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Estados Unidos (EUA)

O legado de Henry Kissinger

Um dos personagens mais influentes – e controversos – das relações internacionais no século XX, Kissinger traz lições importantes para um mundo novamente marcado pela política das grandes potências, escreve Richard Haass

Henry Kissinger, na época Secretário de Estado dos EUA, com o premier chinês Zhou Enlai no Grande Salão do Povo, em Pequim (Bettmann/Getty Images)
Henry Kissinger, na época Secretário de Estado dos EUA, com o premier chinês Zhou Enlai no Grande Salão do Povo, em Pequim (Bettmann/Getty Images)
Richard Haass

Richard Haass

11 de dezembro de 2023 às 16:11

NOVA YORK – É difícil imaginar o mundo sem Henry Kissinger, não apenas por ele ter vivido até os 100 anos, mas por ter ocupado um influente – e por vezes dominante – lugar na política externa e nas relações internacionais americanas durante mais de meio século.

Nascido na Alemanha em 1923, Kissinger imigrou para os Estados Unidos em 1938, retornou à Alemanha enquanto estava no exército dos EUA, depois foi aluno e mais tarde membro do corpo docente da Universidade de Harvard.

Serviu durante oito anos no governo dos EUA, primeiro como conselheiro de segurança nacional e depois como secretário de Estado (desempenhando ambas as funções simultaneamente entre 1973 e 1975) sob os presidentes Richard Nixon e Gerald Ford.

Suas realizações no cargo foram muitas e substanciais. Para começar, houve a abertura com a China, uma oportunidade criada pela cisão sino-soviética, mas identificada e depois explorada por Kissinger e Nixon para exercerem influência sobre a União Soviética, o principal adversário dos EUA.

Essa abertura diplomática não só pôs fim a décadas de hostilidade entre os EUA e a China, como também produziu uma fórmula para atenuar as diferenças em relação a Taiwan, lançou as bases para a transformação econômica chinesa e estabeleceu uma relação duradoura e cada vez mais importante.

Houve também o relaxamento das tensões com a União Soviética. Kissinger e Nixon estruturaram a relação entre as duas superpotências da época. Isso permitiu conversas sobre o controle de armas nucleares, regras de conduta para a gestão de conflitos envolvendo seus respectivos aliados e cúpulas regulares – tudo isso ajudou a manter fria a Guerra Fria em um momento em que poderia ter esquentado ou, pior, levado à escalada nuclear.

Depois houve o Oriente Médio. Os paralelos com os dias de hoje são surpreendentes, uma vez que foi há exatamente 50 anos que Egito e Síria pegaram Israel desprevenido com um ataque surpresa, exatamente como o Hamas fez no dia 7 de outubro.

Kissinger e Nixon garantiram que Israel tivesse o apoio militar de que necessitava; mas também pressionaram os israelitas para que não usassem excessivamente a força militar, pois isso poderia arrastar a União Soviética para a guerra ou eliminar as perspectivas de diplomacia nesse rescaldo. A “habilidade pessoal de Kissinger ajudou a conseguir um cessar-fogo e a separação das forças armadas opostas, preparando o terreno para o acordo de paz egípcio-israelense negociado pelo presidente Jimmy Carter.

Essas realizações, qualquer uma das quais constituiria um significativo legado para um secretário de Estado, demonstram muitos dos elementos centrais da abordagem de Kissinger aos assuntos mundiais.

Ele abraçou a diplomacia, sem dúvidas; mas foi uma diplomacia que funcionou num contexto favorável de equilíbrio de poder. Não foi apenas diplomacia, mas diplomacia com moderação.

Kissinger era um conservador. Ele priorizou a ordem, o que significava que os seus esforços para evitar a guerra tinham precedência sobre os objetivos mais ambiciosos propostos por outros que queriam transformar países ou impor a paz com justiça.

Sua ênfase estava mais diretamente nas relações entre os países do que na política dentro deles. Na sua opinião, a principal tarefa da política externa dos EUA era moldar a política externa de outros .

Esses assuntos se encontram em muitos de seus livros e artigos, desde sua dissertação de doutorado e suas memórias até suas reflexões sobre armas nucleares, alianças, diplomacia e – mais recentemente – ordem mundial, China e inteligência artificial.

Mesmo que Kissinger nunca tivesse servido no governo, ele ainda teria exercido uma profunda influência na política externa dos EUA por meio do poder das suas ideias e da eloquência de seus escritos.

É claro que existiram outros grandes e modernos secretários de Estado dos EUA, como George Marshall, Dean Acheson e James Baker. Mas nenhum se compara a Kissinger quando se trata de ser ator e analista. Ele foi o mais proeminente praticante acadêmico de sua época.

Mas isso não significa que Kissinger não tenha entendido errado algumas coisas. Ele certamente o fez, como seus muitos detratores e críticos são rápidos em apontar .

As políticas mais controversas às quais ele esteve associado envolveram a guerra do Vietnã. Os críticos da guerra culpam Kissinger por prolongá-la e expandi-la até o Camboja, em um momento em que muitos a consideravam tanto invencível como algo pelo qual não valia a pena lutar.

Mas ele também atraiu críticas dos que apoiavam a guerra, devido ao seu papel na negociação de seu fim. Os termos da “paz” permitiram ao Vietnã do Norte alcançar a vitória sobre o Sul em dois anos.

Kissinger também desempenhou um controverso papel nos acontecimentos de 1971, quando apoiou o Paquistão (um aliado dos EUA que ajudou nas negociações com a China), apesar dos relatos de que o seu governo estaria levando a cabo uma massiva campanha de repressão, ou o que muitos consideraram ter sido um genocídio, onde hoje é Bangladesh.

Finalmente, Kissinger ainda suscita intensas críticas pelo seu papel na tentativa de derrubar o governo democraticamente eleito de Salvador Allende no Chile, devido às suas tendências ideológicas.

Ocasionalmente o diplomata tentava refutar essas e outras críticas sobre suas políticas. Mas seus esforços não foram totalmente convincentes, porque algumas das principais críticas tinham mérito. O ponto principal, porém, é que suas realizações foram grandiosas e muito maiores que seus fracassos .

O resultado é um duradouro e digno legado de seriedade sobre o mundo e sobre o perigo de uma política externa dos EUA definida ou pelo sub alcance (isolacionismo) ou pelo exagero (tentando  transformar situações ou regimes que só podem ser, na melhor das hipóteses, gerenciados).

É um legado que os americanos deveriam prestar atenção, uma vez que enfrentam outra vez um mundo marcado pela política das grandes potências e pela crescente desordem. 

Direitos Autorais: Project Syndicate, 2023. www.project-syndicate.org

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Richard Haass

Richard Haass

Presidente Emérito do Council of Foreign Affairs

É conselheiro sênior da Centerview Partners e autor de The Bill of Obligations: The Ten Habits of Good Citizens (Declaração de Obrigações: Os Dez Hábitos dos Bons Cidadãos) [Penguin Press, 2023] e da newsletter semanal Home & Away.