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A locomotiva na contramão

São Paulo perde a guerra fiscal e a competitividade industrial. Resultado: primeiro os investimentos foram para o interior. E agora migram para outros estados

EXAME.com (EXAME.com)
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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 11h22.

O empresário paulistano Mário Ceratti Benedetti, presidente da Ceratti, fabricante de mortadelas, perseguiu por dois anos o que chama de Shangri-Lá: o local perfeito para construir a fábrica ideal. Como na lenda, tinha apenas uma indicação sobre o lugar. Deveria ficar num raio de 150 quilômetros da capital paulista. A razão para isso: a região metropolitana de São Paulo responde por 70% das vendas da Ceratti, cuja velha fábrica no bairro do Ipiranga vem sofrendo com a urbanização desenfreada. Instalada no local desde sua fundação, em 1932, a empresa ganhou nos últimos anos uma vizinhança inesperada: a favela de Heliópolis, a maior de São Paulo. Mesmo em moradias irregulares, os novos vizinhos reclamam que não querem dividir espaço com uma fábrica que opera 24 horas por dia. Além dos barracos, a região foi tomada de assalto por muito lixo. Para piorar, virou rotina caminhões com toneladas de carne desaparecerem nas ruelas próximas da fábrica. "Os funcionários e os fornecedores ergueram as mãos para o céu quando contei que estávamos saindo de São Paulo", diz Benedetti. Ele acredita finalmente ter encontrado o Shangri-Lá: no ano que vem, a Ceratti se muda para a cidade de Vinhedo, na região de Campinas.

Benedetti e seus executivos só definiram o local da futura fábrica depois de muita persistência. Fizeram contato com 12 corretoras e visitaram 50 imóveis industriais. Contrataram uma empresa de gestão de imóveis, a CB Richard Ellis, que fez uma espécie de concorrência com 20 construtoras. Foram avaliados terrenos em Itu, Sorocaba, Itupeva e Jundiaí. A cidade de Extrema, em Minas Gerais, também entrou no páreo, oferecendo benefícios fiscais. Mas Benedetti achou arriscado distanciar-se de seus consumidores em troca de incentivos de duração incerta. Uma mudança na legislação tributária poderia acabar com os benefícios a qualquer momento. A Ceratti gastou cerca de 150 000 reais na busca do novo endereço. Em Vinhedo, vai ocupar um prédio alugado por 50 000 reais mensais durante o prazo contratual de dez anos. A fábrica será erguida num terreno de 24 000 metros quadrados, num distrito industrial com toda a infra-estrutura. Como outras indústrias que lá se instalaram, a empresa vai receber do município parte do ICMS que gerar.

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A mudança da Ceratti, anunciada em junho, é apenas a mais recente de um movimento de fuga de empresas de São Paulo iniciado nos anos 90. A cervejaria AmBev, por exemplo, fechou uma fábrica centenária no bairro paulistano da Mooca e transferiu a produção para a cidade de Jundiaí, também na região de Campinas. A Philip Morris, fabricante de cigarros, mudou-se para Curitiba. A indústria de eletrodomésticos Black & Decker trocou Santo André, na região do ABC, por Uberaba, em Minas, e suspendeu a construção de uma fábrica em Cruzeiro, no interior de São Paulo. Essas e outras indústrias migraram por várias razões. Os executivos costumam citar aspectos negativos da região metropolitana, como a falta de espaço físico para ampliar a produção, a mão-de-obra mais cara, o risco causado pela atividade sindical, o trânsito caótico que encarece os custos de logística, a insegurança social e até a baixa qualidade do ar. O valor dos tributos é citado como um item a mais -- no entanto, faz a maior das diferenças. A tendência apareceu na última pesquisa sobre intenções de investimentos realizada pelo instituto Vox Populi para a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Cerca de 44% dos 400 empresários paulistas entrevistados apontaram a questão tributária como um fator que inibe os investimentos. "Empresas migram para reduzir custos", diz André Luiz Castello Branco, sócio da consultoria KPMG. "O valor dos impostos é um dos critérios mais importantes na escolha de um local, e São Paulo não é competitiva nesse quesito."

Guerra fiscal

A administração do estado e a do município de São Paulo são categóricas: não há motivo para negociar a redução de tributos. "No ano passado, o estado de São Paulo transferiu para o governo federal 88 bilhões de reais sob a forma de impostos e recebeu de volta 10 bilhões. Se abrir mão disso, pode ter dificuldade de atender às suas prioridades", diz Jacques Marcovitch, secretário de Planejamento. Segundo ele, as prioridades de São Paulo são claras: criar condições sociais e infra-estrutura pública. "O estado tem o papel indutor e regulador", afirma Marcovitch. "Cabe ao setor privado viabilizar os investimentos e suas expansões." No interior, a maioria das prefeituras pensa e faz exatamente o contrário. Ninguém gosta de usar o termo guerra fiscal para definir as disparidades entre as várias políticas tributárias adotadas, mas que existe uma disputa entre os municípios paulistas, com ganhadores e perdedores, não há a menor dúvida.

