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Odebrecht, o Everest jornalístico de Malu Gaspar

Fio condutor do livro "A Organização", que traz ascensão e queda do Grupo Odebrecht, é a conturbada relação entre pai e filho

Sede da Odebrecht: imagem tornou-se um ícone da Operação Lava-Jato (Paulo Whitaker/Reuters)
Sede da Odebrecht: imagem tornou-se um ícone da Operação Lava-Jato (Paulo Whitaker/Reuters)

Publicado em 21 de novembro de 2020 às 10:07.

Última atualização em 21 de novembro de 2020 às 15:29.

Acaba de chegar nas livrarias o Everest da jornalista Malu Gaspar: a saga da família e do grupo Odebrecht. Foram quase quatro anos de pesquisa, milhares de páginas de documentos, entrevistas e um trabalho sem fim de “quebrar pedra” para organizar tudo isso, como ela conta nessa entrevista ao EXAME IN. “Valeu mais que um doutorado. Foi assim, como subir o Everest.”

Malu é jornalista, profissão de tempo integral. Atualmente, é repórter da revista Piauí, onde além de reportagens apuradíssimas, faz o podcast sobre política 'Foro de Teresina'. Mas já fez de um tudo, e por esse ‘tudo’ entende-se realmente tudo o que dita o rumo de nossas vidas. Já cobriu política, economia, negócios e foi correspondente. Já foi Veja, já foi Exame e já foi Folha de S. Paulo. Antes da Odebrecht, destrinchou o Grupo X e a história empresarial de Eike Batista, em “Tudo ou Nada”.

“Eu era um pouco viúva do Eike quando pensava em outro livro. Porque o Eike tinha tudo. Ele é um personagem muito colorido. Tem ouro, tem garimpo, tem Luma de Oliveira, tem coleira, tem carro na sala de casa. Era difícil imaginar alguém que pudesse ser tão interessante.”

Mas ela não pensa duas vezes para dizer que Marcelo Odebrecht é o protagonista do livro e, de todos, o que tem psicologia mais interessante. “A Organização”, como chama a obra de 640 páginas editada pela Companhia das Letras, narra a história do grupo a partir da relação entre pai, Emilio Odebrecht, e filho. Hoje, basicamente, uma não relação. Marcelo considera que os pais estão mortos.

Esse é  o “fio condutor” escolhido pela autora para contar a história de uma companhia, fundada na Bahia, em 1944, que tinha uma cultura tão forte e tão própria que foi forjada em um livro, a Tecnologia Empresarial Odebrecht, conhecida como TEO. Fique você, leitor, com essa pulga atrás da orelha sobre se há coincidência ou não com a origem grega do vernáculo, que quer dizer Deus. (Após o livro, certamente, terá uma opinião a respeito.)

Para se ter uma ideia do trabalho, Malu partiu das delações, que abrangem 200 inquéritos, e se sentiu como James B. Stewart, ao escrever seu “Covil de Ladrões” [Den of Thieves’, no original]. O benchmark é daqueles: o livro deu origem ao filme “Wall Street — Poder e Cobiça”, a história de ninguém menos que Gordon Gekko.

“Mais do que qualquer furo, o livro te coloca lá dentro das relações pai e filho. Olhando pela fechadura”, afirma Malu. Enquanto conta como essa relação já difícil entre Emilio e o herdeiro do trono Odebrecht transcorreu ao longo do tempo até ruir por completo dentro da Operação Lava-Jato, ela joga luz para explicar como o grupo cresceu e em qual Brasil.

Malu descreve como o conglomerado saiu de uma receita bruta de 31,4 bilhões de reais, em 2008, — ano em que Marcelo é alçado à presidência da holding Odebrecht S.A. — para chegar em 2015, ano de sua prisão, com um faturamento de 132,5 bilhões de reais. E como alguém, dono dos maiores segredos da república, pôde cair sem se dar conta em um enorme tombo.

O prenúncio da altura da queda veio na primeira reunião dos advogados da companhia com o Ministério Público, em março de 2016. No encontro, eles ouvem de Carlos Fernando dos Santos Lima que a delação da Odebrecht teria de ser como se houvesse uma rendição dos nazistas aos judeus, no Holocausto – é uma das histórias do livro.

