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El Niño veio para ficar

Após o ano mais quente já registrado, o fenômeno El Niño continua relevante em 2024, e ameaça o motor do PIB brasileiro: o agronegócio

Conferência do clima: estudo divulgado pela ONU na COP28 comprova que, no Brasil, os últimos nove anos foram os mais quentes da história (Leandro Fonseca/Getty Images)

Conferência do clima: estudo divulgado pela ONU na COP28 comprova que, no Brasil, os últimos nove anos foram os mais quentes da história (Leandro Fonseca/Getty Images)

Publicado em 21 de dezembro de 2023 às 06h00.

O ano de 2023 deverá ser o mais quente já registrado na história. A confirmação veio do relatório preliminar do Estado Global do Clima, divulgado pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), divulgado na COP28, a conferência do clima da ONU, realizada em Dubai no início de dezembro. Dados da agência, compilados até ao final de outubro, mostram que o ano foi cerca de 1,4 grau Celsius acima da linha de base pré-industrial de 1850-1900. Para ter uma ideia do tamanho da gravidade do momento, a OMM cita que, ao se comparar o ano de 2023 com 2016 e 2020, anteriormente classificados como os mais quentes, a diferença é tão grande que se tornou improvável uma alteração depois de serem incluídos os dois últimos meses do ano.

No Brasil, as temperaturas também estão subindo. O estudo lembra que os últimos nove anos foram os mais quentes já registrados. Várias cidades brasileiras, por exemplo, viram os termômetros alcançarem temperaturas inéditas. Araçuaí (a 678 quilômetros de Belo Horizonte), teve em novembro o dia mais quente no registro histórico no Brasil, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Com cerca de 30.000 habitantes, a cidade mineira, localizada no Vale do Jequitinhonha, chegou a uma temperatura de 44,8 graus Celsius. Até então, a maior temperatura já registrada no país tinha sido de 44,7 graus Celsius em Bom Jesus (PI), em 2005.

O cenário preocupa o agronegócio, o motor do PIB brasileiro, que já enfrenta consequências. A esta altura do calendário safra, o plantio da soja já deveria estar mais avançado em diversos estados. No Mato Grosso, maior produtor do país, o Instituto Mato-Grossense de Economia Agropecuária (Imea) revela que a semeadura está atrasada 4% em relação à média dos últimos cinco anos.

A onda de calor está relacionada a um fenômeno conhecido, mas que surgiu com força desproporcional este ano. Segundo a OMM, o aquecimento provocado pelo fenômeno El Niño, iniciado durante a primavera do Hemisfério Norte de 2023, se desenvolveu rapidamente durante o verão. Espera-se por um calor ainda maior em 2024, já que o fenômeno costuma ter mais impacto nas temperaturas globais após atingir o seu pico.

O secretário-geral da OMM, Petteri Taalas, lembra que os níveis de gases causadores do efeito estufa (GEE) e as temperaturas globais são recorde, assim como a subida do nível do mar e do gelo marinho da Antártida, que atingiu uma proporção jamais vista. “É uma cacofonia ensurdecedora de recordes batidos”, diz. “Estas são mais do que meras estatísticas. Arriscamo-nos a perder a corrida para salvar os nossos glaciares e controlar a subida do nível do mar. Não podemos regressar ao clima do século 20, mas temos de agir agora para limitar os riscos de um clima cada vez mais inóspito neste e nos próximos séculos.”

Quando é hora de plantar

A corrida entre as safras se deve ao encurtamento do período de chuvas, pois isso influencia a produtividade, o fluxo operacional, a pós-colheita e até a logística. “Pela extensão territorial que permite diversos climas, o Brasil é menos prejudicado do que os outros países. Mesmo assim, o cenário é preocupante. O período de chuva está cada vez menor e, às vezes, o volume pluviométrico é o mesmo. Se chove tudo ao mesmo tempo também não é bom”, diz Alcides Torres, diretor da Scot Consultoria. A mudança do clima mexe também com a umidade e com o comportamento do solo. “O clima tem mudado muito, e isso altera toda a biodinâmica do lugar, nas pragas, então, a proliferação de indutores de doença é enorme. Não podemos ficar jogando inseticida sem parar, portanto é preciso soluções mais sustentáveis, como sementes mais resistentes, com biotecnologia”, afirma Torres.

Se o alerta dos produtores não basta, talvez o do mercado financeiro faça com que os investidores levem esse menino do dedo quente a sério. Em dezembro, a SLC Agrícola, maior produtora de grãos do país, anunciou que revisou em 3% sua projeção de área plantada na safra 2023/2024, especialmente de soja. A alteração se dá em virtude do El Niño e suas consequências climáticas adversas “inadequadas para o desenvolvimento da soja, principalmente no Oeste do Mato Grosso, região mais afetada pela seca”, segundo a companhia.

Para os analistas Thiago Duar­te, Henrique Brustolin e Pedro Soares, do Banco BTG Pactual (do mesmo grupo de controle da EXAME), a notícia não é totalmente surpreendente. Relatos recentes sobre as condições climáticas na Região Centro-Oeste do Brasil, especialmente no estado de Mato Grosso, como a EXAME vem mostrando, preocupam. “Temperaturas elevadas e chuvas irregulares comprometeram o desenvolvimento da soja plantada precocemente em diversas partes do estado, resultando em replantios. Em alguns casos, agricultores optaram por desistir da soja e antecipar o plantio do algodão”, escrevem em relatório.

O grande recado para o agronegócio nacional talvez seja o reflexo que a decisão da SLC pode ter no mercado como um todo. “A SLC Agrícola é a maior e provavelmente a mais diversificada produtora de algodão e soja no Brasil. O fato de a SLC enfrentar um impacto significativo sugere que o Brasil como um todo pode enfrentar revisões para baixo nas projeções de safra de soja e, principalmente, milho”, afirmam. As últimas estimativas da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para 2023/2024 apontam uma produção total de soja e milho de 162 milhões e 119 milhões de toneladas, respectivamente (+5% e -10% ano a ano). “Achamos isso excessivamente otimista. Estamos esperando revisões para aproximadamente 150 milhões e 115 milhões de toneladas, respectivamente, uma redução de 3% e 13% em relação ao ano anterior”, dizem os analistas do Banco BTG.

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