Mundo

Por que a China pode ter três times olímpicos nos Jogos de Tóquio?

A múltipla formação de times da China nas Olimpíadas nunca foi um grande problema... até agora em Tóquio

Homem comemora com bandeira de Hong Kong a medalha de prata da nadadora Siobhan Haughey ao lado de manifestantes pró-China em um shopping de Hong Kong nesta sexta (30). (Tyrone Siu/Reuters)

Homem comemora com bandeira de Hong Kong a medalha de prata da nadadora Siobhan Haughey ao lado de manifestantes pró-China em um shopping de Hong Kong nesta sexta (30). (Tyrone Siu/Reuters)

Mariana Martucci

Mariana Martucci

Publicado em 1 de agosto de 2021 às 13h04.

Última atualização em 2 de agosto de 2021 às 16h46.

Duas equipes, de duas cidade chinesas diferentes, se enfrentando em uma partida de badminton pode não parecer nada incomum. Em território chinês, estas equipes se enfrentam o tempo todo. Porém, essa partida aconteceu na semifinal da modalidade durante os Jogos Olímpicos de Tóquio. Para a China, poder colocar em campo duas equipes distintas em campo, parece ser o melhor dos mundos. Além do uniforme vermelho do continente, podemos avistar também o azul royal de Hong Kong.

A múltipla formação de times da China nas Olimpíadas o equivalente, por exemplo, aos Estados Unidos colocarem uma equipe nacional e outra de atletas exclusivamente de Nova York nunca foi um grande problema... até agora em Tóquio.

Em primeiro lugar, Hong Kong está ganhando medalhas como nunca havia conquistado antes. Tóquio está sendo o jogo de maior sucesso de todos os tempos para a cidade de 7,5 milhões de habitantes na costa sul da China. A medalha de ouro na esgrima masculina nesta semana, com o atleta Edgar Cheung, foi a primeira de Hong Kong desde que a antiga colônia britânica foi assumida novamente pela China em 1997.

Quando o atleta de windsurf Lee Lai Shan havia ganhado, até então, o primeiro e único ouro de Hong Kong, nos Jogos de Atlanta em 1996, foi tocado "God Save the Queen" durante cerimônia de medalha. Em Tóquio, foi o hino da China ("Marcha dos Voluntários"). Atualmente, mesmo com a divisão de equipes, o hino tocado durante o pódio de Hong Kong ainda é chinês.

E não é só Hong Kong: caso os atletas da Ilha do Pacífico de Guam ou das Ilhas Virgens dos EUA no Caribe conquistem o pódio em Tóquio, o hino que seus atletas ouviriam seria o dos EUA, "The Star Spangled Banner". Como territórios dos EUA, eles competem sob suas próprias bandeiras nos jogos, como Hong Kong. Samoa Americana e Porto Rico também têm seus próprios times.

A nadadora Siobhan Haughey, nascida em Hong Kong, também conquistou duas medalhas de prata em Tóquio, tornando-se a primeira atleta a ganhar mais que uma medalha pela sua cidade. Sua coleção combinada de medalhas supera o ouro, a prata e o bronze que Hong Kong acumulou em todas as suas apresentações anteriores, desde sua estreia olímpica em 1952.

Mas o sucesso também levanta uma questão: é justo que a China - com uma equipe chamada China e a outra Hong Kong, China - esteja conseguindo vários caminhos para pódios olímpicos? Em vez disso, os atletas de Hong Kong deveriam ser incluídos na equipe nacional da China - como, por exemplo, atletas da Escócia, País de Gales e alguns da Irlanda do Norte estão na equipe da Grã-Bretanha com os ingleses?

Pode-se até argumentar que a China é extremamente privilegiada por ter três times nos Jogos, se é levado em conta que a ilha de Taiwan também faz parte de seu território. Para evitar uma batalha com Pequim, Taiwan foi chamada para competir nas Olimpíadas como "Taipé Chinês", nome dado para a capital da ilha na costa leste da China que governa a si mesma desde 1949.

Para a atleta de Hong Kong, Tse Ying Suet, o território sempre teve características especiais, além de um sistem próprio de treinamento. “É uma questão de orgulho para Hong Kong que em um lugar tão pequeno possa conquistar uma medalha de ouro na esgrima e uma medalha de prata na natação. É  divertido que um lugar tão pequeno possa ter um desempenho tão bom", afirma.

Mas a medalha de ouro de Cheung também trouxe um debate político acalorado, quando multidões no território vaiaram e gritaram "Nós somos Hong Kong" durante o hino nacional chinês, que tocou quando ele recebeu sua medalha no pódio.  A polícia abriu uma investigação e afirmou ter prendido uma pessoa que balançou a bandeira da era colonial de Hong Kong no local, por "insultar o hino nacional".