Além de toda sorte de detalhes e a vida real das pessoas que fizeram o grupo, até a chamada delação do fim do mundo, com o absurdo número de 78 participantes, o livro ainda traz trechos inéditos do diário que Marcelo escreveu na prisão, com mais de 7 mil páginas. O herdeiro do trono ficou preso de junho de 2015 a dezembro de 2017, quando saiu para regime domiciliar.

“Foi um presente da vida. Aprendi muita coisa. Aprendi sobre o Brasil, sobre negócios. Mas o que mais aprendei foi sobre gente”, diz, explicando que riu e – sim! – muitas vezes chorou com os dramas humanos dessa história. “Se você não tem empatia, você não escreve. Só não pode se apaixonar pelo personagem”, diz, ela que já pode ser considerada uma veterana nos ícones da vida empresarial brasileira.

Malu quer iluminar o Brasil. E também trazer reflexão. “O corrupto não é aquele sujeito com cara de rato em uma sala escura. Ele é mãe, ele é pai, ele é seu tio e, muitas vezes, pode ser você, na propina que paga a um flanelinha”.

Para quem quiser saber um pouco mais de como é fazer uma obra dessas, o EXAME IN, conversou com Malu sobre isso. Lei a seguir:

 Como veio a ideia para o livro?

Fiz uma reportagem para a Piauí, em 2016, com a expectativa da delação. Acabou sendo um ensaio do livro, não deliberado. Trabalhei na matéria entre junho e outubro daquele ano. Eu já tinha conversa com editores sobre um possível próximo livro, mas estava sem saber qual. Fiquei namorando a ideia. Daí, em abril de 2017, eu fiz uma segunda matéria para a revista já com a delação na rua, e a Odebrecht quebrando no Peru e nos demais países da América Latina.

E por que?

A empresa teve muito poder não só no Brasil, mas em todo o continente. No Peru, por exemplo, é acachapante. Jorge Barata, o executivo da Odebrecht que cuidava das relações de lá, mandava no Peru. Era o todo poderoso, fazedor de reis. Eles foram assim em muitos países. Daí ficou irresistível demais. Ficou muito claro que tinha uma história para um livro, de como essa empresa se ergue. Um Império continental as custas de relação com governantes. Nenhuma empresa levou a corrupção a esse estágio. Eles fizeram as relações com os governantes com um método por trás. Ao ponto de ter um organograma paralelo, que identificava a pessoa no escalão conforme sua relação política. Tinha a pessoa para o PMDB no Senado. Tinha a pessoa para Câmara. Você decifra o organograma da Odebrecht a partir do organograma do Estado.

Mas por que mesmo você gostou? Que tipo de livro gosta de escrever?

Eu gosto de escrever livros que tenham relação com a história do Brasil. Livro tem que ter uma missão. Para mim, só funciona dessa forma. Qual é a história que pode a ajudar a entender o Brasil? Quando terminei a reportagem, eu sabia que aquilo ajudaria a iluminar um período da história do país de uma forma que o noticiário muitas vezes não dá conta, pela própria natureza.

Algo nessa apuração te marcou, te ajudou a se definir pelo livro?

Teve uma frase de uma pessoa que eu entrevistei que me deu um clique. Foi com ela que eu falei: é isso! ‘Mais do que engenharia, o negócio deles é relacionamento. O que eles fazem, no que são bons mesmo, é relacionamento com os governos e os governantes’. Daí eu entendi que poderia contribuir.

A cultura empresarial deles te capturou?

Tem essa coisa da TEO, que me chamou muita atenção. Ouvi tanto da TEO quando eu fiz a primeira matéria que eu comprei. Li e pensei: ‘É um livro de autoajuda empresarial normal’. Isso foi no começo da reportagem para a Piauí. Então, fui entrevistando as pessoas e, ao fim, fui ler de novo a TEO. Parecia que eu estava lendo outro livro. E falei: 'Caraca, agora entendi'.

E o que você entendeu?

