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Gustavo Franco: Balões e escolhas

No mês do Carnaval, o noticiário econômico costuma ser magro, ressalvado o primeiro ano de governo, quando a troca da guarda ocupa todas as atenções

Gustavo Franco: O Banco Central do Brasil (BCB) não trabalha com balões fora dos documentos do Copom (Germano Lüders/Exame)

Gustavo Franco: O Banco Central do Brasil (BCB) não trabalha com balões fora dos documentos do Copom (Germano Lüders/Exame)

Da Redação
Da Redação

Redação Exame

Publicado em 6 de março de 2024 às 14h33.

Última atualização em 7 de março de 2024 às 12h02.

*Gustavo Franco 

No mês do Carnaval, o noticiário econômico costuma ser magro, ressalvado o primeiro ano de governo, quando a troca da guarda ocupa todas as atenções. Fevereiro de Lula3, ano 2, conforme se esperava, foi vazio de conteúdo, ainda que não sejam interrompidas as divulgações de indicadores, bem como as atividades das Autoridades Monetárias pelo mundo.

Tal como o Corpo de Bombeiros, os BCs permanecem vigilantes e fiéis às suas rotinas nesses períodos de calmaria, quando os analistas, em geral, se debruçam sobre a “comunicação”, e menos sobre as “ações” das autoridades.

Nesses momentos, as autoridades amiúde se entregam a dissertações, que funcionam como sondagens, os chamados “balões de ensaio”. São as ideias atiradas ao colegiado da opinião pública especializada para verificar suas potencialidades.

Conforme o manual de redação de um grande jornal paulista, a expressão designa a informação “propositalmente vazada a fim de verificar de antemão possíveis efeitos de uma determinada medida”.

Havendo “certeza” de que se trata de “balão de ensaio”, continua o manual, o jornal “explica para o leitor”. Mas não deixa de publicar. Portanto, a cogitação, tornada pública, é notícia, e não “fake news”. São medidas “em estudo”, como se fala em Brasília. A maior parte não conhecerá a luz do dia. Mas o mero estudo já é assunto de manchetes e de especulação.

Os balões são como um mercado de opções sobre o que vai ser.

A baloagem é muito praticada em fevereiro, quando o céu de Brasília fica parecido com o da Capadócia, coberto de balões de todas as cores e formatos.

Uma poderosa indicação desse estado de coisas foi o tempo dedicado, em fevereiro, ao debate sobre as declarações do presidente da República sobre o conflito no Oriente Médio. O problema aí foi que esses balões ocuparam quase todo o espaço celeste, de tal sorte que quase não se deu atenção às autoridades econômicas, mesmo considerando que ambas fizeram aparições nas reuniões do G20 destinadas a ministros da Fazenda e presidentes de banco centrais.

Roberto Campos Neto fez sua fala em inglês, portanto, sem mirar o público doméstico não especializado. O Banco Central do Brasil (BCB) não trabalha com balões fora dos documentos do COPOM, e em fevereiro não houve reunião.

Haddad está em outro território. Na abertura da reunião de ministros do G20, com discurso ensaiado, lido e proferido em português, o ministro da Fazenda falou em “globalização inclusiva” e em “fazer com que os bilionários do mundo paguem, sua justa contribuição e impostos”. Tudo pronto para o “Jornal Nacional”.

 Desafio nada trivial

O ministro tem diante de si um desafio nada trivial, no plano doméstico, na forma de uma pergunta simples: qual a índole, ou plano econômico, desse governo?

Essa pergunta virá para o começo da fila uma vez terminado o Carnaval, e iniciado oficialmente o segundo ano dessa presidência, e com a natural perda de novidade e densidade do noticiário sobre o golpe (os eventos de 8 de janeiro).

O que vai se passar com a economia?

O anúncio da nova política industrial em janeiro não foi exatamente uma lufada de ar fresco. Foi, ao invés, uma demonstração das possibilidades da reciclagem. Muito mais uma fórmula (inofensiva) para acalmar os setores heterodoxos mais radicais encastelados no BNDES do que uma nova iniciativa em torno do qual o governo depositará suas esperanças para a economia.

Quando assumiu o ministério, frequentemente descrito como “o pior emprego do mundo”, Haddad definiu duas prioridades: o arcabouço fiscal e a reforma tributária.

O arcabouço foi a aprovado, mas sua decorrência, a meta de déficit zero, não tanto. Consta dos planos governamentais, mas o próprio presidente Lula afirmou que muda se precisar mudar, se a meta for “irreal”: “Se der para fazer superavit zero, ótimo. Se não der, ótimo também. Aqui no Brasil, de vez em quando, se inventa umas histórias, umas manchetes babacas, sabe?”, disse Lula em entrevista à Rádio Itatiaia durante visita a Minas Gerais conforme publicado em 8 de fevereiro[1].

É curiosa, e meio tola, a conversa sobre o irrealismo dessa meta fiscal. Como a que tem lugar, com mais frequência, sobre a meta de inflação.

Não faz muito tempo o ministro provocou certo alarido sobre um novo sistema de definição das metas para a inflação fixadas pelo CMN (Conselho Monetário Nacional) usando “metas contínuas”. Era um balão que deu em nada. Desde junho do ano passado, quando o assunto surgiu, nada foi feito para alterar o sistema que então funcionava e permanece prestando bons serviços ao país.

Não é simples definir metas, para a inflação, fiscais ou para a equipe olímpica do Brasil. Imagine o leitor se as autoridades olímpicas brasileiras decidissem que as equipes não devem mais mirar no recorde mundial, posto que impossível, supostamente, mas mirar no recorde sul-americano. É muito provável que, com essa meta menos exigente, não se consiga nem mesmo o recorde do clube.

