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Crédito: a bênção e a maldição para startups no Brasil após o fim do SVB

Startups brasileiras não veem financiamento bancário como alternativa de crescimento no early stage, cenário oposto ao dos EUA

Venture debt: estrutura que ganhou espaço nos EUA ainda tem pouca relevância no Brasil (mixetto/Getty Images)
Venture debt: estrutura que ganhou espaço nos EUA ainda tem pouca relevância no Brasil (mixetto/Getty Images)
Karina Souza

Karina Souza

18 de março de 2023 às 12:17

Crédito. Está aí um ponto comum em 10 de cada 10 conversas com fundadores e fundos de venture capital ao longo desta semana, a primeira após a quebra do Silicon Valley Bank. Do lado de quem está na terra do Tio Sam (ou em outros países fora da América Latina), o cenário é de preocupação. A ausência das linhas oferecidas pelo banco do Vale do Silício, criadas especialmente para atender esse grupo de empresas -- até mesmo quando ainda não tinham fluxo de caixa positivo -- é sentida como um baque, um problema difícil de ser resolvido, ao menos por enquanto. Do lado de cá, a situação não poderia ser mais diferente. A ausência do SVB continua sendo um marco, mas está longe de representar uma mudança estrutural na forma como startups têm acesso ao dinheiro.

As entrevistas do EXAME IN ao longo da semana mostraram que, para quem sempre conviveu com juros altos, ameaças de alta de inflação, uma moeda desvalorizada em relação ao dólar e com o risco-país, pensar em contrair algum tipo de crédito em uma instituição norte-americana — mesmo que fosse o SVB — na fase inicial das empresas (early ou mid stage) sempre foi sinônimo de acumular risco demais. 

Fatores que se somam ao funcionamento do sistema bancário, principalmente o tradicional, e às exigências de informações que empresas no início de suas vidas não conseguem oferecer. É um cenário que está no início de sua trajetória de mudança, é verdade. No ano passado, a Reuters apontou que o Itaú BBA atingiu uma carteira de crédito de R$ 7 bilhões junto a startups. E, no ano anterior, o BTG Pactual (do mesmo grupo de controle da Exame) criou o boostLAB, linha de crédito especialmente direcionada a empresas de tecnologia, de olho em empresas que já passaram por fundos de venture capital e que geram receita recorrente mensal.

"Estamos acostumados com condições de empréstimos mais leoninas. Hoje tem mais linhas de crédito do que em toda a história, mas ainda assim, frequentemente são necessárias garantias reais. E quem está faturando R$ 20 mil por mês não consegue colocar o próprio apartamento nisso, por exemplo", diz Pedro Carneiro, sócio e diretor de investimentos da ACE, ao EXAME IN.

Enquanto esse é um cenário que começa a se transformar, 'sobrou' para as startups, até aqui, construir um ecossistema em que o principal modo de crescimento consiste em ‘passar o chapéu’ a investidores em troca de ações na empresa.  É uma tarefa que se tornou mais difícil ao longo dos últimos dois anos para empresas de todo tipo e tamanho, com o aumento da taxa de juros, mas que, ao mesmo tempo, trouxe algum alívio a empresas no early-stage com o apetite de fundos por cheques menores. 

Dados compilados pelo Distrito mostram que o investimento em Venture Capital no Brasil em 2022 somou R$ 4,4 bilhões. É menos da metade do valor investido em 2021, de R$ 9,8 bilhões, mas mostra um avanço importante em relação ao período pré-pandemia, quando a cifra era de R$ 3,6 bilhões. O apetite por empresas no estágio inicial fica claro: no ano passado, foram fechados 755 deals, enquanto no ano anterior, com uma cifra mais de duas vezes maior, o montante foi direcionado a um volume de negócios apenas 15% maior.  