Entendi que o que está escrito não é necessariamente o que é ensinado. Tem uma frase assim: “aquilo que o cliente quer e precisa é o decisivo”. E, mais para frente tem: “o cliente não é um ente abstrato: não é o estado, não é o governo”. Eu, Malu, agora sei responder que também não é o contribuinte. O cliente é o governante. E aquilo que ele quer e precisa é o decisivo. Lá pelas tantas tem mais uma frase que coloquei no epígrafo do livro “o que funciona está certo”. Com essas três frases, você entende muito o que eles são e como operam. É uma organização muito baseada na confiança. É uma parceria entre homens, unidos, principalmente, pela lealdade. Norberto Odebrecht [avô de Marcelo] tinha fama de não assinar contratos à caneta. Ele assina à lápis. Porque o que vale é a confiança.

Quantas entrevistas e quantas fontes?

Entrevistas não sei contar. Eu falei ao longo de anos com as pessoas. Era uma conversa contínua. Mas, fonte, quando eu parei de contar eram 120. Foi muito comum nesse processo ter visões divergentes. São 78 delatores que estão falando e disputando a versão final da história. E a única forma de arbitrar é apurando. Para mim, é um prazer, mas é muito esforço. É legal, mas exaustivo.

O que aprendeu ao longo desse processo?

Que as pessoas querem saber o que você pensa. E que o que elas não querem é você não ouça. É tudo muito sensível. Essas pessoas passaram por processos desgastantes. Há dramas humanos muito intensos. Pessoas que perderam as esposas, que ficaram sem dinheiro. Não se pode desprezar isso. É o que eu quero contar. São pessoas normais. E isso tudo é muito importante para as pessoas entenderem que o corrupto não é um ser com aquela cara de rato dentro de uma sala escura. Ele é um pai, é uma mãe, é o seu tio e, muitas vezes, é você que paga uma propina para um flanelinha. Isso não é uma obra de alguns em cima de um prédio envidraçado. Isso é produto da nossa sociedade.

Demorou mais do que você pensava?

Sim, muito mais. Mas o tempo foi bom para o livro. As coisas foram sedimentando. As pessoas perderam o medo de contar. Aos poucos, algumas coisas deixaram de ser tabu. As pessoas foram se sentido à vontade para falar. Alguns conflitos se resolveram até dentro da cabeça das pessoas.

Você acha que as pessoas se arrependeram do que fizeram?

Algumas. É bonito ver que algumas aprenderam com os erros. Não estou dizendo que é se auto-imolar. Mas muitas dessas pessoas se engajaram no esforço do livro. Eu acredito e quero acreditar que é porque consideraram que poderia ser uma contribuição importante para o país e para o debate.

Como organizou sua rotina para continuar fazendo tudo?

Foi equilibrando pratos. Foram todos os finais de semana desde que comecei. Deixava uma tarde para a família do fim de semana e o restante para o livro. Aproveitava uma sexta-feira mais livre. E ia encaixando as entrevistas. Não tive férias ou feriados. Ficava no quarto de hotel ou no hall, escrevendo. Foram três anos assim. Eu vivi a Odebrecht e meus filhos também. Nem sei contar, quantas vezes coloquei minha filha para dormir, segurando a mão dela de um lado e com o computador de canto ou o celular passando mensagem, do outro.

Escrever livro dá dinheiro?

As pessoas tendem a achar que sim. Eu dou risada. Se for para ganhar dinheiro, melhor fazer outra coisa. Livro cobre o custo, mas não é para ficar rico. Eu vendi os direitos do livro do Eike para filmagem. Quando fechar o orçamento, eu vou receber uma parcela pequena. Daí, vai dar alguma coisa. Mas já foi o tempo que fazer livro dava para ficar rico. O tipo de livro que eu faço não vende milhões de cópias. Mas é como te falei: eu subi o Everest. Eu vi e aprendi coisas que muitos repórteres não viram. É muito mais valioso que uma pós-graduação, por exemplo.

O que te move nessa hora?

É uma coisa assim: as pessoas precisam saber disso. É um impulso que dá na gente. É um desejo de contribuir. É uma missão. Algo até meio piegas. Eu não acho que vou mudar o mundo. Mas eu quero ajudar a iluminar umas partes da história e se eu puder fazer isso sendo útil, fico feliz.

 

A Organização

Autora: Malu Gaspar

Selo: Companhia das Letras

ISBN: 9788535933994

Preço: 99,90

A Organização - livro da Malu Gaspar sobre Odebrecht

(Companhia das Letras/Divulgação)

 

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