Revista Exame

O que muda com o coronavírus nas relações entre os países

Países devem internalizar a produção de insumos essenciais e diversificar a cadeia de fornecedores

Complexo industrial da Basf: agilidade para criar novos produtos na crise | (Germano Lüders/Exame)

Complexo industrial da Basf: agilidade para criar novos produtos na crise | (Germano Lüders/Exame)

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Carla Aranha

Publicado em 16 de julho de 2020 às 05h40.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 12h00.

Como muitos empreendedores da Índia, a química Vinati Mutreja, de 36 anos, não tem tido descanso desde o início da crise do coronavírus. Presidente da Vinati Organics, indústria farmacêutica fundada por sua família há 30 anos, ela viu disparar as vendas nos últimos meses. Grande parte da produção tem sido exportada para países como os Estados Unidos e a Alemanha.

“Os países ocidentais ficaram mais atentos ao risco de depender de alguns poucos fornecedores e estão diversificando as compras”, diz Mutreja. Em maio, as exportações de fármacos da Índia cresceram 27% em relação a abril, alcançando 2 bilhões de dólares. As vendas externas de produtos químicos aumentaram 7% de janeiro a abril e devem continuar se expandindo.

No Vietnã, um importante exportador de componentes eletrônicos, está ocorrendo algo parecido. Enquanto a economia de boa parte do mundo encolheu, o PIB do país cresceu 3,4% de janeiro a abril deste ano.

“A crise da covid-19, que provocou uma interrupção na entrega de mercadorias essenciais, poderá resultar numa reconfiguração permanente das cadeias globais de valor, com países e empresas reduzindo a exposição ao risco de suas cadeias de suprimentos”, disse Patrick Alexandre Kirby, economista sênior do Banco Mundial, em entrevista à EXAME.

Países como Japão, Alemanha, França e Austrália já têm lançado mão de algumas estratégias. “Os países estão procurando diversificar o leque de fornecedores, aumentando as compras de lugares como o Vietnã e a Índia, e focando internamente a produção de determinados insumos essenciais”, afirma Koray Köse, diretor de cadeias globais de suprimentos da consultoria Gartner nos Estados Unidos.

Linha de produção na China: o preço deixa de ser o único fator a ser considerado | (China Daily//Reuters)

O susto provocado pela crise do coronavírus foi grande. O mundo não ficou apenas sem respiradores nos primeiros meses da pandemia. Por pouco, não faltaram também remédios e peças para montar camas hospitalares, fabricadas majoritariamente na China.

Hoje, a indústria chinesa responde pela produção de 32% dos antibióticos consumidos no mundo, 43% das vitaminas e 59% dos componentes de telecomunicações. A indústria de peças para a fabricação de automóveis é outro motor do crescimento chinês. Mais de 35% das autopeças utilizadas pelas montadoras japonesas vêm da China.

“Em casos de disrupção das cadeias de abastecimento, como aconteceu agora com a pandemia, os países correm o risco de simplesmente ter de parar a produção de uma série de itens”, diz o economista Jeffrey Schott, pesquisador do Instituto Peterson, de Washington, e gestor do Tesouro americano entre 1974 e 1982. “No caso de alguns itens médico-hospitalares e de insumos para a agricultura, por exemplo, isso pode ter consequências muito graves.”

O Japão lançou em abril um programa de 2 bilhões de dólares para ajudar as empresas a deixar a China e levar sua base de produção de volta para o país. A União Europeia decidiu acelerar, em março, o plano de desenvolvimento de novos insumos da área de saúde e tecnologias de automação industrial, que permitem a redução de custos e os ganhos de produtividade.

O programa vai contar com investimentos de 300 bilhões de euros por ano, bancados pelo Banco Central Europeu e por investidores.

A ideia não é simplesmente abrir mão dos produtos fabricados na China e de seus custos imbatíveis, mas diversificar a produção local, investindo principalmente nos insumos que são mais importantes para cada país. No caso do Japão, uma das maiores preocupações é com o setor de autopeças e produtos hospitalares.

Nos Estados Unidos, onde mais de 70% das caixas de primeiros-socorros são de origem chinesa, a luz vermelha também acendeu para as importações de produtos da área de saúde.

Com o bem-estar das pessoas em jogo, o ponteiro da bússola do sistema de trocas internacional passou a apontar mais para os próprios países consumidores. “Não podemos afastar o risco de novos eventos com potencial de impactar as cadeias globais de suprimentos”, diz Antônio Lacerda, vice-presidente sênior da Basf para a América do Sul.