Para quem (hoje) sofre com a falta de apetite de fundos (Série A, Série B e por aí vai) o lado menos negativo é a possibilidade de acesso ao mercado financeiro. Um exemplo extremo: o Nubank finalizou, em janeiro deste ano, um financiamento de US$ 150 milhões com a International Finance Corporation, uma unidade do Banco Mundial voltada para o setor privado. Um menos extremo: em janeiro deste ano, a fintech iCred captou R$ 300 milhões via FIDC, pouco tempo depois de captar R$ 100 milhões usando o mesmo instrumento.

Venture debt

Enquanto isso, nos Estados Unidos, a coisa toda funciona de forma bastante diferente. Um dos destaques do Silicon Valley Bank, olhando para empresas no início de sua trajetória, era o Venture Debt . Uma modalidade de empréstimo de curto prazo realizada principalmente por companhias no early stage, que funciona principalmente como uma "ponte" entre duas rodadas de captação, para suprir necessidades de fluxo de caixa. 

Por que o SVB era importante? Porque oferecia produtos que os grandes bancos não ofereciam. Os grandes bancos só oferecem essas linhas de crédito pras startups e fundadores em casos muito grandes. Enquanto lá é mto comum fundador pegar dinheiro emprestado pra ele se sustentar”, afirma Pietro Bonfiglioli, co-fundador da Fisher Venture Builder, ao EXAME IN.

Com um fundo de venture capital forte por trás da operação ou com uma captação recente, as companhias recorriam ao SVB em busca de liquidez, geralmente em prazos de pagamento de 12 a 18 meses. Como toda operação de crédito, esta também exige pagamento em prazos estabelecidos e de juros, mas funciona para empresas que precisam de dinheiro para manter as operações de pé.

Para fomentar o acesso a ela, o SVB tinha contatos nas duas pontas: com as startups que precisavam da grana e também com os fundos de venture capital, o que alimentava um ecossistema de VCs com contas no banco do Vale do Silício para conseguir proporcionar acesso a condições melhores de crédito para startups investidas. Isso sem falar no fato de que muitos fundos, como mostrou a Fortune na última semana, usavam o banco de custodiante de operações de captação. 

“No ponto em que estamos no ciclo econômico, com valuations sob pressão, o venture debt se tornou extremamente atrativo para fundadores querendo aumentar o caixa antes de rodadas de captação. Evito dizer que é um processo ‘fácil’, porque levantar capital está mais difícil do que nunca. Mas funciona como uma ferramenta para não pressionar valuations, evitando um down round”, diz Francesca Whalen, sócia-diretora da Rocca Ventures, ao EXAME IN. 

Para dar uma dimensão do tamanho desse mercado, com o SVB, dados do Pitchbook mostram que, em 2021, o Venture Debt movimentou US$ 31 bilhões, uma cifra que era de menos da metade (US$ 14,7 bilhões) em 2017.  Enquanto isso, na América Latina, no mesmo ano, esse era um mercado de US$ 700 milhões, de acordo com dados da Association for Private Capital Investment in Latin America (LAVCA). O que deixa clara a diferença do acesso a esse tipo de financiamento, e ao interesse por fomentá-lo, dadas as condições macroeconômicas bastante diferentes entre ambos os países.

Ainda assim, iniciativas começam a surgir por aqui também. O Brasil Venture Debt, o primeiro fundo dedicado ao setor no país, e a A55, fintech voltada a oferecer uma linha de crédito para startups early stage, são alguns dos destaques recentes. Na visão de Felipe Andrade, co-fundador da Domo Invest, as iniciativas representam um mercado em crescimento, ainda que este não aconteça de maneira exponencial.

“Essa modalidade vai crescer no país, mas não agora e nem de uma hora para outra. O mercado de recebíveis, do lado da dívida, é muito mais desenvolvido aqui do que nos Estados Unidos, por exemplo. Aqui, há a oportunidade de explorar caminhos como o de recebíveis de cartão de crédito, duplicatas e até recebíveis a performar. Empresas de médio porte e startups, muitas vezes, não estão acostumadas a lidar com esse mundo, mas terão que entender cada vez mais de crédito”, afirma Andrade.