Tudo considerado, os resultados fiscais serão acompanhados mês a mês, ao longo dos quais será possível verificar se os índices fiscais estão progredindo, ou se a complacência vai se estabelecer.

Mais para frente, no decorrer de 2024, ficará mais claro se vamos na direção da meta ou do recorde do clube.

Será uma batalha difícil, ainda mais se tomarmos em conta que a bandeira da responsabilidade fiscal nunca foi exatamente uma pauta petista.

Toda vitória é santa

A segunda prioridade do ministro Haddad foi a reforma tributária.

Foi uma escolha arriscada, da qual o ministro, inclusive, pode ter pensado em se afastar, em vista da complexidade do assunto e dos obstáculos que encontrou. Os assuntos federativos são sempre os mais difíceis em Brasília.

Mas o governo teve sucesso até agora, votou e aprovou um texto base e mesmo sem ter ainda as leis complementares regulamentadoras, pode declarar vitória e contabilizar os pontos correspondentes. Nelson Rodrigues ensina: toda vitória é santa, ainda que por meio a zero.

Curioso, no entanto, é que a pauta de “melhoria no ambiente de negócios”, na qual a reforma tributária foi sempre um item entre os mais importantes, nunca foi abraçada pelo petismo. Ao contrário, desde sempre, a postura foi de hostilidade ao chamado “Consenso de Washington” e todas as suas variantes.

Foi a partir do Plano Real, que completa 30 anos de seu início em 28 de fevereiro, que as reformas que compõem esse cardápio, que não é bem de Washington, mas de qualquer lugar onde a matemática faz sentido, penetraram no terreno microeconômico. Com isso se reconhecia a conexão entre ambiente de negócios, produtividade e desenvolvimento econômico.

A palavra “reforma” entrou para o vocabulário do progresso como o conceito chave para a conversa sobre desenvolvimento econômico. Paradoxalmente, contudo, o PT foi historicamente contra as reformas..

Num momento de convergência e pacificação, é mais do que bem-vindo que o governo assuma a reforma tributária como de seu interesse. Os partidos de esquerda, ou meio de esquerda, geralmente ficam meio na dúvida sobre as pautas de aperfeiçoamento do capitalismo.

Lula e o PT encontraram uma fórmula interessante de enfrentar essas ambiguidades com pragmatismo: a divisão de trabalho.

O partido será sempre do contra, e terá restrições à Constituição, à estabilidade (ao Plano Real), à Responsabilidade Fiscal (LRF), às reformas, à medicina convencional nos assuntos de economia, e a tudo que não for da sua lavra. É seu papel.

Mas o presidente poderá divergir do partido, o que será sempre saudado como um gesto de grandeza e pragmatismo. Cabe ao presidente da República, em face do que pode parecer um excesso de pragmatismo, zelar para cultivar sua identidade de esquerda, para a qual a polarização com Bolsonaro acaba ajudando (ainda que não envolva temas econômicos).

A exceção a essa “divisão” de funções foi a presidência Dilma Rousseff, quando as ideias econômicas heterodoxas do PT foram para o Diário Oficial. Foi o “momento antivax” da política econômica, com os resultados desastrosos que se conhece.

A experiência da Nova Matriz se tornou uma espécie de trauma, pois oferecia uma confirmação de que loucuras não existem apenas no espaço dos balões. As chances de adoção de ideias erradas não eram desprezíveis, tanto que foram praticadas. Essa premissa serve para ressaltar o quanto é difícil a tarefa do ministro Haddad, o encarregado de encarnar e operacionalizar o “pragmatismo” do presidente.

Em sua fala no G20 e ao lançar seus balões para o restante do ano o ministro falou muito de impostos, e mirou nos super-ricos. Nada mais woke que um ministro da Fazenda falar, em um foro internacional, de justiça tributária e de impostos globais desafiando a realidade dos paraísos fiscais. Muito próprio para o ambiente do G20, mas será realista? Na verdade, nem mesmo um comunicado conjunto esse grupo conseguiu redigir.

Os balões endereçados ao público doméstico, sobretudo em Brasília, falam em uma reforma tributária “da renda e do patrimônio” como se fossem “novas etapas” da reforma tributária, cujo centro conceitual, não vamos esquecer, era a confusão de impostos de consumo dos entes federativos.

A elevação dos impostos diretos (de renda e de patrimônio) não é bem uma pauta de melhoria de ambiente de negócios, mas uma pauta da esquerda. A justificativa seria a realidade de desigualdade, somando-se às iniquidades da tributação direta no Brasil.

A receptividade para essas ideias não será a mesma da reforma tributária dos impostos de consumo. Reforma tributária e política fiscal são coisas diferentes.

O ministro Haddad se comprometeu a entregar um déficit zero. Terá que responder a uma pergunta que antecede qualquer outra de natureza tributária: por que não reduzir despesa?

A segunda pergunta sobre se o ministro (o governo) quer mesmo aumentar os impostos, tem sido respondida com um drible meio tosco: o ministro fala em “corrigir distorções”.

Não há nada de errado em um governo de esquerda legitimamente eleito escolher resolver o problema fiscal brasileiro aumentando os impostos e não reduzindo o gasto público e o tamanho do Estado. É uma escolha. Ou talvez, ainda um balão, aguardando os sabores do vento.

[1] https://www.poder360.com.br/economia/se-nao-der-para-cumprir-o-deficit-zero-otimo-tambem-diz-lula.

*Gustavo Franco é sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos e ex-presidente do Banco Central do Brasil. Este artigo faz parte da Carta Estratégias de Fevereiro, relatório mensal distribuído pela Rio Bravo a seus clientes e reproduzido com exclusividade pela EXAME Invest."

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