Muitos municípios da região metropolitana estão perdendo. Entre 2000 e 2001, 14 deles tiveram queda na arrecadação de ICMS, um tributo estadual que sinaliza o nível de atividade industrial nas diferentes regiões onde é recolhido. No mesmo período, São Paulo perdeu 184 contribuintes do IPTU no setor industrial. Em outras cidades, administrações com políticas tributárias agressivas vivem outra realidade. Barueri, também na Grande São Paulo, por exemplo, vem ganhando. A cidade negocia tributos há 20 anos. Foi uma das primeiras a reduzir a alíquota do ISS para atrair investimentos. Cobra de 0,5% a 1% de imposto. Ao longo da década passada, 1 726 empresas do setor de serviços se instalaram na cidade. Barueri virou exemplo negativo em matéria fiscal. Muitos dos empreendimentos não passavam de sedes-fantasmas de empresas interessadas em reduzir as despesas com tributos. De acordo com Gil Arantes, prefeito de Barueri, casos do gênero fazem parte do passado. Ao reduzir o ISS e cobrar IPTU quase simbólico, Barueri atraiu também indústrias. Foram 185 na década de 90. Hoje, o município é o sétimo no estado em arrecadação de ICMS. Segundo Arantes, reduzir o valor dos tributos municipais é uma medida lícita e inteligente. "A lei permite", diz. "São Paulo faz drama com a questão porque não se preocupou em criar uma política para atrair investimentos." E não são poucos os que acreditam que São Paulo também deveria adotar uma política mais agressiva. "Ninguém é louco para apoiar a guerra fiscal, mas a realidade é que o tempo vai obrigar São Paulo a rever sua posição em relação aos tributos", afirma Omilton Visconde Jr., presidente da Laboratórios Biosintética.

A reforma da lei do ICMS, proposta pelo governo federal, promete acabar com a guerra fiscal ao impedir a criação de alíquotas diferenciadas para o imposto. Também vai tirar o trunfo fiscal de Barueri e de outros municípios, estabelecendo um piso de 2% para a alíquota do ISS. Mas Arantes acredita que nada vai mudar. "São Paulo vai manter suas alíquotas altas e nós vamos aplicar o mínimo", afirma. "Nenhuma empresa vai sair daqui ou deixar de vir para a cidade por causa desse aumento." EXAME SP tentou ouvir João Sayad, secretário de Finanças e Desenvolvimento da prefeitura de São Paulo. Sua assessoria informou que ele prefere não se manifestar no momento. A prefeitura quer mudar o sistema de taxação do ISS e está preparando um pacote de medidas para reduzir a evasão fiscal. Na capital, a alíquota média do ISS é 5% e pode chegar a 10%. Alguns municípios do interior oferecem até isenção do tributo.

Fuga silenciosa

Enquanto prefeituras e estados não se acertam e as leis tramitam, os investimentos continuam migrando. Nenhuma associação ou centro de pesquisa contabilizou quantas indústrias deixaram São Paulo, por que saíram, para onde foram e o impacto disso na economia local. Mas o movimento contínuo e silencioso está afetando o perfil dos investimentos e as decisões de negócios importantes em todo o estado. Segundo a economista Clarice Messer, diretora do departamento de pesquisas e estudos econômicos da Fiesp, o setor vive uma transição complicada. "A locomotiva do desenvolvimento nacional entrou na contramão do resto do país", diz. O que parecia um processo de desconcentração rumo ao interior ganha proporções estaduais. Na avaliação de Clarice, isso ocorre por um conjunto de fatores. Primeiro: pesa, e muito, a instabilidade político-financeira. São Paulo, na condição de sinalizador da economia, é a primeira a sentir o baque. Segundo: as empresas priorizam investimentos em áreas de custo mais baixo. Essa lógica inviabiliza apostas na região metropolitana, onde tudo, do terreno à conta de água, é mais caro. Já as cidades do interior enfrentam outro problema: perdem poder de fogo em relação a outros estados, que barganham impostos, terrenos e infra-estrutura. Fora de São Paulo, as indústrias contam com programas de incentivo ao desenvolvimento regional, e muitos estados contornam os limites de isenção tributária previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal. Nesse caso, os municípios paulistas começam a pagar o ônus de o governo ter protelado a reforma tributária. Terceiro: falta visão global e adaptação aos novos tempos. A capital paulista participa de uma competição internacional, mas muitos parecem não ter tomado consciência disso. São Paulo mede forças não apenas com Campinas ou com cidades dos estados nordestinos. Enfrenta também a concorrência da China, dos países do Leste Europeu e do México. "O movimento de migração das empresas já levou investimentos e vai tirar muitos outros", afirma Clarice. "São Paulo está perdendo uma competição global."

