Manifestação em São Paulo: a polarização política é um risco para democracias frágeis | Eduardo Knapp/Folhapress /
Da Redação
Publicado em 7 de junho de 2018 às 05h00.
Última atualização em 7 de junho de 2018 às 05h00.
Professor da área que estuda governos na Universidade Harvard, o americano Steven Levitsky é uma das vozes mais respeitadas no atual debate sobre o fenômeno mundial do populismo. Seu livro How Democracies Die (“Como as democracias morrem”, numa tradução livre), escrito em parceria com Daniel Ziblatt, outro professor, foi lançado no começo deste ano e esteve várias semanas na lista dos mais vendidos do jornal The New York Times. Levitsky construiu sua carreira acadêmica nas últimas três décadas analisando as jovens democracias e os movimentos populistas da América Latina. “Quando Donald Trump chegou à Casa Branca, eu pensei: ‘Já vi esse filme antes’”, diz. Ao seu temor sobre o futuro da democracia americana juntou-se agora uma grande preocupação com o que ocorre no Brasil. No café do Centro de Estudos Internacionais e Governo de Harvard, Levitsky deu a seguinte entrevista a EXAME.
No livro “Como as democracias morrem”, o senhor só menciona o Brasil nas épocas de Getulio Vargas e da ditadura militar. A democracia brasileira não está ameaçada?
Nosso foco foram as lições deixadas por exemplos de falência de democracias no passado e os diferentes formatos de regimes autoritários. Por isso não mencionamos o período atual do Brasil. Mas falamos do período de 1964, um bom exemplo de como uma polarização política pode acabar com uma democracia muito frágil. Já Vargas é um exemplo de um presidente eleito democraticamente que, com um estilo autoritário, enfraquece as instituições democráticas durante o exercício da Presidência. O período atual é diferente. Até bem recentemente, o Brasil era considerado um exemplo de sucesso em termos de sua experiência democrática. O Brasil é um país difícil de governar. É grande, diverso e desigual. Ainda assim, o Brasil tem vivido o período mais extenso de sua história como uma democracia. E até agora a democracia se mantém intacta. Ainda não é um caso de rompimento democrático. E eu espero que não venha a ser.
Qual é sua leitura dos pedidos de intervenção militar durante a greve no setor de transportes e de pesquisas, que mostram as Forças Armadas como a instituição mais confiável?
Antes de mais nada, é importante não dar um grande peso à opinião pública. Pesquisas realizadas no Brasil no começo e na metade dos anos 90 mostravam um apoio baixo à democracia e um apoio potencial a governos autoritários. O mesmo acontecia no Chile. O ponto crucial é o comportamento das elites. Falo de partidos políticos e grupos de interesse, como associações empresariais, sindicatos e a Igreja. Se as principais lideranças políticas e sociais, o que inclui a imprensa, continuarem fiéis às regras democráticas e unirem-se contra a ideia de um golpe, a democracia poderá — e muitas vezes consegue — sobreviver a pe-ríodos de descontentamento generalizado. É preciso ficar de olho nas movimentações da elite.
Então os cartazes nas ruas pedindo os militares são inofensivos?
Obviamente, é um sinal alarmante quando se começa a ouvir pedidos de golpe, mas diria que não é nada surpreendente. O Brasil vive uma tempestade perfeita. Um escândalo de corrupção gigantesco que atinge quase toda a classe política. Estamos falando de um escândalo que talvez seja o maior da história das democracias modernas. Aliada a isso, uma profunda crise econômica. Uma única entre essas duas situações já seria desafiadora. As duas ao mesmo tempo é um duro teste para qualquer democracia. Para piorar as coisas ainda mais, o Brasil se tornou surpreendentemente polarizado. E não só isso. O PT, um dos maiores partidos do país, agora tem a percepção de que foi tratado de forma injusta por seus rivais da direita. O impeachment questionável de Dilma Rousseff, que era menos corrupta do que aqueles que votaram pelo seu afastamento, e a prisão de Lula, líder nas pesquisas para a corrida presidencial deste ano, mudaram o jogo político no país. Tanto o impeachment quanto a prisão foram legais e podem ser justificados, mas temos de reconhecer duas coisas. Primeiro, que ambos foram atos antidemocráticos — a remoção de uma presidente eleita do Planalto e de um candidato a presidente. Em segundo lugar, essa situação abre a possibili-dade de o PT colocar um pé fora do jogo democrático. Isso tudo sem falar em Jair Bolsonaro. Uma democracia pode morrer de várias formas. Uma delas é a eleição de um outsider autoritário, como Bolsonaro.
