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Remy Sharp
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Os americanos criaram a agricultura mais produtiva do mundo

Juntando fazendas eficientes e empresas gigantescas, os Estados Unidos criaram a cadeia agrícola mais produtiva da história humana. Após décadas de saltos em nosso agronegócio, o Brasil ainda tem muito a avançar para chegar perto

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Venda de carne no Brasil: a expansão do agronegócio no Brasil começa a dar origem a empresas globais, como o JBS (Germano Lüders/EXAME.com/Site Exame)

Venda de carne no Brasil: a expansão do agronegócio no Brasil começa a dar origem a empresas globais, como o JBS (Germano Lüders/EXAME.com/Site Exame)

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Giuliana Napolitano

Publicado em 12 de dezembro de 2013, 17h52.

Blair - Os americanos têm o hábito de dar apelidos a seus estados. Nova York é o Empire State, uma referência à pujança da economia e à riqueza da região. O Alasca é o estado do sol da meia-noite, porque, em algumas cidades, não escurece em certas épocas do ano. Há também o estado do ouro (Califórnia), da prata (Nevada) e do granito (New Hampshire) e um punhado de outros com apelidos incompreensíveis para quem não é de lá.

Nebraska, mais conhecido como a casa do investidor Warren Buffett, adota oficialmente, desde 1945, o nome Cornhusker State — algo como estado “debulhador de milho”. Basta dirigir por um punhado de minutos por suas estradas para entender por que o Nebraska se orgulha tanto de algo tão prosaico. A região leste do estado é um grande, imenso, milharal.

Ao lado de Iowa, Illinois e Ohio, entre outros, Nebraska faz parte do cinturão do milho, uma região do Meio-Oeste tomada por fazendas e que é responsável por quase 40% da produção mundial. Seus moradores são obcecados pelo clima. Boletins sobre a expectativa de chuvas, a evolução da temperatura e o deslocamento de frentes de ar ocupam uma parte considerável do noticiário local — e, neste ano, têm sido acompanhados ainda mais de perto.

Os agricultores estão colhendo a primeira safra desde que a pior seca em 56 anos destruiu quase 30% da produção, em 2012. Estima-se que cerca de 100 milhões de toneladas, mais que a colheita brasileira de milho, tenham sido destruídas. Com menos oferta, os preços atingiram as máximas históricas.

Aí, para tentar ganhar com a alta, quem podia saiu plantando milho. Se nada der errado, essa pode ser a maior safra de milho dos Estados Unidos, de cerca de 350 milhões de toneladas.

Ao longo de um século e meio, os Estados Unidos se transformaram na maior potência agrícola da história. O clima favorável e o solo fértil explicam só parte da impressionante expansão do cinturão do milho desde o começo do século 19, quando os primeiros agricultores disputaram terras com os índios para se estabelecer. Eles investiram em tecnologia em escala jamais vista na história da agricultura.

Na maioria das propriedades, os tratores não precisam de motorista — são pilotados remotamente, via satélite, de um centro de comando que pode ficar a quilômetros de distância. Algumas já começam a usar drones, aviões não tripulados, para monitorar as lavouras.

Bem ao estilo americano — e diferentemente do que se pode imaginar —, as fazendas são controladas por milhares de famílias (e não grandes “corporações”) e são menores do que as brasileiras. Foi justamente o ímpeto competitivo dessas famílias que tornou a agricultura americana a mais produtiva do mundo.


De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), são produzidas no país, em média, 9 toneladas de grãos por hectare, mais do que o dobro da taxa brasileira. Desde a década de 90, a área plantada praticamente não aumenta. Mas a safra cresceu 2% ao ano, em média.

Os Estados Unidos disputam com a China o posto de maior produtor global de grãos, mas não há dúvida de quem é mais eficiente. Apenas 1,7% da população americana trabalha no campo — na China, a proporção é de um para três. 