Fãs da nadadora de Hong Kong Siobhan Haughey reagem ao assistir à transmissão ao vivo da final dos 100 m livres femininos dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020 em um shopping center em Hong Kong, China, 30 de julho de 2021. (Tyrone Siu/Reuters)

O movimento, visto como um ato de resistência, foi um lembrete do forte descontentamento no centro financeiro asiático, apesar da repressão à dissidência por Pequim após protestos antigovernamentais em 2019. No ano passado, a China impôs uma nova e mais dura lei de segurança em Hong Kong, que acabou levando um homem a prisão nesta sexta-feira. Este foi o primeiro caso de prisão baseada na nova lei de segurança nacional.

“Os habitantes de Hong Kong querem ser representados de forma independente em eventos esportivos, pois isso ajuda a aumentar sua comunidade e o senso de pertencimento”, afirmou Nathan Law ao Financial Times, um líder da oposição de Hong Kong e que vive na Grã-Bretanha. “Como Hong Kong tem uma cultura e uma comunidade distinta, eles devem continuar a ser representados por uma equipe própria.”

Mas, segundo informações do FT, o presidente do Comitê Olímpico Nacional de Hong Kong pediu aos atletas que ignorassem as polêmicas. "Havia um entendimento na China de que Hong Kong tinha uma identidade separada do continente e não havia planos de integrar a equipe da cidade com a de seu vizinho", afirmou. “Eles têm [1 bilhão] de pessoas, nós temos apenas 7 milhões. Estou muito orgulhoso com este sucesso. O esporte será uma parte muito importante do desenvolvimento de Hong Kong.”

Afinal, o que aconteceu?

É importante lembrar que Hong Kong é significativamente diferente de outras cidades chinesas. Para entender isso, é necessário olhar para o contexto histórico da região. Hong Kong foi uma colônia britânica por mais de 150 anos - parte da ilha foi cedida ao Reino Unido após uma guerra em 1842. Mais tarde, a China também arrendou o resto de Hong Kong - os Novos Territórios - aos britânicos por 99 anos.

Tornou-se um porto comercial movimentado e sua economia decolou na década de 1950 quando se tornou um centro de manufatura. O território também era popular entre os migrantes e dissidentes que fugiam da instabilidade, pobreza ou perseguição na China continental.

Então, no início da década de 1980, quando o prazo para o arrendamento de 99 anos se aproximava, a Grã-Bretanha e a China iniciaram negociações sobre o futuro de Hong Kong - com o governo comunista chinês argumentando que toda Hong Kong deveria retornar ao domínio da China.

Os dois lados assinaram um tratado em 1984, que faria com que Hong Kong retornasse à China em 1997, sob o princípio de "um país, dois sistemas". Isso significava que, embora se tornasse parte de um país com a China, Hong Kong desfrutaria de "um alto grau de autonomia, exceto em assuntos externos e de defesa" por 50 anos. Como resultado, Hong Kong tem seu próprio sistema legal e fronteiras, e os direitos, incluindo liberdade de expressão e liberdade de imprensa, são (teoricamente) protegidos.

Policiais reprimem protestos em Hong Kong.

Policiais reprimem protestos em Hong Kong, em 2019. (Thomas Peter/Reuters)

Em 2019, com o aumento da tensão entre as regiões devido a lei de extradição, eclodiram inumeros protestos que acusavam a China de intromissão em Hong Kong, bem como denúncias de violação de direitos humanos e da liberdade de imprensa. Os manifestantes solicitavam demandas mais amplas por uma reforma democrática e um inquérito sobre a suposta brutalidade policial.

As tensões cresceram novamente após, em 2020, Pequim decidir promulgar a nova lei de segurança nacional para Hong Kong, o que era visto como uma ameaça às liberdade políticas e civis fundamentais.

Até o momento, o futuro olímpico de Hong Kong parece sólido. Mas por quanto tempo? “Não houve nenhuma discussão sobre o status de Hong Kong, até onde eu sei”, disse o porta-voz do Comitê Olímpico Internacional, Mark Adams, na sexta-feira. “Não vejo razão para que não continue.”

Entenda mais sobre política externa. Assine a EXAME.

Acompanhe tudo sobre:ChinaEsportesHong KongOlimpíada 2021Olimpíadas

Mais de Mundo

Arma 'misteriosa' de Zelensky promete virar o jogo contra Força Aérea russa

Com 3 mortos, Japão recomenda evacuação de milhões de pessoas após chegada de tufão

Kamala Harris tem 45% das intenções de voto e Trump aparece com 41%, aponta pesquisa Reuters/Ipsos

Rússia diz estar pronta para oferecer assistência consular a fundador do Telegram

Mais na Exame