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O que o fim do 'cepo' na Argentina mostra sobre a disputa entre China e EUA na América Latina

Aproximação de Trump foi importante para Milei conseguir retirar restrições à compra de dólares no país

Javier Milei, presidente da Argentina, ao lado do ministro da Economia, Luis Caputo (Juan Mabromata/AFP)

Javier Milei, presidente da Argentina, ao lado do ministro da Economia, Luis Caputo (Juan Mabromata/AFP)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 16 de abril de 2025 às 06h01.

Na segunda-feira, 14, o presidente da Argentina, Javier Milei, fez um dos movimentos mais ousados de seu governo até agora. Ele retirou parte do "cepo", as restrições à compra de dólares que travam a economia argentina. Naquele dia, o secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Scott Bessent, estava em Buenos Aires, para deixar claro que o governo de Donald Trump deu apoio ao plano.

Antes de anunciar a medida, Milei amarrou várias pontas com os Estados Unidos, mas também com a China, de modo a garantir tanto a confiança do mercado quanto a obtenção de mais dólares, algo fundamental para o fim do "cepo".

Essa negociação se tornou um exemplo de como a disputa entre as duas potências se estendeu para a América Latina

O cepo era algo duradouro. Com a falta crônica de dólares, a Argentina passou a adotar uma série de medidas para limitar o acesso dos argentinos à moeda americana pelos canais oficiais.

As ações, intensificadas em 2019, fizeram com que os cidadãos e empresas não pudessem comprar dólares livremente.

Havia cotas, justificativas e cotações diferentes, em um cenário bastante confuso que dificultava desde viagens de lazer até o recebimento dos pagamentos da soja vendida ao exterior.

Milei prometeu acabar com isso, e ao longo de quase um ano e meio de mandato, foi arrumando a casa. Ele tomou medidas como um corte profundo de gastos públicos e parou com a emissão de pesos sem lastro. A inflação caiu, de 211% ao ano no começo de 2024 para os 55% atuais. Mas as reservas de dólares do Banco Central seguiam baixas.

Vieram, então, as negociações com o exterior. Milei, desde antes de ser eleito, buscou se aproximar de Donald Trump. Ele fez várias viagens aos Estados Unidos e esteve em um baile da posse do republicano (relembre aqui).

No começo de abril, ele viajou à Flórida, para tentar falar com o presidente americano. Por um suposto desencontro de agendas, não se encontraram. Milei disse, em uma entrevista, que o helicóptero de Trump teve um problema e ele se atrasou. 

Mesmo sem o encontro, Milei conseguiu falar com a equipe de Trump e obteve o que precisava: apoio para liberar um novo empréstimo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), de US$ 20 bilhões.

Além disso, o dinheiro precisaria vir rápido, e o argentino conseguiu que US$ 12 bilhões fossem liberados já nesta terça, 15. Com isso, as reservas do BC argentino foram a US$ 36 bilhões. 

Os EUA são o maior acionista do FMI, que tem sede em Washington. Assim, têm poder para ajudar a liberar empréstimos.

"O papel dos Estados Unidos foi muito importante para o acordo com o FMI e para o desembolso inicial. Havia dúvidas se a Argentina teria dólares suficientes para lidar com uma eventual corrida bancária", diz Juan Carranza, analista de risco geopolítico argentino. 

Acordo com a China

Ao mesmo tempo, o governo argentino fez um movimento com a China. Na quinta, dia 10, foi renovado um acordo de swap cambial (troca de moedas) entre os dois países, no valor de US$ 18 bilhões, o que ajuda o país a obter mais divisas estrangeiras.

Na prática, o país garantirá o recebimento de mais US$ 5 bilhões em yuans até meados de 2026.

Embora tenha feito críticas à China na campanha, Milei mudou de postura. Em novembro passado, ele se reuniu com o presidente Xi Jinping às margens da reunião do G20, no Rio de Janeiro. 

O governo Trump é contra essa proximidade.

"O que queremos ver, eventualmente, é o fim da famosa linha de crédito que a Argentina tem com a China", disse Mauricio Claver-Carone, enviado dos EUA para a América Latina, durante um evento em Miami, um dia antes de Milei renovar o acordo com a China. Carone chamou o crédito dado por Pequim de "extorsão".

Lin Jian, porta-voz da chancelaria chinesa, rebateu Carone. "Pessoas justas saberão dizer quem está extorquindo os outros e criando problemas", disse, em entrevista coletiva. Ele afirmou também que a parceria cambial tem ajudado a Argentina e é "bem-vinda no país".

Mesmo com as críticas de Washington, no entanto, Milei renovou a linha de crédito com a China na quinta, 11.

No dia seguinte, sexta, foi anunciado o acerto com o FMI. Horas depois, o presidente convocou uma cadeia nacional de televisão e anunciou a liberação do cepo, na noite de sexta-feira, 12.

Em vez de uma liberação completa, foi feita uma abertura parcial: o peso poderá flutuar na banda entre 1.000 e 1.400 pesos. Esse percentual será ampliado em 1% a cada mês, nas duas direções.

Se a cotação ultrapassar a banda, o BC agirá para que o valor da moeda estrangeira volte à faixa prevista. 

Após um fim de semana de expectativa, a medida foi implantada na segunda, 14. A cotação oficial do peso passou de 1.100 para cerca de 1.200 pesos por dólar, dentro da banda de flutuação.

O peso perdeu 11% do valor na cotação oficial, mas ficou dentro do que era esperado. A bolsa argentina subiu.

O acompanhamento detido dos EUA

Scott Bessent, secretário do Tesouro, viu a mudança de perto e fez elogios. "O secretário afirmou o apoio completo dos Estados Unidos às reformas robustas do presidente Javier Milei", disse o Departamento do Tesouro, em nota oficial. 

Bessent também buscou deixar claro que o apoio americano à Argentina é uma forma de conter o avanço chinês.

"A China tem assinado vários acordos predatórios, tem tomado direitos sobre minerais. Eles adicionaram grandes quantidades de dívida nos balaços desses países. Não queremos que isso aconteça mais do que já aconteceu na América Latina", disse, em entrevista à Bloomberg. 

Atualmente, a Argentina exporta mais para os EUA (US$ 6,27 bilhões anuais) do que para a China (US$ 5,36 bilhões), segundo dados de 2023 do Observatório da Complexidade Econômica.

No entanto, o maior parceiro comercial do país é o Brasil (US$ 12,1 bilhões em produtos). 

O próximo ponto na pauta da Argentina com os Estados Unidos é a negociação de retirada de barreiras comerciais, uma demanda americana que ganhou força após o governo Trump impor tarifas recíprocas, que entraram em vigor no dia 9.

A Argentina foi taxada em 10%, assim como o Brasil e os demais países do Mercosul. Como o bloco tem regras e tarifas compartilhadas, Milei terá dificuldade para negociar isenções de forma unilateral, sob risco de desagradar os países vizinhos. Será mais um teste de fogo para a diplomacia argentina. 

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