A marcha das indústrias da capital para fora do estado teve início há cerca de dez anos e está alcançando seu pico -- ou o fundo do poço. Os anúncios de investimentos apurados pela consultoria Simonsen Associados indicam uma queda histórica nos investimentos em fábricas na capital. As indústrias paulistanas anunciaram investimentos da ordem de 461 milhões de dólares no ano passado. Há quem desconfie desse indicador. Afinal, entre a intenção e o gesto existe uma grande diferença. Mas, ainda que muitos anúncios não passem de mera expectativa, eles sinalizam tendências. O total anunciado em 2001 foi o menor dos últimos sete anos e ficou bem abaixo da média anual do período, de 2,8 bilhões de dólares. "São Paulo é uma cidade cara e não tem lugar para indústrias", diz Harry Simonsen Jr., presidente da consultoria. "Seu futuro está nos serviços e nas atividades financeiras."

As indústrias também parecem não estar à vontade nos demais municípios da região metropolitana. Os anúncios de investimentos levantados pela Fundação Seade caíram para menos da metade nos últimos três anos. Passaram de 4,95 bilhões de dólares em 1999 para 2,2 bilhões em 2001. No ano passado, a maioria (62% do total) foi para o interior do estado. Ocorre que os investimentos não caem apenas na Grande São Paulo. Estão menores em todo o estado. O valor dos desembolsos para a produção registrou uma queda de 25% entre 1999 e 2001. Nesse período, houve uma nítida inversão no peso dos setores industrial e de serviços. Na região metropolitana, a mudança no perfil rendeu a São Paulo o título de capital nacional dos serviços. No movimento que as empresas estão fazendo, o título tende a se estender para todo o estado. No ano passado, pela primeira vez desde que a Fundação Seade realiza a pesquisa, os anúncios de investimentos no setor de serviços ultrapassaram os do setor industrial em todo o estado de São Paulo: 10,2 bilhões contra 12,6 bilhões de dólares. A busca das indústrias por novas paragens freou o ritmo da expansão até na região de Campinas. Uma pesquisa da associação comercial e industrial do município revelou que a participação da indústria no PIB campineiro caiu de 47,80% em 1996 para 41% em 2001. "Não temos como apurar se os industriais paulistas estão investindo em outros estados, mas não há dúvida de que estão colocando menos dinheiro por aqui", diz Luis Paulino, economista e analista da Fundação Seade.

Dividindo o bolo

O estado de São Paulo ainda concentra o maior volume de intenções de investimentos no país, mas vem perdendo participação no bolo nacional -- tanto na indústria quanto nos serviços. Nos levantamentos do BNDES, São Paulo ficou com 16,2% do total dos investimentos anunciados no ano passado. Em 1996, detinha 21,5%. A economista Denise Rodrigues, do BNDES, considera positiva essa tendência. "É boa para o Brasil e para São Paulo", diz. "A desconcentração dos investimentos vai permitir que o país crie mercado em escala."

Mas São Paulo está se preparando para dividir o trono? Para quem acha que o setor de serviços vai dar conta da economia, um alerta: cada real que a indústria deixa de receber amplia um hiato que arrasta junto o setor de serviços. Não é possível definir quantos dos 2 milhões de desempregados da região metropolitana de São Paulo são egressos de indústrias ou de atividades afins, mas há uma íntima relação entre a taxa de desemprego e a migração das fábricas. "Pelo menos um terço das atividades ligadas ao setor de serviços depende da indústria. Transporte, armazenagem, informática, advocacia, engenharia e publicidade são algumas delas", diz Paula Montagner, gerente de análise socioeconômica da Fundação Seade, responsável pela Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED). Em uma década, as indústrias fecharam 594 000 postos com carteira assinada na região metropolitana de São Paulo e 85 000 no interior. Não é possível calcular as perdas em empregos indiretos, temporários ou informais. Mas a taxa de desemprego na região metropolitana passou de 8,7% em 1989 para recordistas 20% em abril deste ano. Cresce, assim, a pressão social que afasta os investimentos. E persiste a guerra de nervos sobre os investidores. Na já mencionada pesquisa com empresários paulistas, ficou evidenciado que os investimentos em São Paulo oscilam ao balanço das incertezas econômicas e eleitorais. No primeiro semestre, os dois fatores conviveram em meio a pressões do mercado financeiro e à explosão da taxa de câmbio. O resultado não poderia ter sido outro: levantamentos preliminares sobre anúncios de investimentos apurados pela Simonsen Associados e pela Fundação Seade sinalizam queda nos negócios. Será mais um ano complicado para os empresários definirem onde estabelecer seus negócios.

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