A empresa química vem se tornando uma das principais clientes da indiana Vinati Organics, como parte dos esforços para buscar novos fornecedores globais. No Brasil, uma das principais estratégias tem sido internalizar a produção de determinados insumos.

Em abril, a Basf obteve autorização da matriz, na Alemanha, em tempo recorde, para começar a produzir no Brasil uma substância que transforma o álcool comum, produzido pelas usinas de cana-de-açúcar, em álcool em gel, que estava em falta no país. As vendas bateram recorde. Já foram produzidas mais de 200 toneladas do produto para 100 clientes distribuídos pelo país.

A área responsável pelos estudos sobre produtos que podem ser fabricados no Brasil e trazer mais rentabilidade local para a companhia não tem parado um segundo. A Basf deverá começar a fabricar pelo menos três insumos, que até então vinham da Alemanha, nas fábricas de Jacareí e Guaratinguetá, no interior de São Paulo, entre eles um aditivo que melhora a durabilidade do asfalto e fluidos para freios de carros.

“As empresas para as quais vendemos perceberam que é menos vantajoso esperar um carregamento de navio, que pode atrasar, como aconteceu agora, do que comprar de uma indústria com produção local”, afirma Lacerda. “A demanda por produtos fabricados no próprio país cresceu muito.” Os custos de produção são diluídos pelos ganhos de escala e pelo aprimoramento dos processos tecnológicos, que proporcionam uma economia de tempo e de mão de obra.

Contêineres em porto: a infraestrutura é o calcanhar de aquiles do Brasil | Martin Pollard/Reuters (Martin Pollard/Reuters)

 

Para isso, é necessário investir em inovação. Não por acaso, os maiores países exportadores são mestres nisso. A China, cujas exportações somam 2,5 trilhões de dólares por ano, investe em média 2,3% de seu PIB em pesquisa. Na Coreia do Sul, o governo e a iniciativa privada aplicam 4,5% do total de riquezas geradas pelo país em inovação. A União Europeia tem seguido o mesmo caminho.

Em junho, o presidente francês, Emmanuel Macron, anunciou que o laboratório Sanofi deverá investir 490 milhões de euros para abrir um novo centro de pesquisa de vacinas na França. A intenção é posicionar o país como um centro de excelência mundial na fabricação de fármacos, além de ganhar a corrida mundial do lançamento da vacina contra o novo coronavírus.

Com mais países buscando ocupar espaços estratégicos no cenário pós-pandemia, o Brasil precisa abrir o olho. “Em um cenário global com tantas incertezas, a agilidade se tornou um ativo fundamental”, diz Bruno Porto, sócio da consultoria PwC. A despeito da burocracia brasileira e do alto custo de produzir no Brasil, algumas empresas com sede no país não estão se saindo mal.

A catarinense Malwee, fabricante de roupas, conseguiu produzir mais de 10 milhões de máscaras e 10 milhões de jalecos médicos em apenas dois meses. A subsidiária brasileira da alemã Thyssenkrupp, mais conhecida por aqui pela produção de elevadores, fabricou em abril, em apenas dois dias, 10.000 placas de liga de alumínio de alta resistência para a fabricação de respiradores.

“Essa produção de grandes volumes em poucos dias foi possível, em boa parte, porque investimos muito em processos de automação e novas tecnologias”, diz Paulo Alvarenga, presidente da Thyssenkrupp para a América do Sul.

Centro de distribuição de autopeças no Brasil: 11% dos componentes vêm da China | Leandro Fonseca (Leandro Fonseca/Exame)

 

Os investimentos não se limitam a tecnologias que permitam o aumento da produtividade. Na sede da empresa, na Alemanha, uma sala com dezenas de telas de computador mostra, em tempo real, as mercadorias que estão sendo entregues pela empresa no mundo.

Softwares de inteligência artificial e internet das coisas, conectados a sensores colocados nos caminhões que levam os produtos da empresa, indicam as melhores rotas de transporte. “A tecnologia otimiza a logística e reduz custos, já que possibilita mudanças para trajetos melhores caso ocorra algum problema”, afirma Alvarenga.

Essas mesmas tecnologias são utilizadas no comércio mundial. Softwares com base na análise de dados aliada à inteligência artificial fazem varreduras nas redes sociais para levantar palavras-chave que possam indicar disrupções de transporte e produção, como terremotos e outros fenômenos naturais. Sensores acoplados às embalagens de produtos sensíveis, como alimentos perecíveis e equipamentos médicos, enviam informações sobre as condições de temperatura e pressão. “Com o coronavírus, essas tecnologias estão sendo cada vez mais utilizadas para minimizar perdas e detectar riscos”, diz Celso Kassab, sócio da consultoria Deloitte.

