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Venture capital

Vale dos Predadores: estudo critica o que seria uma falha existencial no modelo de venture capital

Artigo publicado no Journal of Corporation Law aponta que regulação para investigar preço predatório nos Estados Unidos tem de ser revista

Advogados defendem que formato de investimento atual beneficia apenas fundos e fundadores, em detrimento da sociedade (wenjin chen/Getty Images)
Advogados defendem que formato de investimento atual beneficia apenas fundos e fundadores, em detrimento da sociedade (wenjin chen/Getty Images)
Karina Souza

Karina Souza

18 de julho de 2023 às 18:59

A regulação para o trabalho dos fundos de venture capital e startups precisa mudar. Essa é a tese por trás de um artigo publicado recentemente no Journal of Corporation Law, uma das revistas mais renomadas de direito corporativo nos Estados Unidos. Os autores Matthey Wansley e Samuel Weinstein apontam para a existência de um conceito chamado "Venture predation", que, basicamente, consiste em políticas de preço predatório por startups para que eliminem a concorrência -- trazendo ganhos para fundadores e VCs, em detrimento da concorrência e de consumidores. Um conjunto de fatores que faz com que a razão de existir de gigantes do Vale do Silício seja, segundo os autores, ilegal. 

O material, que tem pouco mais de 60 páginas, tem lá seus exageros e seus reducionismos. Mas nem por isso, ou, talvez, por causa disso, tem gerado debate. Nesta terça-feira, ganhou destaque no site Insider, com um título que dificilmente poderia ser mais chamativo: "É oficial: o modelo de negócios do Vale do Silício é uma fraude". A atenção despertada pelo conjunto de palavras ganha contornos mais claros na leitura do texto. A notícia, assim como o artigo, parte do caso de grandes companhias, como Uber e WeWork, para exemplificar como o modelo de preço predatório foi uma parte importante da trajetória construída por elas até aqui.

Tudo começa na base jurídica que fundamenta o tema do preço predatório. Os autores defendem que essas empresas, hoje, usam uma estratégia diferente da que formou o arcabouço legal dos Estados Unidos para julgar esse tema. Resumidamente, até os anos 1970, havia um entendimento de que era ilegal baixar preços para matar os concorrentes para depois subir os preços. Por décadas, os casos foram julgados predominantemente a favor de quem entrava com um processo alegando esse tipo de estratégia -- em mercados como o de petróleo, por exemplo. Foi um entendimento que mudou radicalmente a partir da popularização das ideias de economistas da Escola de Chicago, que apontavam o conceito de preço predatório como 'irracional'.

Na visão dos economistas, as empresas que praticavam preço predatório perderiam mais do que ganhariam, uma vez que a concorrência seria excluída apenas temporariamente. Ou seja, em uma queda de preços abaixo do custo -- praticada por um agente de mercado que quisesse dominar um determinado setor -- competidores poderiam apenas sair do mercado nesse período, e voltar ao mercado quando a situação estivesse normalizada. E, mesmo que não voltassem, novas empresas surgiriam para disputar o mercado. 

Em 1993, a Suprema Corte deu um passo importante em direção a esse entendimento. No caso Brooke Group v. Brown e Williamson Tobacco, foi definido que a parte queixosa deveria provar que o acusado praticou preços abaixo do custo e que teve uma lucratividade "acima do normal" ao recuperar suas perdas. Na visão dos autores, essa decisão tornou mais e mais difícil entrar com ações desse tipo ao longo dos anos seguintes, um ponto que se estende até hoje. 

Os anos passaram e, novamente, o entendimento sobre o tema precisa ser revisto tendo o Vale do Silício como palco, dizem os autores. Eles apontam que a assimetria de informação pode tornar o conceito anterior imperfeito. Por exemplo: a empresa que está numa jornada predatória pode dar a falsa impressão de que chegou a um novo nível de eficiência, e, por consequência, impedir os competidores de contrair empréstimos ou qualquer outro tipo de crédito, por acreditarem ter sido ultrapassados. Tendo em vista que grande parte das startups é fechada -- e permanece com os dados privados por mais tempo -- esse é um ponto de preocupação para Wansley e Weinstein. E que forma as bases para a tal "Venture predation".

O que é "Venture Predation"

O debate importa por um motivo muito simples: a indústria de venture capital, que financial startups inovadoras, movimentou US$ 95 bilhões de dólares no mundo apenas no primeiro trimestre de 2023. E está no coração das revoluções tecnológicas, como a de inteligência artificial, por exemplo. As empresas que vierem a dominar no médio prazo o negócio, fatalmente serão financiadas por fundos de venture capital. Se esses fundos estiverem dispostos a custear estratégias predatórias, a lisura do mercado pode estar em risco. 

O roteiro de uma estratégia predatória, segundo os autores, é mais ou menos o seguinte. Primeiro, os fundos de venture capital injetam dinheiro em uma empresa, a fim de que ela possa começar a praticar preços abaixo dos custos. O segundo passo é a efetivação desse ponto pela própria startup. E, por fim, uma vez que a startup investida atingiu um patamar dominante, os fundos saem da empresa, "vendendo ações para investidores que acreditam que a startup pode se recuperar do ônus de um preço predatório".