As bases para esse desenvolvimento começaram a ser construídas no século 19, inicialmente com investimento público. Em 1862, o governo aprovou uma lei para vender, a preços baixos para pequenos produtores, terras desocupadas (a maioria localizada no Meio-Oeste).

Queria fomentar alguma atividade econômica numa região pobre. Milhares de imigrantes europeus com experiência em agricultura acabaram montando fazendas ali. Uma leva de produtores americanos de outras regiões do país fez o mesmo.

Com o fim da guerra civil, o governo construiu hidrovias e ferrovias, e muitas passavam pelo Meio-Oeste, o que levou empreendedores a montar empresas especializadas em armazenar e transportar a produção. Nessa época, quase metade dos americanos trabalhava na agricultura, e o governo despejava subsídios no setor.

Se tivesse parado por aí, os Estados Unidos provavelmente teriam se tornado um importante produtor agrícola por alguns anos enquanto houvesse ajuda do Estado e novas terras para cultivar. Mas o modelo que se seguiu foi bem diferente. Ao longo do século 20, o governo foi deixando de agir como babá e passou a se dedicar a funções típicas do Estado (mas negligenciadas, como se sabe, em muitos países): incentivos à educação e à infraestrutura.

O governo federal criou um programa de estímulo a cursos de agronomia. Hoje, existem ao menos 50 cursos do tipo no país. O objetivo do governo era financiar pesquisas e agricultores que queriam investir para aumentar a produtividade. O governo também continuou abrindo estradas, ferrovias e hidrovias, o que atraiu uma miríade de empresas para vender de fertilizantes a serviços financeiros aos fazendeiros. Foi quando floresceu o quase trilionário complexo agroindustrial americano. 

Na maioria dos países em que o agronegócio se sofisticou, a produção das fazendas é só uma pequena parte do total desse setor. Nos Estados Unidos, cada dólar gerado nas fazendas se transforma em 5 dólares ao fim da cadeia do agronegócio. Companhias verdadeiramente globais surgiram e se desenvolveram na esteira do sucesso agrícola americano.


Nenhuma empresa simbolizou tão bem o casamento entre fazendas e empresas quanto a Cargill — que hoje é, de longe, a maior companhia agrícola e de alimentos do mundo. Seu faturamento, de 137 bilhões de dólares, é 50% superior ao de sua principal concorrente, a ADM (fundada em 1902, também no Meio-Oeste americano).

Por décadas, o crescimento da Cargill e a ascensão da agricultura americana foram indissociáveis. A empresa foi fundada em 1865 por William Cargill, e seus dois irmãos entraram no negócio pouco depois. Nunca quiseram ser fazendeiros. O plano era montar uma operação de compra e venda da produção de outros agricultores. Começaram abrindo armazéns ao longo das ferrovias do Meio-Oeste. Com o crescimento na região, abriram escritórios internacionais. 

Para ganhar dinheiro negociando commodities agrícolas, a Cargill tinha de conseguir comprar barato e vender caro. Quanto mais informações tivesse sobre o clima e as condições das lavouras — e menos seus concorrentes e os fazendeiros que queriam vender sua safra soubessem —, maior a chance de fechar bons negócios.

“Nem todo mundo tinha acesso rápido às informações. Ter os dados, e mantê-los em segredo, fazia a diferença”, diz David MacLennan, vice-presidente de operações da empresa. A Cargill montou uma estrutura financeira mais sofisticada do que a de muitos bancos.

Já nos anos 50 tinha mesas de negociação de commodities em Genebra, na Suíça, e em Minneapolis, nos Estados Unidos, onde fica a sede da companhia. Mas talvez o maior símbolo da força da Cargill não sejam os negócios financeiros e as centenas de navios que ela abastece todos os dias com grãos, e sim a operação industrial que montou à medida que o agronegócio americano se sofisticou. 

