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Um setor elétrico vitruviano

Como Marcus Vitrúvio e seu tratado de arquitetura de 2 mil anos podem influir no debate da modernização do setor elétrico brasileiro

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 (Carol Yepes/Getty Images)

(Carol Yepes/Getty Images)

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Marco Delgado*

Publicado em 11 de abril de 2021, 09h30.

Faz algum tempo que tenho refletido sobre pensadores que versaram por diversos temas, tais como econômicos, filosóficos, sociológicos ou até psicológicos, e que reverberam nos assuntos contemporâneos, e naturalmente polêmicos, do setor elétrico brasileiro. Um deles, que gostaria de convidar para este nosso colóquio, é um eloquente da área que lida de forma comensurável entre ciências e artes que, por sua vez, é a arquitetura.

Encontrei no bimilenar “Tratado de Arquitetura”, de Marcus Vitrúvio, elementos estruturais holísticos que podem dar tenacidade aos alicerces de modernização do setor elétrico. A propósito, que não pairem dúvidas: apesar do original ter sido redigido no longínquo século I a.C, ter ficado perdido por quase 1.500 anos e, ao ser reencontrado, ter se tornado uma referência inspiradora do movimento renascentista na Itália, o exemplar que manuseio é uma tradução recente e pode ser adquirido facilmente nas estantes virtuais pela internet.

O primeiro daqueles elementos estruturais refere-se às competências e habilidades desejadas dos arquitetos daquela época, dentre elas: cálculo, mecânica, geometria, gnomônica, filosofia, história e artes.

No atual setor elétrico, os “arquitetos” do planejamento, da transformação e da operação devem compreender e dominar física, economia, biologia, direito e, em épocas de contraposição às fake news, comunicação.

A segunda natureza de similaridades é o que Vitrúvio asseverou como princípios da edificação: solidez, funcionalidade e beleza. Em nosso setor elétrico, a solidez se dará por um marco legal e regulatório que ofereça a segurança jurídica necessária à evolução do mercado e à realização dos investimentos.

A funcionalidade se fará pelas inovações tecnológicas e pela viabilidade econômica dos respectivos projetos. E, por sua vez, a beleza será vislumbrada pela equidade e eficiência oferecidas à sociedade, colimadas com responsabilidade ambiental ao planeta. De fato, Vitrúvio estava dois milênios à frente do seu tempo e, naquela época, já preconizava que esses princípios deveriam ser implementados de forma harmônica e equilibrada para dotar comensurabilidade à obra edificada.

Há tempos discutimos a pauta de modernização do setor elétrico e, agora, começamos a avançar. Dois passos relevantes foram dados na aprovação da MPV 998/20 no Congresso Nacional para a evolução eficiente, saudável e sustentável do mercado de energia: o término de subsídios tarifários que já cumpriram sua missão e a alocação equânime dos custos de confiabilidade e adequabilidade do suprimento de energia elétrica, que são bens de interesse coletivo de ambos os ambientes de comercialização.

Não obstante, a jornada está no começo e a conversão dos PL 232/16 e PL 616/20, que tramitam nas duas casas do parlamento, encimarão essa alvissareira construção legal de modernização.

Inopinadamente, ao citar o Congresso Nacional, quase como uma lei, surge a imagem do laico edifício que nos remete a Brasília e será de sua arquitetura que virão outras reflexões ao setor elétrico.

O Modernismo

O Modernismo se originou nas artes, sob influência das alterações sociais, da compreensão da psicanálise e dos avanços tecnológicos do início do século passado. As formas tradicionais estavam em mutação e, por isso, novas concepções em criação.

A arquitetura, como área de conhecimento que permeia ciências e artes, não ficou apartada desse movimento. Entretanto, a expansão da arquitetura modernista ocorreu além da verve artística. Da engenharia do cálculo estrutural e do concreto armado vieram a plasticidade dos projetos curvilíneos e dos exuberantes balanços. Da política veio a volição para que jovens nações e países que recentemente haviam obtido sua autonomia pudessem formar uma identidade arquitetônica independente dos seus colonizadores e, assim, romper um dos grilhões de aculturação.

Aqui é o ponto de tangência entre o modernismo na arquitetura e a modernização do setor elétrico que coloco em perspectiva. Para projetar um novo modelo setorial que visa a eficiência econômica, o protagonismo de escolha dos consumidores e a inovação nos modelos de negócios é crucial desvencilhar-se das políticas de subsídios e isenções tarifárias que já cumpriram sua missão.

Isto ocorreu satisfatoriamente na conversão da MP 998/20 na Lei 14.120/21, mas não foi completada. Agora chegou o momento, aliás já passou da data, de revisitar um escambo, legítimo herdeiro das práticas coloniais, positivado em ato normativo como Sistema de Compensação de Energia Elétrica.

Concordo com aqueles que interpretam a arquitetura como a mais otimista das artes. Não obstante, no setor elétrico, a moderna arquitetura precisa de algo mais para avançar. É inquietante ver a incoerente forma de pautar o futuro pelas práticas do passado.

Acreditar que benefícios incertos e temporários justificam uma conta certa e opulenta aos demais consumidores é, ao cabo, retroceder às obscuridades do período colonial, quiçá medieval. Por isso, além de bons fundamentos técnicos é necessário ter comunicação eficaz para contrapor a retórica rasa e vociferada pela manutenção de bizarros privilégios.

Faço votos para que as gelosias do Congresso Nacional, também conhecidas como venezianas que marcam o estilo modernista nas edificações administrativas, permitam que os bons ventos e a parcimoniosa incidência solar arejem os ambientes de suas comissões e afastem os embolorados subsídios e isenções tarifárias que ainda estão encruados nas sombras dos pilotis.

Como diria Vitrúvio: destarte, haverá um ambiente livre de miasmas e salubre para toda sociedade.

*Marco Delgado é conselheiro da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).

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