balanço pela companhia.
O administrador judicial da Americanas divulgou um relatório sobre a empresa e os balanços anteriores. No documento, é possível ver que a KPMG, auditoria independente que ficou apenas três anos (prazo mínimo legal) responsável pelos números da varejista viu discrepância nas informações de risco sacado já em 2016 - os tais contratos, relacionados à financiamento para pagamento de fornecedores, que estavam fora do balanço da companhia e são a origem do rombo revelado. Em pelo menos duas cartas de circularização com os bancos credores (quando o auditor confere a veracidade dos dados fornecidos pela administração da empresa em correspondência formal com as instituições financeiras) havia informação sobre risco sacado. Mas, em seguida, esses documentos teriam sido substituídos por outros, como supostas retificações das instituições. Entre os bancos está o Itaú, que nega a retificação e explica que, diferentemente de uma correção, foi solicitado pela empresa a detalhar operações, mas que não eram as de risco sacado, como informou o site de notícias Pipeline.
O relatório ainda deixa evidente que a direção da Americanas foi questionada direta e frontalmente, tanto pela auditoria PwC, como pelo Comitê de Auditoria, a respeito da existência de contratos de risco sacado, e negou que esse tipo de transação existisse na empresa. O caso vai ganhando cara, nariz e focinho de fraude.Para completar, diferentemente de outras recuperações judiciais, em que os donos não têm patrimônio para resgatar a empresa, o trio tem uma fortuna estimada em, no mínimo, R$ 180 bilhões - e era não só o dono da companhia há mais de 40 anos, como também estava no conselho de administração, por meio da presença de Sicupira. Não por acaso, desde que a crise veio à tona, a credibilidade de Lemann, Sicupira e Telles, bem como a cultura de negócios das empresas que controlam, têm sido alvo de críticas severas. Portanto, um futuro garantido de paz vale muito. E a julgar pelas novidades, vale bastante.
O trio já subiu sua proposta de capitalização para R$ 10 bilhões, frente aos R$ 7 bilhões inicialmente colocados na mesa. Esse é o valor que consta do plano apresentado na segunda-feira, dia 20. Mas os bancos entendem que esse montante deveria ser de R$ 12 bilhões, para que a empresa seja realmente viável no pós-recuperação judicial.
Entre os credores, há quem diga que R$ 11 bilhões fechariam bem a conta, pois os bancos também estão interessados em resolver rapidamente a questão. Em um cenário com mais dinheiro e alguns ajustes nas exigências, um acordo seria mais fácil. Do lado do trio, a tendência é resistir ao pedido, por entenderem que se a todo momento subirem o dinheiro disponível, os credores sempre exigirão mais.
Os bancos, contudo, não entendem assim a situação. Um acordo para solucionar o caso da Americanas é visto como importante para normalizar o cenário do crédito, em especial no varejo, o que é do interesse de todos – especialmente em um ambiente de taxa de juros elevadas, que têm pressionado a rentabilidade das empresas e a capacidade de pagamento dos compromissos.
A aprovação do plano de recuperação da Americanas depende totalmente dos credores financeiros. Dos R$ 43 bilhões em compromissos listados pela empresa, cerca de R$ 35 bilhões são pendências com bancos, ou seja, mais de 80%. Os fornecedores pertencem à mesma classe de credores que os bancos, nesse caso, pois ambos não possuem garantia. Além das instituições financeiras, é preciso ter aval da maioria dos credores trabalhistas, que possuem uma classe específica para eles.
Dolo e imprudência
O texto do plano da Americanas abre uma exceção para os credores aderentes voltarem a litigar no caso: dolo. Se ficar comprovada a atuação voluntária e planejada para uma fraude, os credores poderiam ir para cima pedir compensações. Seria estranho – e até ilegal – algo diferente. Nem seguro de administrador, o famoso D&O, cobre dolo.
Contudo, trata-se de algo difícil de provar, especialmente no direito brasileiro, mesmo que as evidências sejam inúmeras. Por isso, para os credores, o correto seria permitir que o direito ao litígio ficasse mantido também se ficar provada a imperícia ou imprudência de controladores e administradores, ou seja, se tiverem faltado com seus deveres legais de diligência.