Quando a Cargill chegou ao Meio-Oeste, o que havia ali era uma promessa de início de produção agrícola. Décadas mais tarde, em 1993, quando decidiu construir uma fábrica em Blair, no estado do Nebraska, não havia muito mais que plantações de milho e 6 000 habitantes ali.

A fábrica da Cargill em Blair é um dos maiores centros de processamento de milho do mundo. Custou o equivalente a 2,5 bilhões de reais para ser erguido, abriga seis linhas de trem e transforma 2,5 milhões de toneladas de milho por ano — são 180 000 caminhões e quase 30 000 vagões lotados de grãos a cada 12 meses.

Sai­ dessas instalações mais de uma dezena de produtos derivados do milho, de ração animal a etanol. 
Como quase tudo o que envolve a Cargill, quem olha de fora não faz ideia do que funciona ali em Blair. Ao longo das décadas, a companhia montou a mais complexa operação do mercado mundial de alimentos longe da vista do público.


Pouquíssimos produtos são vendidos aos consumidores — o Brasil, onde a empresa é dona de marcas como Liza e Pomarola, é uma exceção. Globalmente, a Cargill tem 1 400 fábricas e produz adoçantes, chocolates, óleos, rações e etanol — além de corantes e substâncias usadas para conservar iogurtes, pães e cervejas. Seus ingredientes estão nos sanduíches do McDonald’s, nos refrigerantes da Coca-Cola, nos sorvetes da Unilever. 

Se empresas como a Cargill cresceram puxadas pelo desenvolvimento do agronegócio americano, é natural que estejam mirando mercados com maior potencial. “Nosso maior desafio, hoje, é como nos internacionalizar da maneira correta para crescer em mercados em que o consumo de alimentos continua aumentando de forma expressiva”, diz Greg Page, presidente da Cargill.

O Brasil é um deles (a Cargill já é a segunda maior exportadora de soja do país). Um dos principais investimentos recentes da empresa foi a construção de uma fábrica de processamento de milho no Paraná, prevista para ser inaugurada em 2014. Foi feita nos mesmos moldes da unidade de Blair, com um aporte inicial de 210 milhões de dólares.

Com o crescimento da produtividade de nossas fazendas e o investimento de empresas como a Cargill, em que estágio evolutivo está o agronegócio brasileiro? “Guardadas as particularidades de cada país, é como se o Brasil fosse os Estados Unidos há 30 anos”, diz José Vicente Ferraz, diretor da consultoria Informa Economics-FNP.

Empresas brasileiras também vêm conquistando espaço no mercado internacional — o nome óbvio é o JBS, maior processador de carnes do mundo. Como foi visto na reportagem anterior, os fazendeiros brasileiros vêm tirando, ano a ano, parte da vantagem produtiva americana. Na soja, já somos mais eficientes.

À medida que a gestão das fazendas evolua e os investimentos em tecnologia sejam feitos, é natural que o país avance. Segundo a FAO, o Brasil será responsável por 40% do aumento da oferta de alimentos até 2050. Mas o pesadelo logístico do país pode colocar tudo a perder.

Para vender soja na China pelo mesmo preço oferecido pelos americanos, o produtor brasileiro tem de ser 30% mais eficiente. Esse dinheiro é usado para bancar a conta do transporte. No Brasil, 74% da produção é escoada de caminhão. Nos Estados Unidos, que começaram a fazer suas grandes hidrovias e ferrovias no século 19, o percentual é de 1%.

Num caso raro, o governo brasileiro de fato ajudou — e muito — o agronegócio de nosso país a deslanchar. Sem a Embrapa, não haveria o “milagre do cerrado”, como se convencionou chamar a conquista da região pela soja. A partir dali, a bola ficou com os fazendeiros, que estão fazendo sua parte.

Os americanos perceberam, décadas atrás, que ter uma agricultura produtiva é apenas uma parte — talvez a mais importante, é verdade — da cadeia do agronegócio. Adianta pouco perder a produção em estradas esburacadas. Aqui, não adianta nada esperar por um milagre.

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