Empresas como a Malwee, a Basf e a Thyssenkrupp mostraram que o parque fabril brasileiro tem condições de agir rápido sob pressão e adaptar-se às mudanças — pelo menos as companhias que não dependem de crédito para sobreviver e já têm seu espaço garantido no mercado. Os analistas internacionais ouvidos pela EXAME apontam que o Brasil está no páreo para aproveitar as novas oportunidades que deverão ser geradas pela reformulação das cadeias globais de suprimentos. “Os executivos brasileiros convivem bem com crises e o país tem aprimorado aspectos como a infraestrutura”, diz Köse, da Gartner. “A proximidade do país com a Europa e os Estados Unidos também é levada em conta por multinacionais e investidores que estão estudando novos países para diversificar sua produção.”

A burocracia e os custos é que não ajudam. De acordo com cálculos do Ministério da Economia, os gastos para as empresas brasileiras se integrarem a cadeias produtivas globais chegam a 100 bilhões de reais por ano. Esse valor inclui as perdas com a burocracia e com os gargalos da infraestrutura. “É muita coisa”, diz Gustavo Ene, secretário de Desenvolvimento, Indústria e Comércio do Ministério da Economia. “Por isso é tão importante criar maneiras de abrir a economia, estimular a produção e nos posicionar melhor globalmente.”

O Brasil compete com países como o México, na América Latina, na busca por novos centros de produção deflagrada pela pandemia. No mundo, nossos concorrentes são ainda mais abrangentes, com lugar garantido para Índia, Vietnã e outros países do Sudeste Asiático. “Os países mais bem posicionados em geral têm mão de obra com boa formação, infraestrutura adequada e um ambiente favorável aos negócios”, diz Köse. Nesse aspecto, o Brasil precisa melhorar: destina pouco mais de 1% do PIB à área de pesquisa e desenvolvimento, abaixo dos maiores exportadores, e vem tendo resultados pífios em testes globais, como o Programa Internacional da Avaliação de Estudantes (Pisa).

Internalizar mais a produção de insumos essenciais e se preparar para interrupções das cadeias de suprimentos não é para qualquer um. Atrair a atenção de países interessados em diversificar a cadeia de fornecedores também não é uma missão trivial. Estabilidade política, reformas econômicas, atenção a pautas que ganharam peso com a crise, como a sustentabilidade, também contam. Ganharão aqueles que entenderem as novas regras do jogo.

PRONTOS PARA NOVOS RISCOS

Os países precisam diversificar seus fornecedores e se preparar para novas crises, segundo especialista em cadeias globais | Carla Aranha

Jeffrey Schott: política para a produção local de insumos essenciais | Divulgação (Divulgação/Divulgação)

 

O economista americano Jeffrey Schott, pesquisador do Instituto Peterson, em Washington, e autor de mais de dez livros sobre políticas de comércio internacionais, vem observando com atenção a reação dos países às disrupções do comércio global causadas pela pandemia. Ele falou à EXAME sobre os ensinamentos da crise atual.

O que deve mudar nas cadeias globais de suprimentos por causa da crise do coronavírus?

Ficou clara a necessidade de fortalecer sistemas de compras com mais países, em vez de depender de um único país para ter acesso a insumos essenciais, como princípios ativos de remédios e produtos químicos. Países como o Japão estão internalizando a produção de algumas matérias-primas, e o mesmo deverá ser observado em outros países.

Os países desenvolvidos já vinham incentivando a produção local de produtos básicos para reduzir a dependência de poucos fornecedores mundiais?

Sim. Há diversos exemplos, que vão da Austrália à Alemanha, de uma preocupação crescente com essa dependência. Esses países já estavam fazendo investimentos significativos em inovação e na automação do parque industrial para fabricar artigos a custos mais baixos
e com qualidade.

Mas, ainda assim, os produtos chineses não são mais baratos?

São e provavelmente vão continuar sendo. Não se trata de deixar de comprar da China, mas de criar visões de longo prazo para fortalecer a produção local de produtos que não podem faltar. O coronavírus intensificou esse processo porque deixou muitos países à míngua em relação a respiradores e outros produtos da área médica.

Ao mesmo tempo, existe uma tendência de diversificar os fornecedores globais?

Sem dúvida. A questão do preço é importante, mas de nada adianta ter um fornecedor com um preço maravilhoso se você não tem acesso a ele por algum motivo. A humanidade não está livre de novos riscos, como fenômenos climáticos e até novas doenças. Precisamos nos preparar para isso.

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