Gustavo Franco: 'Tensões políticas desnecessárias'
'Não é mais, infelizmente, um jogo de pôquer de sucessivas bravatas, o assunto ficou muito sério, talvez incontrolável. Foi uma irresponsabilidade absoluta escalar as tensões', diz sócio-fundador da Rio Bravo
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Palácio do Planalto, sede do governo federal, em Brasília | Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Publicado em 3 de setembro de 2021, 13h24.
Última atualização em 3 de setembro de 2021, 13h32.
Por Gustavo Franco*
O grande e inesperado evento para o mercado financeiro no mês de agosto de 2021 foi o crescimento da tensão política entre o presidente da República e as instituições, especialmente, mas não exclusivamente, o STF ao longo do mês.
Não há dúvida de que a atmosfera política pesada prejudica a economia. Não está claro se isso estava nos cálculos do presidente, se é que existe esse cálculo.
Essas tensões vão se estender até o dia 7 de setembro, para quando estão programadas manifestações convocadas por Jair Bolsonaro e há certa apreensão sobre a presença maciça de policiais armados entre os manifestantes, e não tanto entre os que vão reprimir os excessos daqueles que vão às ruas. Fala-se até de golpe, o que, infelizmente, já não é mais tomado como delírio paranoico.
Os resultados dos eventos de 7 de setembro e de 12 de setembro (esta última, data de manifestações contra o governo) serão importantes para dar o tom do restante da presidência de Jair Bolsonaro. Parece ter se antecipado a já esperada paralisação das agendas econômicas reformadoras em decorrência da eleição presidencial de 2022.
Tudo decorre de uma escalada de iniciativas hostis, parecendo uma “corrida armamentista” ou mais mundanamente um “game of chicken”, no qual o desfecho pode ser trágico se não houver recuos coordenados [*1].
Não é mais, infelizmente, um jogo de pôquer de sucessivas bravatas, o assunto ficou muito sério, talvez incontrolável. Foi uma irresponsabilidade absoluta escalar as tensões até onde estamos. A economia sofre, os mercados apanham e a ansiedade é tão generalizada quanto desnecessária. Como certa vez ensinou a presidente Dilma Rousseff, nem sempre se consegue colocar o dentifrício de volta no tubo.
Registre-se que há incrível paralelismo com o que se passou no ano de 1904, por ocasião da chamada Revolta da Vacina, no seio da qual havia uma real tentativa de golpe urdida por jacobinos inconformados com os rumos da República do “Café-com-Leite”, que entendiam ter prostituído os ideais originais do movimento republicano.
Os golpistas, liderados por Lauro Sodré, um tenente-coronel florianista e maçom, planejavam agir em 15 de novembro, quando as tropas estariam mobilizadas na capital para o desfile comemorativo da Proclamação da República. Mais ou menos como agora, ainda que no plano do simbólico, aproveitando a “excitação cívica” de uma data nacional, como a de 7 de setembro.
Os golpistas de 1904 foram atropelados pela epidemia de varíola no Rio de Janeiro e especialmente pela regulamentação para a vacinação obrigatória, assunto que, estranhamente (aos olhos de hoje) provocou enorme contrariedade popular. Tomando carona nessa contrariedade, Sodré se tornou presidente de uma Liga Contra a Vacinação Obrigatória, que esteve à frente dos tumultos que tomaram as ruas do Rio de Janeiro, semelhantes aos das jornadas de 2013, inclusive a ponto de determinar a suspensão do desfile militar do dia 15. Com isso, as tropas que tinham viajado para a festa na capital foram, afinal, postas a serviço da restauração da ordem, mirando nos golpistas, que perderam o controle das manifestações.
O episódio da Revolta da Vacina é uma espécie de pororoca histórica, misturando militares decepcionados, queixas contra a vacina e contra o progresso e polícia na rua. Impressionante como as coisas saíram fora de controle a partir de achaques meio vagos. A cidade viveu o caos até a decretação do estado de sítio, em 16 de novembro de 1904.
Como é possível que isso tudo possa parecer atual 117 anos depois [*2]?
Nunca pode ser repetido o suficiente que há forças que não se deve acordar, e menos ainda menosprezar. Não há explicações na historiografia sobre os tumultos de 1904 como para as jornadas de 2013. Por isso, o 7 de setembro de 2021 parece assustador.
Bastaria o presidente recuar e iniciar um diálogo sereno com as “instituições”?
A Nação e os mercados aguardam a sequência de iniciativas capaz de promover um recuo coordenado. Entretanto, enquanto a escalada prossegue, a política econômica vai perdendo qualquer lógica e funcionalidade. Não há clima político para nenhuma reforma de espécie alguma quando paira uma dúvida sobre a Democracia, e a agenda está pesada: recrudescimento da pandemia, com a chegada da Delta, aceleração da inflação, iminência de uma crise hídrica e o risco fiscal.
Como esperar que os poderes da República possam dialogar serenamente sobre os temas da economia no meio desse barulho?
Foram frustrantes as iniciativas fiscais do ministro da Economia: a PEC dos Precatórios e a reforma do Imposto de Renda repercutiram muito mal e parecem ter chances muito escassas de prosperar. O governo perdeu a iniciativa no campo fiscal e tem diante de si o desafio de moderar as tentações eleitoreiras que começam a ocupar os gabinetes de Brasília.
O ministro da Economia parece tratar dos temas da inflação, da crise hídrica e da variante Delta como se fossem assuntos setoriais fora de sua alçada. Os órgãos reguladores setoriais da moeda e da energia cumprem seus respectivos papeis através de elevações das bandeiras tarifárias e da taxa de juros, ambos despertando a contrariedade do presidente. As pressões inflacionárias vão se acumulando e assustam sobretudo no contexto de alto risco fiscal.
O Ministério da Saúde tenta um equilíbrio difícil entre as suas obrigações e os desejos do presidente, mesmo apequenado pela CPI e pelas iniciativas locais de reação à Delta. Em seu favor, o ministério conta com o avanço da vacinação, que cresceu lenta, mas cujos percentuais acumulados começam a impressionar (o Brasil ultrapassou os EUA no percentual da população com a primeira dose em agosto).
Os ventos do exterior são favoráveis, o que se confirmou com a fala de Jerome Powell, presidente do FED, no evento de Jackson Hole no último dia 27. O problema é local, e político.
*[1] Para uma explicação, ver Gustavo H. B. Franco, “O jogo da galinha”, O Estado de São Paulo e O Globo de 29/08/2021.
*[2] O leitor interessado em seguir essas cogitações deve olhar o capítulo 3 de Lições Amargas: uma história provisória da atualidade. Rio de Janeiro, História Real Editora, 2021.
*Gustavo Franco é sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e foi presidente do Banco Central do Brasil. Este artigo faz parte da Carta Estratégias de setembro, relatório mensal distribuído pela Rio Bravo a seus clientes.
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