Também não custa lembrar que a própria Americanas, na figura de seus atuais administradores, têm o direito e o dever de iniciar uma ação de responsabilidade civil contra os administradores anteriores, a depender do que as investigações revelarem, em busca de ressarcimento. Se a companhia não o fizer, um acionista ou grupo, detentor de no mínimo 5% do capital, pode correr o processo em nome da Americanas.
A percepção de quem trabalha no caso - do lado dos credores, é claro! -, é que a penalidade para quem não aceitar a exigência de encerramento de disputadas judiciais e bloqueio a novas sequer tem validade jurídica.
O dobro
Caso o trio de sócios aceite colocar mais R$ 2 bilhões para capitalizar a Americanas, o efeito é dobrado para a empresa. Isso porque os credores financeiros já aceitaram que cada R$ 1 aportado pelo trio será acompanhado de outro R$ 1 que os bancos vão trocar por ações, o que leva ao cancelamento da dívida. No cenário de aporte de R$ 10 bilhões, a capitalização total da empresa é de R$ 20 bilhões, uma vez que os bancos colocam a outra metade do total, convertendo créditos em participação na empresa. Portanto, se o trio colocar R$ 12 bilhões, a capitalização total poderá ser de R$ 24 bilhões.
Ninguém quer sair do processo de recuperação dono majoritário de Americanas – nem trio, nem credores. O objetivo é deixar o negócio saudável, menor, com a venda dos ativos adquiridos recentemente (Uni.co e Hortifruti Natural da Terra), e pronto para ser consolidado. Os imóveis, ou seja, os pontos da companhia são considerados de grande valor no setor de varejo, muito bem localizados, muitos deles herança da longínqua aquisição da Blockbuster.
Pressa
Todos querem uma solução rápida para o caso da Americanas. Mas um acordo importa, especialmente, para a própria companhia. Nessa semana, a empresa sofreu uma derrota significativa na Justiça sobre a data de corte para execuções de credores, os bloqueios de caixa. Para entender, é preciso relembrar a cronologia do caso, que começou após o fechamento do mercado no dia 11 de janeiro com a divulgação do fato relevante a respeito de "inconsistências contábeis estimadas em R$ 20 bilhões". Em 13 de janeiro, a varejista obteve acolhimento no Rio de Janeiro para um pedido de “tutela cautelar antecedente”, uma espécie de proteção antecipada contra credores até que chegasse a um acordo privado sobre os compromissos ou registrasse um pedido de recuperação judicial. A solicitação foi feita na noite do dia 12.
Essas datas são cruciais para a discussão de diversos bancos que executaram garantias e bloquearam recursos da empresa. O BTG Pactual (do mesmo grupo de controle da Exame) compensou, antes mesmo do pedido da cautelar da companhia, parte de seus créditos e isso já estava pacificado judicialmente. Contudo, Safra, Votorantim, Bradesco e outras instituições retiveram aplicações da empresa após o pedido da Americanas na Justiça e ainda havia debate sobre a validade das medidas. Nesses casos, até então, prevalecia o entendimento de que as instituições não poderiam ter executado. A data de corte para execuções válida era dia 12 de janeiro.
Contudo, nesta terça-feira, dia 21, a relatora do caso, desembargadora Leila Santos Lopes, concedeu uma importante vitória ao Safra, e que afeta alguns dos outros grandes credores da empresa. Ficou decidido que a data de corte para execuções é o dia 19 de janeiro, data do pedido de recuperação judicial – e não mais da tutela antecedente. Na prática, isso é um ganho para os bancos que fizeram bloqueios ou compensações, para além do BTG Pactual. Em uma dura decisão, a desembargadora afirma que o instrumento de tutela antecedente só poderia evitar execuções se previamente tivesse existido alguma negociação ou mediação com credores. A pressa, portanto, só aumenta. E se as revelações continuarem nessa mesma toada, o clima entre o trio e os credores, que está muito mais produtivo, pode sofrer abalos.
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Graziella Valenti
Editora Exame INCriadora do EXAME IN, espaço dedicado à cobertura de negócios, com foco em mercado de capitais. Na EXAME desde março de 2020, ficou 13 anos no Valor Econômico, oito como repórter especial, sete anos na Broadcast, do Grupo Estado.