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Argentina

OpenAI, Milei e os libertários: o papel do Estado num mundo em ebulição

Dois assuntos aparentemente desconexos que dominaram o noticiário nos últimos dias reacendem um debate de séculos — e que nunca esteve mais atual

Javier Milei: imagem do novo candidato perto do Obelisco, em Buenos Aires ( Juan Mabromata/AFP)
Javier Milei: imagem do novo candidato perto do Obelisco, em Buenos Aires ( Juan Mabromata/AFP)
Lucas Amorim

Lucas Amorim

11 de dezembro de 2023 às 17:20

Dois assuntos aparentemente desconexos dominaram o noticiário político e econômico deste feriadão. De um lado, a eleição de Javier Milei para a Presidência da Argentina prometendo uma revolução na forma como Estado, sociedade e setor produtivo se relacionam. De outro, a novela na OpenAI, a empresa referência em inteligência artificial, que demitiu seu CEO na sexta-feira, dando origem a três dias de som e fúria no Vale do Silício. O conselho sofreu pressão para voltar atrás, nomeou novo CEO e agora a empresa está diante de ameaça de debandada de seus funcionários.

E qual seria o fio condutor entre Buenos Aires, onde Milei começou a formar o governo, e São Francisco, onde Sam Altman, enxotado de sua empresa, foi nomeado para uma nova frente de pesquisa em inteligência artificial pela Microsoft, investidora da OpenAI? A resposta poderia ser algo como uma combinação de nervos à flor da pele com grandes incertezas. Estaria certa. Mas vai além disso. A eonexão entre os dois assuntos é o intenso debate sobre o papel do Estado e do capital privado num mundo em transformação.

As sociedades precisam de mais ou de menos Estado na exploração dos recursos naturais, na oferta de saúde e educação, e até no debate sobre o futuro das ferramentas de inteligência artificial? São temas amplos e complexos que não permitem respostas simplistas, mas que estão por trás das transformações dos últimos anos e, sobretudo, dos últimos dias.

Segundo comunicado do conselho de administração da OpenAI, Altman foi demitido por não ter sido "consistentemente sincero em suas comunicações". Ele vinha negociando investimentos multibilionários em novas empresas que fabricam chips e hardware orientado para inteligência artificial. Também vinha, segundo relatos, cobrando mais rapidez e mais ambição no desenvolvimento de ferramentas, o que incluiria pular etapas de segurança e estudos sobre possíveis impactos ao público.

A saída de Altman escancarou para a sociedade debates que ocorrem dentro dos muros da OpenAI, uma empresa controlada por uma organização sem fins lucrativos. "Alguns cientistas de IA e líderes políticos se preocupam sobre seus riscos, como empregos sendo automatizados ou uma batalha por automação que cresça para além do controle humano", escreveu neste domingo o "New York Times" em reportagem que analisa a saída da Altman.

Mia Murati, diretora de tecnologia da companhia e que virou CEO interina por algumas horas, é uma reconhecida defensora da regulação da IA, argumentando que governos tenham um papel decisivo nos rumos da tecnologia.

Um livro recente dos economistas Daron Acemoglu e Simon Johnson ("Power and Progress: Our Thousand-Year Struggle Over Technology and Prosperity") argumenta que o Estado precisa de mais controle sobre companhias de inteligência artificial. Os governos, segundo os autores, precisam encontrar caminhos de dividir mais amplamente os benefícios dos avanços tecnológicos. "Inovação não é, e nunca foi, uma força natural autônoma sobre a qual as pessoas não têm escolha a não ser se adaptar a ela", escrevem.

Os autores defendem ainda que os estados criem políticas para induzir o setor privado a evitar automação e vigilância excessivas, e adotar tecnologias mais amigáveis aos trabalhadores. Eles culpam adivinhe quem pelo desenvolvimento de ferramentas de IA que "destroem empregos" pelo mundo? Um pequeno grupo de "libertários".

O termo tem sido usado para qualificar Javier Milei, e faz referência a uma corrente de pensamento que privilegia a liberdade individual em oposição a governos ativos na vida política, econômica e social.

No caso específico da Argentina, esta visão pode levar à privatização de estatais, ao fim de organizações como o Banco Central e a cortes de programas de distribuição de renda, para priorizar a atração de capital privado e o incentivo ao empreendedorismo.

Em seu discurso após a vitória, Milei afirmou que é hora de por fim ao "modelo empobrecedor da casta" e que é hora de voltar a "abraçar o modelo da liberdade para a voltar a ser uma potência mundial". Seu lema de campanha, que fechou o discurso de ontem, é "Viva la libertad".

"A sustentabilidade da Argentina requer um ajuste fiscal e externo, e o libertário está enfatizando muito os dois", analisou um relatório publicado nesta segunda-feira pelo BTG Pactual (do mesmo grupo que controla a EXAME), feito por Alejo Costa e Sofia Ordonez, analistas do banco sediados na Argentina.

Milei foi rapidamente saudado, ontem, por Elon Musk, considerado outro protagonista deste movimento libertário. Musk usou sua rede social, a X, para dizer que "a prosperidade está diante da Argentina", ao comentar uma foto de Milei junto a uma Bandeira de Gadsden, que traz uma cascavel amarela pronta para atacar e é associada a libertários e também à extrema-direita americana. Musk tem levado sua visão de mundo tida por uns como revolucionária, por outros como egoísta para o X, onde defende menor controle social sobre conteúdo.

O debate sobre o papel do Estado e sobre liberdades e responsabilidades individuais tem séculos de história. Vai continuar atual, seja ao discutir a vitória de Milei, a crise da OpenAI – ou as eleições americanas, que devem ser o grande tema econômico e político de 2024.

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Lucas Amorim

Lucas Amorim

Diretor de redação da Exame

Jornalista formado pela Universidade Federal de Santa Catarina, começou a carreira no Diário Catarinense. Está na Exame desde 2008, onde começou como repórter de negócios. Já foi editor de negócios e coordenador do aplicativo da Exame.