O senhor parece bem pessimista…
Todas as democracias enfrentam crises, inclusive severas. O essencial para uma consolidação democrática duradoura é ter a capacidade de sobreviver a essas crises. Ou seja, manter as regras da democracia intactas até que a tempestade passe. A tempestade vai passar no Brasil. A questão é se as elites vão resistir à tentação de quebrar as regras antes que o pior tenha passado.
A eleição deste ano é a mais importante desde a redemocratização?
Sim. Há muita incerteza e muito descontentamento. As pessoas parecem querer punir o sistema com seu voto. E há um candidato que não parece ter compromisso com a manutenção da democracia. A eleição deste ano é um grande perigo para a democracia brasileira.
Fernando Collor chegou à Presidência com um partido nanico, mas a eleição de 1989 foi atípica. Os eleitores escolheram apenas o presidente. Nas eleições deste ano, os brasileiros vão escolher deputados estaduais e federais, senadores e governadores, que fazem campanha para si mesmos e para o candidato presidencial de seu partido. Qual é a chance de Bolsonaro ganhar sem contar com a capilaridade de um partido grande?
No caso do Brasil, a pergunta se é possível chegar à Presidência sem o apoio de um partido grande ainda está em aberto. Nos Estados Unidos, Donald Trump era o candidato dos republicanos, mas a maior parte do partido não trabalhou ativamente por sua candidatura. Durante as primárias, ele ganhou de candidatos que tinham campanhas com mais dinheiro do que a dele. Tudo na base do nome e da exposição na mídia. Acho que um outsider pode ganhar no Brasil usando a mesma receita de Trump.
Há duas narrativas opostas no Brasil. Uma delas sustenta que Dilma foi vítima de um golpe e que as elites se uniram para colocar Lula na cadeia. A outra narrativa diz que o que estamos vendo é o fortalecimento das instituições e que cardeais de outros partidos também serão presos. Qual dessas narrativas está mais próxima da realidade?
Acho que é um pouco das duas. Foi meio estranho que Dilma tenha sofrido o impeachment e Michel Temer, eleito vice em sua chapa, não. Há políticos de outros partidos que deveriam estar na cadeia e não estão por causa de leis ou decisões que os protegem. Mas, dito isso, não vejo evidência de que o Judiciário esteja trabalhando numa aliança com políticos de direita. O que existem são sinais fortes de que o Judiciário surgiu como uma força muito poderosa.
O senhor defende que a democracia depende de leis e de normas não escritas que são respeitadas por todos. Como isso se aplica ao Brasil?
Acredito que entre 1985 e 2014 o Brasil desenvolveu normas bastante fortes. Posso citar a tolerância mútua entre os partidos de direita e de esquerda e a divisão de poderes. Essas normas se entrelaçavam com corrupção. A cooperação política no Brasil era reforçada pelo entendimento comum de que políticos podiam roubar. Porém, é certo dizer que, independentemente de corrupção, o Brasil criou normas democráticas fortes. A polarização recente, no entanto, começa a enfraquecê-las. Com a segunda eleição de Dilma, ambos os lados começaram a achar que seu oponente era uma ameaça. A direita falava que Lula poderia suceder Dilma, transformando o PT numa espécie de PRI, partido que governou o México por boa parte do século 20. O impeachment de Dilma pode ter sido legal, mas também foi uma amostra de falta de tolerância mútua por parte da direita.
Antes de sua prisão, Lula atacava a imprensa e o Judiciário. Lula é um populista?
Lula veio de baixo e fez parte do movimento popular, fora do figurino populista de Juan Perón, Hugo Chávez e Vargas, membros da elite com fortes tons personalistas. Estou falando do Lula dos anos 70 e 80. Esse Lula não era populista de jeito nenhum. O Lula dos anos 90 e da década passada era, essencialmente, um social-democrata. Ele tornou o PT parte do establishment, o oposto do populismo. No Lula pós-Lava-Jato, começamos a ver talvez um apelo populista. O PT construiu a narrativa de que a direita se armou para derrubá-lo e que conseguiu atingir seu objetivo. Isso é muito perigoso para a democracia. Se Lula tentar usar essa narrativa para mobilizar as massas e tentar atacar as elites, pela primeira vez estará sendo populista.