Onde os dois mundos se encontram

É o que fica claro a partir da quebra do SVB e, principalmente, do aumento dos juros. Nos Estados Unidos, país de tradicionais taxas de zero ao ano, startups deixavam principalmente o dinheiro na conta corrente do SVB.  "Eu me lembro quando, há uns cinco anos,  me ofereceram um produto de investimento para o dinheiro na conta render 0,3% ao ano e eu achei interessante", afirma Benjamin Gleason, co-fundador do Guiabolso e fundador da Kamino, ao EXAME IN. 

Do lado de cá, o 'hedge' no caso da quebra do banco do Vale do Silício não foi necessariamente um aumento de consciência sobre investimentos, mas um fator natural da operação: para pagarem as despesas em reais, empresas daqui tinham de ter uma conta nos Estados Unidos (para fazerem as captações), mas tinham de abrir conta em um banco nacional para conseguirem transferir o dinheiro e pagar as despesas necessárias.

Esse, aliás, é outro ponto de diferença entre aqui e lá. Enquanto nos Estados Unidos a falta do crédito é vista como um problemão, fazendo com que quem mora lá e tivesse contatos com outros bancos conseguisse intermediar a relação de empreendedores com essas instituições -- como aconteceu com Cauê Mançanares, CEO da Investo -- aqui, é a ausência de quem faça a ponte entre as estruturas burocráticas de abertura de empresas na terra do Tio Sam uma das principais preocupações. Já começam a existir outras alternativas para tentarem ocupar esse lugar, como a Kamino, a conta corrente da Latitud, que completam a oferta de outras instituições mais tradicionais, como a Avenue. 

Trazer mais "consciência" sobre o papel dessa gestão financeira é um ponto relevante, mas não tão simples de ser resolvido. Para Piero Minardi, presidente da ABVCap, mais do que um financeiro bom, há que se envolver mais áreas para conseguir uma melhora real nesse sentido. “Não acho que seja só um CFO, por exemplo. Tem comitês de investimento, investidores que devem olhar política e gestão de caixa das empresas em que investem. É uma questão que envolve muito mais gente”, afirma. 

A atenção a onde está o dinheiro, depois do episódio SVB, deve acender um alerta em novas rodadas de captação daqui para frente, de todo modo, como apontam outras fontes do mercado de Venture Capital ouvidas pelo EXAME IN. Junto com ela, uma outra preocupação relevante também ocupa as mentes de executivos: a mancha para o setor que fica com o fim do SVB, mesmo sendo essa uma crise bancária e não uma de setor. Ainda é cedo para cravar os efeitos futuros de toda essa história, mas a expectativa, ao menos a de curto prazo, é de que os anúncios do governo americano consigam acalmar os ânimos daqui para frente e que a situação ganhe contornos mais amenos no decorrer dos próximos dias.

Para quem está do lado de cá, resta esperar os recursos do FDIC (o FGC norte-americano) caírem nas contas para continuar os negócios. Enquanto isso não acontece, alternativas de dívida, especialmente para quem já é mais estruturado nos Estados Unidos, começam a ser estudadas, como mostram notícias recentes. O que impulsiona, por enquanto, o mercado de dívida de lá, com neobancos como o Brex e instituições de venture debt, como a TraceFinance. Mas ainda atinge o lado de cá com uma força muito menor do que a dos Estados Unidos. É a bênção e a maldição de conviver em um ambiente de acesso (ainda) restrito ao crédito para quem está começando a crescer.

Para quem decide. Por quem decide.

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Karina Souza

Karina Souza

Repórter Exame IN

Formada pela Universidade Anhembi Morumbi e pós-graduada pela Saint Paul, é repórter do Exame IN desde abril de 2022 e está na Exame desde 2020. Antes disso, passou por grandes agências de comunicação.