O fato de isso estar relacionado muito mais ao horizonte do venture capital do que do private equity, na visão dos autores, tem a ver com a quantidade de tempo direcionado aos investimentos, de cerca de 10 anos, bem como da interferência maior no conselho de administração dessas empresas do que em outras etapas de financiamento de startups.

Um ponto importante é que os autores reconhecem a necessidade de políticas de subsídios para empresas financiadas por fundos de VC. Os autores reconhecem que apps de plataforma -- que conectam uma ponta de demanda a uma ponta de oferta, como o próprio Uber -- precisam de subsídios para acabar com o dilema 'do ovo e da galinha' característico ao início da operação. No caso do app de mobilidade, esse ponto seria exemplificado pela necessidade de muitos usuários (para o aplicativo se tornar atrativo aos motoristas), assim como é necessário ter muitos motoristas (para que se torne atrativo aos usuários).

O principal crítica dos autores é usar essa estratégia, que deveria ser momentânea, como um modelo de negócio, sem chegar a um caminho claro de lucratividade e enriquecendo apenas aos fundos de venture capital (que não dependem do fluxo de caixa positivo para angariar seus retornos) e aos fundadores de empresas -- que, frequentemente, vendem uma parte da empresa em rodadas de captação. Ou seja, no fim das contas, investidores perdem ao entrar em um negócio sobre o qual não há uma divulgação clara de dados financeiros (ao menos nos casos em que não se chega a um IPO) e a sociedade perde ao ter a concorrência diminuída.

Além do retorno desigual, fruto da assimetria de informação e do modelo de negócio em si, há impactos sociais. No artigo, são destacados três critérios: custo social, preço e má alocação de capital. Em relação ao impacto para a sociedade, eles reconhecem que a lei antitruste já endereça esse ponto em parte ao estar atenta à dominância de uma empresa específica e a posterior subida de preços, que prejudica consumidores. Um ponto menos claro, entretanto, tem a ver com a dominância de mercado seguida por uma falha da tese que sustenta a empresa, fazendo com que consumidores tenham menos opções, na medida em que inibe novos entrantes.

Fatores que, no fim das contas, levam a uma má alocação de capital. "Nos anos 2010, bilhões de dólares foram gastos em políticas de preço predatório. Um dos objetivos da lei antitruste é o de direcionar investimentos para atividades produtivas e afastá-lo de esquemas anticompetitivos. 'Venture predation' é um problema que precisa ser resolvido", escrevem Wansley e Weinstein. Seria uma mínima garantia de que os recursos estariam indo para os negócios com mais potencial de transformação no futuro, e não para aqueles com maior ganho potencial de curto prazo para os investidores. 

A saída

Resolver esse problema passa por duas saídas, na visão dos autores. Primeiro, uma reforma da lei para remover os obstáculos existentes na hora de entrar com ações para processar empresas que tomam como base essas práticas vistas como anticompetitivas. "Enforcement antitruste pode ser uma ferramenta poderosa nesse cenário. Se investidores ficarem preocupados com queixas de monopólio, estarão menos aptos a financiar a saída de fundos de venture capital que financiaram essas empresas", afirmam.

Em segundo lugar, é apontada uma reforma na regulação em si. Atualmente, a Securities and Exchange Comission (SEC), nos Estados Unidos, está estudando se grandes empresas privadas deveriam prestar contas sobre suas finanças. Um ponto que é defendido pelos autores, uma vez que, com dados tornado públicos mais cedo, há a crença de que analistas e short sellers podem perceber que se trata de um negócio com baixa probabilidade de se tornar rentável -- e precificá-lo de acordo com essas estimativas.

Num exemplo prático, o do WeWork, os autores apontam que a empresa passou por um crescimento vertiginoso nos últimos anos. Em 2019, estava presente em 111 cidades e tinha um IPO cotado a US$ 104 bilhões. Mas, depois de submeter os primeiros formulários à SEC, investidores começaram a identificar o tamanho das perdas financeiras pelas quais o negócio passou. 

Mesmo assim, Adam Neumann, o fundador da empresa, teve certa recompensa com o negócio. O fundador embolsou US$ 700 milhões em vendas de ações e outras transações antes do IPO. Em 2021, ele fez um novo acordo com o SoftBank, seu principal investidor, para pegar mais dinheiro emprestado e financiar um novo negócio.

O que reforça a tese, para os autores, de que se trata de um modelo de negócio que funciona para um público muito específico e que depende do timing exato para sair dele. Seria a deixa para o predador partir ao ataque das próximas vítimas. 

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Karina Souza

Karina Souza

Repórter Exame IN

Formada pela Universidade Anhembi Morumbi e pós-graduada pela Saint Paul, é repórter do Exame IN desde abril de 2022 e está na Exame desde 2020. Antes disso, passou por grandes agências de comunicação.